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Ecologia, ambiente e economia

Referindo-se ao que chama de «atmosfera de morte», o Pe. Prof. Doutor Joaquim Cerqueira Gonçalves, afirma, no texto «Em louvor da vida e da morte. Ambiente: a cultura ocidental em questão», in Itinerâncias de escrita, Lisboa, INCM, 2014, p. 314:

«Verdadeiramente, ela é consequência das opções da cultura ocidental, assumidas, aliás, em nome das exigências da razão. Essa morte foi precedida de outras mortes, essas, sim, a verdadeira morte: o esvaziamento do conteúdo qualitativo dos seres; a vitória de alguns, na sua competição egoísta com os outros; a redução da alteridade do passado e do futuro a alguns detentores do presente.».

O termo «ecologia» é um composto hodierno feito a partir dos termos helénicos «oikos», casa, e por «logia», que se costuma traduzir insuficientemente por «estudo» ou «ciência». O termo «logia», por sua vez, relaciona-se com o termo, fundamental, «logos», de ampla semântica, mas que indicia isso que pode ser dito como «a colheita do sentido próprio das coisas», coincidindo com o ato, sempre espiritual, da presença em nós “das coisas”, precisamente na forma do «sentido».

Exatamente neste «sentido» não há diferença entre a presença da coisa em nós e isso, esta presença, como sentido. Ainda neste «sentido», para nós, tudo ou é sentido ou não é coisa alguma. Como é evidente, o uso repetido do termo «sentido» foi propositado porque não há outro modo melhor de expressar isso que é, sem mais e simplesmente, o sentido.

Nós, seres humanos, ou somos sentido como propriamente humanos ou não somos coisa alguma.



A ecologia não é uma disciplina escolar, não é uma moda social, não é apenas uma atitude perante a natureza, é o modo próprio da relação do ser humano com o mundo



Ora, este introito permite perceber que o termo «ecologia» se refere ao que o mundo é como unidade de sentido. O mundo é algo de espiritual, em nós, ainda que seja algo mais no que diz respeito ao que nos transcende. Mas o que nos transcende não é por nós percebido de modo algum outro que não seja o do sentido.

Assim sendo, e como ato da humana inteligência, compreende-se a estreita relação que existe entre o mundo como sentido e a cultura, que é o somatório imenso e universal de todo o sentido humano efetivo desde que há humanidade e não há humanidade como tal sem este ato de sentido.

Então, a ecologia é o ato de sentido do mundo ou, melhor, o mundo como ato de sentido.

É este o pressuposto ontológico da citação do Pe. Cerqueira Gonçalves apresentada anteriormente. A ecologia não é uma disciplina escolar, não é uma moda social, não é apenas uma atitude perante a natureza, é o modo próprio da relação do ser humano com o mundo, não apenas o mundo natural, mas o mundo como um todo, pois não há qualquer separação entre o ser humano e a natureza: há não apenas uma continuidade e contiguidade, mas há uma imbricação, pois não há ser humano sem dimensão natural própria e irredutível.



É precisamente a cultura que permite perceber que só há um mundo e que todo ele é, como suporte necessário para a própria cultura, natural. A cultura emerge da natureza e dela vive como seu substrato substancial sem o qual não pode subsistir



O primeiro grande erro humano – não é apenas ocidental – é ontológico e consiste na separação maniqueia entre a humanidade e o restante, a dita «natureza», como se houvesse uma descontinuidade ontológica entre estes dois âmbitos, como se constituíssem verdadeiros mundos separados.

Ora, a primeira evidência ontológica é que só há um mundo. De um certo ponto de vista fundamental, todo o mundo é natural, pois nada há nele que não comungue desta necessária dimensão. O outro ponto de vista é precisamente o da cultura.

Todavia, é precisamente a cultura que permite perceber que só há um mundo e que todo ele é, como suporte necessário para a própria cultura, natural. A cultura emerge da natureza e dela vive como seu substrato substancial sem o qual não pode subsistir.

Nem sequer se pode dizer com sentido que a cultura supera a natureza, pois, que superação é essa que necessita do superado para superar o superado? Erro lógico, cultural tolice; mas perigosa tolice.

Perigosa tolice cultural porque imediatamente transforma a cultura em parasita da natureza, ao pôr aquela a negar isso de que depende para reclamar a ilusória superação. A cultura não tem necessidade de parasitar a natureza, pode, simplesmente, literalmente, conviver com ela.



A natureza como serviço ao ser humano e o ser humano como serviço à natureza. A relação ecológica é uma necessária relação de simbiose entre ser humano e natureza, não uma relação de parasitismo, não uma relação de comensalismo



Esta lição de sã convivência é muito antiga, tão antiga quanto, pelo menos, a escrita do velho mito sagrado da criação do mundo por Deus, constante do Génesis. Que é isso que Deus cria durante seis sucessivos dias, sete, contando com o momento de ativa contemplação final, senão a possibilidade de sã convivência da coisa natural – o mundo não-humano – com a coisa cultural – a humanidade?

Que outro sentido universal e profundo tem o velho Paraíso, em que tudo estava bem, em que a casa («oikos») – comum – estava logicamente arrumada, ou seja, em que havia uma inicial perfeita «logia» da «oikia», uma perfeita e integral ecologia? O Paraíso é a perfeição ecológica em ato.

Antes de quererem tornar-se donos do que lhes não competia, Adão e Eva viviam em perfeita ecológica vida. Nenhum desequilíbrio havia. Tudo era perfeito. Repetimos: tudo era perfeito, mesmo que os adoradores do mal queiram pensar o contrário. E são os adoradores do mal que são a figura da tentadora serpente: é a besta predadora que há em nós isso que a bicha significa.

Pergunta-se: mas para quê esta possibilidade no seio de uma ecologia perfeita? Por que razão haver a possibilidade de introduzir o desequilíbrio ecológico num mundo outrossim perfeito? Por que não garantir protocolarmente no ato de criação que o bem ecológico fosse necessário?

 A resposta é desconcertantemente simples – para desespero dos adoradores do mal –: porque sem esta possibilidade não poderia haver seres humanos. Poderia haver infinitas outras realidades, mas não seres humanos.



A vitória de alguns, na sua competição egoísta com os outros», é a razão de a real economia ser não uma ecologia aplicada ao governo das relações entre os seres, universalmente, mas uma real sucessão e concomitância de atos de predação de uns seres relativamente a outros



A criação de um outro mundo apenas com seres mecanicamente capazes do bem seria a criação precisamente de um outro mundo. Dele, nunca teríamos conhecimento, porque não é compatível com este em que estamos, melhor, que, como sentido, somos.

Num sentido ecológico infinito, pode bem haver tal coisa, infinitas mesmo, como alternativas – infinitas, repetimos – e, no entanto, em nenhuma delas existem seres humanos; delas nunca teremos conhecimento, pois, este implica a estrutura ontológica deste mundo em que estamos, que somos, o que exclui qualquer outra.

A perfeição ecológica deste mundo implica a presença da possibilidade da ruína ecológica do mesmo, como possibilidade de o ser humano se integrar com ato próprio na estrutura do mundo.

É pela ação do ser humano como ação propriamente humana que este se especifica e é, em absoluto. Sem tal, não há ser humano. Nem sequer se pode saber o que há, pois tudo o que se sabe ou pode saber passa necessariamente pelo ser humano. Não há outro modo; não neste mundo; não como inteligível neste mundo, por este mundo, isto é, por cada um de nós.

Neste sentido, o mundo é antrópico; ecologicamente antrópico, o que não quer dizer que seja antrópico como ato de bestial egoísmo humano.



Deliberadamente, o ser humano escolhe não colaborar, preferindo a via da violência, da ação sobre o restante em que se ultrapassa o que é necessário



Antropicismo ecológico e onfalocentrismo cultural não são sinónimos. Todo o possível sentido do mundo passa pelo ser humano, o que não significa que este tenha qualquer direito de posse ontológica sobre o mundo. Apenas tem o direito de relação litúrgica, de serviço, necessário, mas também necessariamente mútuo.

Numa linguagem mais comum: a natureza como serviço ao ser humano e o ser humano como serviço à natureza. A relação ecológica é uma necessária relação de simbiose entre ser humano e natureza, não uma relação de parasitismo, não uma relação de comensalismo. Sem a relação de simbiose com a natureza, a humanidade está condenada à aniquilação, no que será o último ato de justiça poética do universo. É este o preço final mais elevado da estupidez antiecológica que grande parte da humanidade tem revelado e insiste em continuar a revelar.

Pode perceber-se, assim, que, do ponto de vista ontológico, que assume todos os demais, mas sem que lhes ceda a primazia – isto é, nada há no mundo sem preeminência ontológica, perceba-se isto ou não (e é nesta negatividade que radica a negatividade antiontológica) –, não há propriamente um mundo a que se acrescente a ecologia, mas que o mundo é ecologia em ato.

Equilíbrio ecológico significa equilíbrio do mundo; desequilíbrio ecológico significa desequilíbrio do mundo.



O melhor ato possível, sempre: eis a «lei», o princípio fundamental do governo, seja do governo individual da pessoa – ética – seja do governo coletivo das pessoas – política



Note-se que o termo «mundo» acabado de usar e a realidade para que remete não se limita à designação microcósmica do nosso planetazinho, mas ao universo como um todo. Aliás, este sentido de equilíbrio universal necessário ressalta em obras de ficção científica em que de outros lugares do universo se dirigem à humanidade outras formas de ser que se encarregam de nos corrigir ou eliminar porque estamos a desequilibrar não apenas a remota e insignificante Terra, mas todo o espaço ecológico, que coincide com o universo.

No entanto, e já prevendo o mau uso da capacidade litúrgico-ecológica da humanidade, o mesmo texto que apresenta o mito da criação da perfeita harmonia ecológica e a sua disrupção através dos atos humanos ecologicamente perversos, manifesta, no mito de Sodoma e Gomorra, o que acontece a quem destrói completamente o equilíbrio ecológico: a total destruição, exemplar e brutal, como que manifestando, através do horror, a grandeza do bem em causa e do mal possível.

Ora, o possível da ação do ser humano enquanto liturgia ecológica reveste a forma de «economia», termo de construção similar à de «ecologia», que mantém a referência à «oikia», à casa, mas que substitui o termo «logia» pelo termo «nomia», genericamente entendível como «lei», mas com o sentido mais lato de «governo».

Se regressarmos à pureza dos atos do paraíso genésico anterior à perversão ecológica, podemos perceber que a ecologia do paraíso é indiscernível da sua economia: é o «logos» que governa, isto é, cada ato tem em consideração o que é melhor, sempre, indefetivelmente.


Toda a ação económica que promove não o bem-comum, através da colaboração, mas o bem de algum, único – o tirano – ou de alguns, poucos ou muitos, oligarquia ou maioria – constitui-se como forma predatória, assim, antiecológica



O melhor ato possível, sempre: eis a «lei», o princípio fundamental do governo, seja do governo individual da pessoa – ética – seja do governo coletivo das pessoas – política.

A economia é, assim, o ato que serve o bem de cada ser e de todos os seres.

A economia é indiscernível do bem-comum. Mas o bem-comum é indiscernível de uma ecologia digna do nome: perfeita harmonia de atos entre todos os agentes humanos e entre estes e a natureza.

Então, como é que é possível, sequer, pensar a economia como autêntica inimiga da ecologia?

É, ainda, Cerqueira Gonçalves quem aponta para o fulcro da questão: «a vitória de alguns, na sua competição egoísta com os outros», é a razão de a real economia ser não uma ecologia aplicada ao governo das relações entre os seres, universalmente, mas uma real sucessão e concomitância de atos de predação de uns seres relativamente a outros: de seres humanos relativamente a outros seres humanos, de seres humanos relativamente ao restante dos seres, os não-humanos.

Note-se que a relação de predação, na realidade não humana, faz parte da relação ecológica como ato de equilíbrio e a natureza, a não-humana, nunca vai além do necessário. A humanidade dispõe da capacidade, propriamente humana, da colaboração como meio para governar ecologicamente os seus atos possíveis.

Deliberadamente, o ser humano escolhe não colaborar, preferindo a via da violência, da ação sobre o restante em que se ultrapassa o que é necessário.

Esta violência serve sempre uma vontade de posse de algo impróprio, isto é, que não é próprio de esse que assim age, mas de um outro, humano ou não.

O violento, o predador humano é esse que se apropria de possibilidades que não lhe competem.

Ora, tem sido este o padrão básico de relacionamento entre os seres humanos, simbolizado pela apropriação do impróprio feita por Adão e Eva, com a consequência da quebra do equilíbrio ecológico prístino primeiro e com a sobreconsequência do assassinato de Abel por Caim, que representa a retirada irreparável do bem próprio total de um ser humano por outro.

Toda a ação económica que promove não o bem-comum, através da colaboração, mas o bem de algum, único – o tirano – ou de alguns, poucos ou muitos, oligarquia ou maioria – constitui-se como forma predatória, assim, antiecológica.

É precisamente contra esta forma predatória e antiecológica, que, em última instância, levará à aniquilação autopoética da humanidade, que o Papa Francisco tem procurado alertar as pessoas que queiram não só não ser predadoras, mas que queiram lutar contra a forma de se ser como predador dos semelhantes e do mais.


 

Américo Pereira
Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Ciências Humanas
Publicado em 20.02.2018 | Atualizado em 10.10.2023

 

 
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