A propósito do «Pai Nosso»
No próximo dia 3 de Fevereiro passam cem anos
sobre
o nascimento de Simone Weil
«Pai nosso, que estais nos céus».
É o nosso Pai; não há nada de real em nós que não proceda dele. Pertencemos-lhe. Ele ama-nos, visto que se ama e nós lhe pertencemos. Mas é o Pai que está nos céus. Não em qualquer outro lugar. Se cremos ter um Pai neste mundo não é ele, é um falso Deus. Não podemos dar um único passo na sua direcção. Não se caminha verticalmente. Não podemos dirigir para ele senão o nosso olhar. Não há que procurá-lo, é necessário apenas mudar a direcção do olhar. É a ele que pertence procurar-nos. Há que estar feliz por saber que ele se encontra infinitamente fora do nosso alcance. Temos assim a certeza de que o mal em nós, mesmo se submerge todo o nosso ser, não macula minimamente a pureza, a felicidade, a perfeição divinas.
«Santificado seja o Vosso nome».
Só Deus tem o poder de se nomear a si mesmo. O seu nome não é pronunciável por lábios humanos. O seu nome é a sua palavra. É o Verbo. O nome de qualquer ser é um intermediário entre o espírito humano e esse ser, a única via pela qual o espírito humano pode captar algo desse ser quando este está ausente. Deus está ausente; está nos céus. O seu nome é, para o homem, a única possibilidade de a ele aceder. É o Mediador. O homem tem acesso a este nome, sendo este todavia transcendente. Ele brilha na beleza e ordem do mundo e na luz interior da alma humana. Este nome é a própria santidade; não há santidade fora dele; não tem, portanto, de ser santificado. Ao pedir esta santificação, pedimos o que é eternamente com uma plenitude de realidade à qual não está em nosso poder acrescentar ou subtrair sequer algo de infinitamente pequeno. Pedir o que é, o que é realmente, infalivelmente, eternamente, de uma maneira completamente independente do nosso pedido, é o pedido perfeito. Não nos podemos impedir de desejar; somos desejo; mas desse desejo que nos fixa ao imaginário, ao tempo, ao egoísmo, podemos, se o fizermos passar por inteiro através desse pedido, construir uma alavanca que nos arranque do imaginário para o real, do tempo para a eternidade, e para fora da prisão do eu.
«Venha a nós o Vosso reino».
Trata-se agora de algo que deve vir, que não está presente. O reino de Deus é o Espírito Santo preenchendo por completo toda a alma das criaturas inteligentes. O Espírito sopra onde quer. Não se pode senão chamá-lo. Não é sequer necessário pensar em chamá-lo de forma especial para que desça sobre nós, ou sobre estes ou aqueloutros, ou mesmo sobre todos, mas chamá-lo pura e simplesmente; que pensar nele seja um apelo e um grito. Assim como quando se está no limite da sede, quando se está doente de sede, não se representa mais o acto de beber em relação a si mesmo nem mesmo o acto de beber em geral. Representa-se apenas a água, a água nela mesma, mas esta imagem da água é como um grito de todo o ser.
«Seja feita a Vossa vontade».
Só em relação ao passado estamos absoluta, infalivelmente certos da vontade de Deus. Todos os acontecimentos que se produzem, sejam eles quais forem, são conformes à vontade do Pai todo-poderoso. A noção de omnipotência implica-o. Também o futuro, qualquer que ele seja, uma vez realizado, ter-se-á realizado conforme a vontade de Deus. Nada podemos acrescentar ou subtrair a esta conformidade. Assim, depois de um impulso de desejo em direcção ao possível, de novo, nesta frase, pedimos o que é. Mas já não uma realidade eterna como a santidade do Verbo. Aqui o objecto do nosso pedido é o que se produz no tempo. Mas pedimos a conformidade infalível e eterna do que se produz no tempo com a vontade divina. Depois de, através do primeiro pedido, termos arrancado o desejo ao tempo para o aplicar ao eterno, e de assim o termos transformado, voltamos a pegar nesse desejo, que se tornou ele próprio, de certa forma, eterno, para o aplicar, de novo, ao tempo. O nosso desejo perfura então o tempo para encontrar, por detrás, a eternidade. É o que acontece quando sabemos fazer de todo o acontecimento realizado, seja ele qual for, um objecto de desejo. Encontra-se aí coisa completamente diferente da resignação. Mesmo a palavra «aceitação» é demasiado débil. É necessário desejar que tudo o que se produziu se tenha produzido e nada mais. Não porque o que se produziu está bem aos nossos olhos; mas porque Deus o permitiu e a obediência do curso dos acontecimentos a Deus é, por si mesma, um bem absoluto.
«Assim na Terra como no céu».
Esta associação do nosso desejo à vontade omnipotente de Deus deve estender-se às coisas espirituais. Os nossos progressos e falhanços espirituais, e os dos seres que amamos, têm uma relação com o outro mundo, mas são também acontecimentos que se produzem neste mundo, no tempo. A esse título, são detalhes no imenso mar de acontecimentos, agitados, com todo esse mar, de modo conforme à vontade de Deus. Visto que os nossos falhanços passados se produziram, devemos desejar que eles se tenham produzido. E devemos estender esse desejo ao futuro para o dia em que este se torne passado. É uma correcção necessária ao pedido que o reino de Deus venha. Devemos trocar todos os desejos pelo da vida eterna, mas devemos desejar a própria vida eterna com renúncia. É necessário não se apegar sequer ao desapego. O apego à salvação é ainda mais perigoso do que os outros. É necessário pensar na vida eterna como se pensa na água quando se morre de sede, e, ao mesmo tempo, desejar para si e para os seres queridos a privação eterna dessa água em vez do preenchimento por ela contra a vontade de Deus, se tal coisa fosse concebível.
Os três pedidos precedentes relacionam-se com as três Pessoas da Trindade, o Filho, o Espírito e o Pai, e também com as três partes do tempo, presente, futuro e passado. Os três pedidos que se seguem incidem mais directamente sobre as três partes do tempo e numa ordem diferente, presente, passado, futuro. [ Continua ]
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30.01.2009
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