Meus amigos, perante as repetidas acusações de pedofilia na Igreja, teremos de desesperar da instituição? Sim, eu coloco esta pergunta ao escutar e ler as reações, as interrogações e os testemunhos de uns e de outros na Igreja e fora dela, porquanto a responsabilidade da Igreja, a responsabilidade da sua missão primeira, dirige-se a todos, ao mundo inteiro, à Criação. E a Igreja, porque é corpo de Cristo, não pode subtrair-se à sua responsabilidade pelo mundo. Caso contrário não seria mais do que uma instituição como as outras. Eu coloco esta pergunta porque o cristão que sou é chamado a reconhecer abertamente este drama e a voltar-se para a sua Igreja para se assegurar com a maior das inquietações dos fundamentos da sua fé, e para reclamar que seja garantida a Palavra que faz viver a Igreja contra a sua própria renúncia, e mesmo contra a sua aniquilação.
É não apenas natural mas sobretudo saudável que cada um se interrogue, proponha, alerta. Porque não se trata apenas de casos tristes. Trata-se sobretudo de um terrível drama que atinge o nosso coração, que espera as nossas decisões, que apela à nossa ação, se não corremos o risco de manter uma desconfiança perniciosa e fatal em relação ao que constitui a nossa base comum, em relação à dinâmica de transmissão dos nossos valores, das nossas crenças, dos nossos símbolos, que nos constituem uns com e para os outros. E é precisamente isso que define uma instituição viva e uma «instituição justa», para retomar a expressão do filósofo Paul Ricoeur. O sentido da justiça nunca emerge com tanta urgência e acuidade como quando a instituição, a estrutura do viver juntos, e do crer juntos, neste caso, está ameaçada.
Porque desesperar da nossa instituição é também desesperar das mulheres e dos homens que a estabeleceram, transmitiram, enriqueceram e que acreditaram ao longo dos séculos e de gerações. E porque a nossa fé se dirige a toda a humanidade, a uma existência total que tem o dever e a tarefa de se interrogar sobre ela própria, sobre cada um dos seus comportamentos como sobre as suas instituições e as suas instâncias de poder, de representação, de crença. Ora, da nossa reação diante destes crimes pedófilos, no coração da nossa Igreja, depende a nossa coesão, o nosso corpo eclesial enquanto instituição vivente. Como poderosamente lembrou o papa Francisco ao abrir a sua carta de 20 de agosto «ao povo de Deus», e citando Paulo: «Se um só membro sofre, todos os membros partilham o seu sofrimento» (1 Coríntios 12, 26). Mas acrescentemos: se um só membro não partilha este sofrimento, ou o minimiza, ou o desvaloriza, ou prefere calá-lo, pervertendo muitas vezes a instituição, é então todo o corpo que é atingido.
A instituição eclesial vem daí, o seu único poder, a sua única glória só vêm daí, dessa necessidade de fazer face ao indizível de cada sofrimento humano, e de fazer corpo na partilha dos sofrimentos. O perigo, dos nossos dias, não me parece tanto a desafetação das nossas igrejas, mas a desafetação deste “fazer corpo” que constitui a Igreja como exigência absoluta de compaixão ativa. A comunidade eclesial não pode ser o lugar da sufocação dos segredos, do evitamento das responsabilidades, da recusa de culpabilidade. Não queremos da Igreja a mentira ou a cobardia. Isso não é a Igreja, não é a nossa Igreja. Por isso é preciso agir.
Não sei se a demissão deste ou daquele se impõe, mas estou convencido de que são precisos atos concretos, decisões corajosas, tanto coletivas como individuais. Uma «instituição justa» é uma instituição que protege, nomeadamente e prioritariamente ao mais fracos, os mais pequenos. E não uma instituição que se protege. Sem isso a desarticulação ameaça, a dissolução do corpo concretiza-se. Acabaremos então por desesperar da instituição. Isto é, desesperar de nós próprios. É será no fim de contas o próprio Cristo que mais uma vez nós teremos ferido e afrontado. Todos. Calando-nos. Recusando enfrentar as nossas responsabilidades. Não agindo.
Aqui ou ali querer-se-ia não haver sentimento de culpa, esperar serenamente que a justiça passe. A dos homens sim, talvez. Mas o maior perigo é sem dúvida o de eliminar o laço entre grandeza e culpabilidade. Mais uma vez Paul Ricoeur: «Onde está a culpabilidade, está também a grandeza». Cabe-nos interrogar: que sentido tem a falta que nos atinge agora tão profundamente? Permaneçamos despertos, alerta. Reconheçamos a nossa falta. Partilhemo-la com a «nossa comunidade mortal», como já afirmava Santo Agostinho, na abertura do décimo livro das suas “Confissões”. É também isso que nos institui uns entre e para os outros.