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Entrevista a Maria Helena da Rocha Pereira

Ela diz, com simplicidade. "Eu vivo com os antigos". E ninguém, em Portugal, o poderia dizer tão verdadeiramente.

Maria Helena da Rocha Pereira dedicou - dedica - a vida a estudar os gregos e os latinos: literatura, filosofia, ciência, história de arte, arqueologia. Ao longo de 40 anos, partilhou essa dedicação com milhares de pessoas, através de aulas na Universidade de Coimbra, e de mais de 300 trabalhos publicados, entre ensaios e traduções. Agora vai traduzir a "Ilíada" de Homero. Nada menos.

É pela sua mão que hoje se podem ler em português tragédias de Sófocles ou de Eurípedes, a filosofia de Platão, as odes de Píndaro, centenas de textos de geógrafos, historiadores, poetas, médicos ou artistas da Antiguidade Clássica.

Desde 1995, Maria Helena da Rocha Pereira é professora jubilada. Deixou de dar aulas, mas continua a orientar mestrados, a fazer conferências, a estudar. Vai publicar em breve "Sete Odes de Píndaro", na Grifo, e, para a mesma editora, tem como projecto próximo a tradução completa da "Ilíada" de Homero. Nada menos que 18 mil versos. E ainda diz que nem gosta de traduzir: "Faço porque me pedem. Fiz a "Helade" [antologia de cultura grega] porque os alunos não sabiam grego e não podiam ler os originais." As traduções de "Antígona" e de "Medeia", por exemplo, fê-las para o Thiasos, o grupo de teatro da universidade.

Escreve quase tudo à mão, nunca navegou na Internet - "Parece-me uma anarquia, para além de questões como as dos direitos de autor..." -, mas está muito atenta aos seus contemporâneos. Além dos gregos e latinos, estudou Eugénio de Andrade e Sophia de Mello Breyner, como já estudara Camões, Antero, Pessoa ou Torga.

Entre as peripécias da "Ilíada", aos 76 anos acabados de cumprir, esta portuense que veio a ser a primeira mulher catedrática da Universidade de Coimbra, ainda tenciona rever o segundo volume de "Estudos de Cultura Clássica", esgotado há muito, e editar um tratado de medicina medieval em latim, de Pedro Hispano. "Ah!", acrescenta, "estava-me a esquecer: tenho vasos gregos para estudar". E o olhar, muito azul, brilha. Como de cada vez que ela regressa a Aquiles, a Antígona, aos antigos.

 

Como foi a sua primeira visita à Grécia, a pisar as pedras, a entrar nos templos que tinha estudado?

Foi em 1953 ou 1954. Ia de Paris, atravessei a França e a Itália de comboio e cheguei ao extremo, a Bari. Aí atravessava-se de noite, de barco. Há um poema da Sophia em que ela descreve essa viagem: de manhã acordamos à vista da Grécia. Como tinha havido grandes tremores de terra, o canal de Corinto estava fechado à navegação, portanto, em vez de seguir, como a Sophia, pelo canal e chegar a Atenas, fomos à volta, pelo Peleponeso, como na Antiguidade, até ao porto de Pireu. Aí desembarcámos ao pôr-de-sol. Seguimos num autocarro para Atenas, levaram-nos ao sopé da Acrópole. A Acrópole é toda de mármore branco, não polido, tem umas reverberações extraordinárias, e vai mudando a coloração conforme a hora do dia. Àquela hora era tudo róseo. A minha situação era de não acreditar na realidade. Tinha à vista um dos meus sonhos.

Nesse tempo ainda era permitido entrar dentro do Pártenon - agora, não, porque senão ele desfaz-se - então eu entrei e... abracei-me a uma coluna! [risos] Não estava só a ver o que resta do Pártenon - uma parte explodiu na guerra turco-veneziana -, via tudo, a perfeição das linhas.

Foi uma visita inesquecível, estive em Corinto, Atenas, Elêusis, Delfos, Micenas, Argos, Epidauro, Creta, Corsira, Quios...

 

Ainda se pode ver a Grécia Antiga?

Há alguns poemas de Eugénio que falam de um turismo reles. Não é agradável ir à Acrópole e não ter onde pousar os pés, compreende-se imediatamente porque é que não se pode entrar nos monumentos, destruía-se tudo. Mas esse cuidado e os trabalhos de recuperação são positivos. Na primeira vez que fui, as estátuas da Acrópole ainda estavam no lugar, as Cariátides que sustentam o pórtico sul do Erécteion também, hoje estão retiradas por causa da poluição, e ainda bem. Foram substituídas por cópias, mas quem não souber não distingue.

 

Dedicou uma vida aos antigos. Como é que se emerge desse convívio íntimo para o presente?

Eu vivo com os antigos. A começar nos poemas homéricos, que são - talvez, nunca sabemos - do século VIII a. C. É a primeira obra escrita que temos. Mas não só apanho a antiguidade toda, como gosto muito de estudar os seus reflexos nos contemporâneos. Há uns anos, apresentei um livro de Manuel Alegre, e no fim estava com receio de que ele não tivesse gostado. Disse-lhe: "Estou habituada a lidar com poetas com 25 séculos ..."

Em relação aos antigos, a diferença espiritual, intelectual não é tão grande como parece: o homem é sempre o mesmo. Infelizmente, não perde os defeitos que tinha, por vezes não conserva as virtudes que já teve.

 

Em que medida avançámos?

Tecnicamente, é incomparável. Os últimos decénios já não se comparam sequer com a primeira metade do século XX, do ponto de vista do progresso material, que é espectacular. Mas que assenta nas primeiras descobertas dos gregos. A descoberta das funções da alavanca por Arquimedes, naquele tempo, era uma avanço espantoso, do ponto de vista da manipulação dos objectos, tão espantoso como os que lemos todos os dias nos jornais. Aliás, a ciência é um processo de avanços e recuos, e estudar história da ciência também é uma lição de humildade. Por exemplo, a teoria do átomo, de que toda a matéria é redutível a corpos mínimos, tem sido a obsessão dos cientistas ao longo dos séculos: algum dia chegaremos a uma verdade objectiva?

Se formos para a justiça, para a paz, as conclusões são terríveis. A propósito de crueldades praticadas pelos antigos, costumava dizer aos meus alunos: não se escandalizem, porque se houve século cruel na história foi o nosso. E isto passa-se nos nossos dias, ainda. O nosso tempo não é melhor, e com os meios audiovisuais o impacto da crueldade ainda é maior.

 

E isso ensina-nos o quê sobre o homem, sobre o que é imutável na natureza humana?

Há ideais políticos que partem dos gregos, por exemplo a noção de democracia, e que eles em grande parte realizam. Depois ao longo da história ela vai-se diluindo na maior parte dos povos. Reaparece sobretudo na revolução francesa, que também assenta em grandes desgraças. Mas é tão difícil de atingir esse ideal da democracia, avançámos muito pouco. Ainda hoje se discute se é melhor a democracia directa ou representativa. Os gregos usavam a representativa, e de um modo geral nós também. A Suíça tem um Cantão em que se usa a directa, reúnem todos... Mas é um Cantão.

 

É como se o nosso movimento fosse sempre de avanço e recuo, esquecendo o que está para trás. Não sente que cada vez mais, nas gerações mais novas, a presença da Antiguidade Clássica se diluiu?

Em parte. As futuras reformas terão de ter em conta a necessidade de conhecer, nas suas linhas gerais - não é saber as batalhas e as cláusulas dos tratados - o passado da humanidade. Há uma frase de Cícero: "Quem não estudou o passado é como se fosse sempre criança." Tem de haver uma noção de continuidade, até no sentido de nos desviarmos de um lugar do passado, quando vemos que ele está errado. Se não, estamos desligados.

 

Depois de tudo o que leu, de tudo o que foi guardando, vive estes dias com optimismo?

Não muito. Não sou política, entendo e gosto pouco de política. Mas no nosso tempo há um ideal de que muito gosto, o da União Europeia. Há pessoas que são contra esse ideal, e talvez não tenham noção de tudo o que está para trás, que aponta para aí. Houve tentativas no passado - a diferença é que eram à força, e esta é pelo entendimento entre nações que há pouco não se podiam ver.

Há uma alegoria maravilhosa, que representa o nascimento da justiça, instituindo portanto uma nova ordem social: a "Oresteia", de Ésquilo. É a passagem de uma sociedade primitiva quase tribal - e infelizmente nos nossos dias há sociedades tribais - a uma ordem jurídica, regular, aceite pela cidade.

 

A justiça será um dos ideais que nos vêm dos gregos. Diria que os nossos valores centrais se mantêm?

De um modo geral sim, mas não todos. O ideal heróico está em descrédito. Mas as grandes tragédias gregas vão à essência do homem, do que o homem pode viver. E continuam entre nós, em metamorfoses do original. Por exemplo, na "Antígona", de Sófocles, o rei dita uma lei segundo a qual não se dará sepultura a quem lutou contra a cidade. Mas Antígona não aceita que a lei humana se sobreponha à lei divina, que manda que se enterrem os mortos. Esta tragédia foi adaptada às mais variadas situações, como a ocupação da França na II Guerra: na encenação de Jean Anouilh, conta-se que quando se dizia aquela frase de Antígona: "E para quem vive no meio de tantas desgraças, que importa a morte?", o auditório ficava em transe, porque se sentia naquela situação. Há Antígonas por toda a parte, no Novo Mundo, em países africanos...

 

A sua tese de doutoramento é sobre as concepções de felicidade no além. As nossas concepções são assim tão diferentes?

Houve um período em que se julgava que depois da morte todos vão para o Hades, um lugar subterrâneo, sombrio, onde se tem uma existência incolor, de fantasmas. Depois, ao que parece em algumas religiões de mistérios, surge a noção de uma justiça no além. A ideia de que o destino tem a ver com o procedimento moral em vida já aparece numa ode de Píndaro, mas só se define bem nos mitos de Platão. É a visão de que o além não pode ser igual para os assassinos e para quem praticou o bem. E mantém-se hoje essa noção de que não acaba tudo aqui.

 

Qual é a sua crença, tendo nascido numa família católica?

Penso que o além é um estado de espírito, tal como o define São Paulo, e não um lugar.


 

Alexandra Lucas Coelho
In "Público", 06.09.2001
Publicado em 02.05.2008 | Atualizado (mudança de grafismo da página) em 09.07.2025

 

 
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