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Um bispo que espicaça: No bicentenário da morte de D. Francisco Gomes do Avelar

Um bispo que espicaça: No bicentenário da morte de D. Francisco Gomes do Avelar

Imagem D. Francisco Avelar

Dom Francisco Gomes do Avelar faleceu há duzentos anos. Foi no dia 15 de Dezembro de 1816, na cidade de Faro, que ocorreu o seu trânsito, a morte daquele que ficará para a História como um dos mais eminentes membros do episcopado português.

Nascido a 17 de Janeiro de 1739 na antiga freguesia de Calhandriz, no actual concelho de Vila Franca de Xira, não era uma personalidade vulgar. Membro da Congregação do Oratório, fundada por São Filipe de Néri, destacou-se numa época em que Portugal ia sobrevivendo a todas as convulsões resultantes do governo despótico de Pombal, da Viradeira ocorrida no tempo de D. Maria I, da regência do príncipe D. João (futuro D. João VI), da influência das ideias emanadas da Revolução Francesa, das Invasões Napoleónicas e da fuga da Família Real para o Brasil.

Quem melhor lhe traçou o perfil, em escassas mas certeiras linhas, foi um dos maiores escritores portugueses de todos os tempos, Raul Brandão, no seu livro El-Rei Junot. Naquele tempo, em que o Cristianismo ia “morre[ndo] no mundo – para renascer só alma”, salvando-se assim da sua “falta de humildade”, porque “tudo que passou a ser um simulacro, tem de cair” (1), D. Francisco agigantou-se. Todo ele contrastou com uma sociedade que ia batendo no fundo: “[…] O que caracteriza agora a terra é a baixa avareza, o estúpido oiro e a máquina que corrompe, tirando o povo do convívio da terra. O dinheiro é tudo. Nem santos nem génios – oiro” (2). (Não vivemos tempos diferentes…)



Ainda hoje a sua figura impressiona pela sensibilidade, pela humildade, pela atenção, pela salvaguarda e pelo discernimento



Nesse tempo de dissolução, a distinção do Bispo do Algarve – sagrado a 26 de Abril de 1789 – tornou-se evidente aos olhos dos seus contemporâneos. O seu exemplo projectou-se no futuro. Ainda hoje a sua figura impressiona pela sensibilidade, pela humildade, pela atenção, pela salvaguarda e pelo discernimento. Num tempo de baixeza moral, afectando e infectando todos os estados, da nobreza ao povo, passando pelo clero, tomaram vulto aqueles que “lida[vam] com Deus, cheios de fé e sinceridade”, “apega[ndo-se-lhes] grandeza” (3). Raul Brandão encontrou duas eminências que muito nos dizem: D. Frei Manuel do Cenáculo Vilas-Boas (1724 – 1814), bispo de Beja e depois arcebispo de Évora (“um grande espírito e um santo”) e o nosso grande prelado, falecido há precisamente dois séculos. O retrato desse homem que “encanta” é breve, mas diz ou indica o mais importante:

[…] poda e sorri; trepa aos andaimes e ajuda os operários; abre estradas, constrói pontes; leva horas a ensinar a enxertia aos lavradores; ao meio dia – hora do jantar – sobe ao mirante, para ver se há chaminé que não fumegue – lar sem pão; e quando morre sua roupa nem pelos pobres pode ser aproveitada” (4).



Altíssimo expoente do Iluminismo católico, a sua acção desenvolveu-se entre múltiplas dificuldades e resistências activas, algumas corrosivas



Tivessem-no rodeado outras circunstâncias e tivesse exercido o seu múnus pastoral noutro lugar – e seria hoje venerado nos altares, ao lado do grande beato Bartolomeu dos Mártires, que em breve será canonizado. Não obstante, mereceu receber do povo algarvio o título de Bispo-Santo (5). Quando em 1863 se abriu o carneiro da catedral de Faro, primeira vez depois da sua morte em 1816, os farenses vestiram-se de novo de luto; aberta a cripta, precipitaram-se para o seu interior; querendo ver o seu prelado, acabaram levando “a princípio, pedaços de vestes, depois alguns ossos e por último as próprias cinzas”, conta um dos contemporâneos destes factos (6).

*

É de enaltecer o perfil pastoral e espiritual deste grande da Igreja. Como refere D. Manuel Clemente, a sua “grandeza humana e episcopal […] não se esbate, antes se distingue, quando o integramos no episcopado português seu contemporâneo”. Nas palavras do actual Cardeal-Patriarca de Lisboa, fugindo ao estatuto de bispo de corte, soube “reformar a Igreja e construir a cidade”, “ser teólogo e esmoler, piedoso e prático” (7). Altíssimo expoente do Iluminismo católico, a sua acção desenvolveu-se entre múltiplas dificuldades e resistências activas, algumas corrosivas. Encontrando uma diocese ainda muito enferma das consequências do terramoto de 1755 e do abandono a que fora votada, arregaçou mangas, não se ficando pelas “determinações pastorais, cuidando ainda das temporais, da reconstrução dos templos – Cacela, Santa Maria de Tavira, S. Brás de Alportel, Albufeira, Aljezur, Lagoa… […] – aos melhoramentos agrícolas, das pontes e calçadas às termas de Monchique” (8). A sua atenção aos pobres, o seu incremento da piedade e da educação dos seus diocesanos caminharam de braço dado com uma activa evangelização pela Arte, fazendo vir de Itália obras e artistas, que acabariam por introduzir entre nós a estética neo-clássica, bem patente nos riscos de edifícios e retábulos saídos da mão de Francesco Saverio Fabri (1761 – 1817).



Ousando ser diferente e olhando o futuro, tendo de reconstruir, nunca hesitou integrar nos edifícios novos elementos provenientes de outros que as vicissitudes haviam arruinado



Todo esse labor foi reconhecido pelo povo cristão, mesmo pelo mais humilde. Talvez por isso mesmo em Aljezur, única terra que logrou desrespeitar a humildade de D. Francisco, inscrevendo o seu nome no lintel da porta principal da sua igreja matriz, por ele mandada edificar (1795 – 1809), ninguém lia a epígrafe que, “ao soletrar o nome do santo prelado, não tir[asse] respeitosamente o seu chapéu” (9). Não sei até que ponto hoje se repetiria tal reverência…

Até na defesa da herança artística e arquitectónica ele foi um exemplo que merece a nossa atenção e discernimento, em tempos de ignorância, de arrogância e de desrespeito. Ousando ser diferente e olhando o futuro, tendo de reconstruir, nunca hesitou integrar nos edifícios novos elementos provenientes de outros que as vicissitudes haviam arruinado. Assim manifestou um imenso respeito pela riqueza que herdara e pela memória artística e devocional do passado. Tal aconteceu, por exemplo, em Tavira (na igreja de Santa Maria), em Faro (no Arco da Vila) ou em Aljezur (na igreja de Nossa Senhora de Alva). Em Silves, perante o estado da antiga catedral algarvia, as suas palavras foram duras (e obrigam-nos a grande reflexão):

[…] pôde a ignorância imprudente dos administradores, que têm tido cuidado da sua conservação e fábrica, deitar a perder a sua nobreza e formosura, […] com fábricas menos bem pensadas, e alheias dos preceitos da arte e impróprias da arquitectura da mesma igreja […] – bárbara imprudência, que bem merecia ter sido severamente castigada pelos nossos predecessores nas pessoas que os cometeram […]” (10).



As suas palavras não servem apenas para aquilatarmos o estado dalgum património na sua antiga diocese, pois obrigam-nos a reflectir sobre a maneira como a nossa herança religiosa vem sendo bem ou mal tratada por quem tem a obrigação de a defender. Não é possível separar o culto da Cultura. Quando tal acontece, as consequências são nefastas de um e de outro lado



Que diria hoje se visse os retábulos que mandou fazer com acrescentos e repintes sem tino, se entrasse nas igrejas cuja edificação custeou e nelas visse instaladas tecnologias que ferem a espiritualidade do lugar, se fitasse os edifícios cujo levantamento ordenou para maior glória de Deus rodeados por construções ignóbeis, se se apercebesse da destruição (ainda que bem intencionada) de uma parte da sua obra?... As suas palavras não servem apenas para aquilatarmos o estado dalgum património na sua antiga diocese, pois obrigam-nos a reflectir sobre a maneira como a nossa herança religiosa vem sendo bem ou mal tratada por quem tem a obrigação de a defender. Não é possível separar o culto da Cultura. Quando tal acontece, as consequências são nefastas de um e de outro lado.

Neste campo, bem como na piedade, na acção social, na intervenção cívica e no exercício das virtudes cristãs, a sua figura interpela-nos, confronta-nos e espicaça-nos (se não estivermos completamente infectados pelo narcisismo ou pelo relativismo bárbaro e pós-moderno do nosso tempo alienado). Saibamos nós meditar a partir da sua acção, tirando daí as devidas consequências.

 

(1) Raul Brandão (1912) - El-Rei Junot. Lisboa, Livraria Brazileira de Monteiro & C.ª Editores: 7 e 9 [ortografia actualizada].
(2) Brandão, 1912: 10.
(3) Brandão, 1912: 119.
(4) Brandão, 1912: 119.
(5) Padre José Cabrita Júnior (1940) – O Bispo Santo D. Francisco Gomes do Avelar (Esboço Biográfico). Faro, Tipografia “União”.
(6) Francisco Xavier de Athaide Oliveira (1902) – Biografia de D. Francisco Gomes do Avelar, Arcebispo-Bispo do Algarve. Porto, Typographia Universal (a Vapor): 322.
(7) Manuel Clemente (1998) – “D. Francisco Gomes do Avelar no episcopado do seu tempo”. Didaskalia, XXVIII : 166.
(8) Clemente, 1998: 157.
(9) Oliveira, 1902: 262.
(10) In Oliveira, 1902: 47 – 48.



 

Ruy Ventura
Publicado em 20.12.2016 | Atualizado em 10.10.2023

 

 
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