Declaro-o desde já: nesta recensão a “No armário do Vaticano”, de Frédéric Martel, não pretendo responder à pergunta que a todos parece crucial: se as acusações do autor são verdadeiras ou caluniosas. Não o sei, não o posso saber, e não quero arriscar suposições; a realidade pode ser muito diferente das nossas expetativas, assim como a calúnia pode urdir tramas verosímeis.
Encaro este livro como historiadora que sou, ofício que neste caso me é particularmente útil. Com efeito, quem conhece a história da Igreja, e especificamente a do papado, sabe que ao longos dos séculos atravessou tempos muito sombrios, ainda mais sombrios do que o cenário descrito por Martel. E sabe também que nas cartas ao papa de Catarina de Sena ecoam apelos válidos ainda hoje.
Mas ao mesmo tempo o facto de a Igreja como instituição sobreviver às fragilidades dos seus membros constitui a prova da sua natureza sobrenatural, como muitas grandes testemunhas sustentaram. Se um fiel continua católico mesmo depois de ter descoberto os pecados dos membros da Igreja, fá-lo porque tem fé no Evangelho e na transmissão da mensagem cristã, inclusive através de um organismo com defeitos e corrupto como todas as instituições humanas.
Ler um livro como o de Martel sugere um exercício de humildade: sejamos cautelosos em considerarmo-nos bons cristãos, as fraquezas humanas estão sempre à espreita e absolver-se a si mesmo é um caminho fácil de percorrer, e em que se pode cair quase inconscientemente.
Nas denúncias do autor, a culpa mais recorrente é o abuso de poder, precisamente aquilo que o papa Francisco assinalou como a causa última de todo o abuso sexual, e que se acompanha pela hipocrisia, isto é, a discrepância entre aquilo que se prega e aquilo que se faz na via real. Este é, sem dúvida, o núcleo do livro, repetido em mil casos.
Mas se precisamente por isto a leitura torna-se algo extenuante, porque as repetições aborrecem, mesmo se acumuladas para dar um retrato anormal da situação, este método é fundamental para compreender bem o ponto de vista de Martel. “No armário do Vaticano”, efetivamente, não é, como outros livros deste género, simplesmente um elenco de acusações e de factos criminosos, mas um texto escrito com um objetivo preciso, que percorre tudo e nunca é abandonado: o de um homossexual militante que denuncia na Igreja a instituição mais homófoba do mundo, culpada de agir ativamente para se opor à marcha dos homossexuais para o completo reconhecimento dos seus direitos.
O autor não é um fiel ofendido pelos pecados dos seus pastores, nem um juiz severo da incoerência que os habita relativamente ao papel que escolheram, mas um militante que se sente ofendido nos seus direitos por uma instituição que considera homófoba. Precisamente por isso, o espaço dedicado à pregação anti-homossexual de pontífices, cardeais e representantes do papa é igual ao dedicado às suas transgressões.
E nesta denúncia mistura-se tudo no mesmo saco, sem analisar a natureza diferenciada das proibições, os motivos adotados para explicar as normas; a condenação do uso do preservativo em tempos de epidemia da SIDA é colocada a par da batalha contra o matrimónio homossexual, e a defesa das leis que punem a homossexualidade em alguns países é posta ao lado da luta contra a ideologia do género. Como se fossem todos rostos de uma mesma batalha, cujo único objetivo seria o de atingir os homossexuais.
Naturalmente, não é assim. Pode estar-se mais ou menos de acordo com estas posições da Igreja, mas não se pode deixar de reconhecer que as motivações e as modalidades das intervenções nos vários casos são profundamente diferentes; por outro lado, meter tudo no mesmo não aproveita a ninguém, nem sequer à batalha a favor dos homossexuais.
É por isso um pouco ingénuo ficar espantado por um representante do papa na ONU apoiar as posições oficiais da Igreja, sem fazer emergir as suas eventuais reservas e as suas inclinações pessoais: trata-se, de facto, de uma regra diplomática obviamente aplicada por todos, sem exceção. E também é ingénuo o desdém com que Martel critica as alianças da Santa Sé com os representantes de países islâmicos para fazer prevalecer as suas posições consideradas homófobas nas organizações internacionais, graças a alianças que em diplomacia são uma prática geral de acordo com os diferentes interesses.
Não penso, portanto, que para além do pouco significativo interesse pelo escândalo, este livro constitua uma arma eficaz para a luta pelos direitos dos homossexuais: desse ponto de vista é demasiado tosco, enquanto que os argumentos invocados são superficiais e, por isso, débeis.
Afastará os crentes da Igreja? Não creio, porque lerão o livro sobretudo os que estão de fora e que procuram, e encontrarão, boas razões para continuarem distantes. Neste tempo os crentes têm sido, seguramente, muito sacudidos – e talvez não poucos se afastarão da frequência da Igreja – pelo escândalo dos abusos sexuais que parece não ter fim, pelo silêncio que os encobriu durante tantos anos e que revela uma inescrupulosa e cruel gestão do poder. É este silêncio, este ter preferido a proteção dos carnífices à das vítimas, a consumir por dentro a confiança na instituição, não a fragilidade de muitos caídos no pecado.
A ligação que o autor vê entre a cobertura dos abusos e a necessidade de manter ocultos os segredos não foi, na minha opinião, tão generalizada: como motivação foi muito mais forte a de proteger a todo o custo a instituição que dava a cada um brilho e poder.
Mas há outro aspeto que emerge deste livro, um outro sinal de fechamento: considerar a Igreja como um mundo exclusivamente masculino, e portanto homófobo. As mulheres desaparecem até do elenco das transgressões, contam tão pouco que, quando se fala da Igreja católica, as mulheres desaparecem de cena. No fundo, também isto é uma maneira de eliminar os abusos contra as religiosas, numerosos e dramáticos, que pesam sobre a Igreja em todas as regiões do mundo, assim como as transgressões com mulheres que se veem mães de filhos abandonados e rejeitados, se não até abortados. E isso, mais uma vez, é imperdoável.