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Uma pergunta para viver: «Amas-me?»

Hoje ninguém pode colocar em dúvida que o cristianismo no Ocidente está em declínio. Não se trata apenas de admitir que as igrejas são cada vez menos frequentadas porque há quase que uma suspeita em relação às instituições. Não é apenas como reação aos muitos abusos eclesiásticos e estatais que o homem de hoje - nós - se tornou alérgico a qualquer género de instituição. O problema vai muito além. Teóricos reconhecidos declararam a ambiguidade das religiões, causa de inúmeras desordens e injustiças: ideologias fanáticas, manipulação da consciência, guerras...

O ceticismo generalizado, por isso, não influi só naquilo que é eclesial, mas também naquilo que é religioso e de facto considerado superado e irracional. Isto explica por que os cristãos de hoje vivem com embaraço numa Europa que não esconde uma certa rejeição ao cristianismo, por vezes quase um desprezo. Todos sabemos bem que tudo isso se traduz numa indiferença generalizada e uma exclusão dos cristãos da vida pública, ironia insidiosa, até tornar-se humilhação explícita. Há, todavia, infelizmente, algo mais. Esta crítica sistemática, sistematicamente difundida pelos meios de comunicação social, fez com que a suspeição perante o que é religioso se centre não só nos seus ritos, mitos e palavras da fé cristã, mas também nos seus pilares fundamentais: o próprio Jesus Cristo geralmente já deixou de ser visto como o Filho de Deus, mas apenas como um grande mestre, e portanto ao mesmo nível de outros mestres de outras tradições. A questão, portanto, é o que é que estamos a fazer e o que é que estamos dispostos a fazer.

Somos herdeiros de um património espiritual de primeiríssima ordem e é extremamente importante, por dever face à cultura e por fidelidade ao nosso passado, não só conservá-lo como ruma relíquia, mas também renová-lo para que possa continuar a ser portador de vida. Renovar significa revisitar, naturalmente, compreender bem o que foi deito, mas também reconsiderar e procurar novas fórmulas que, respeitando a tradição, não só a mantenham, mas permitam alcançar níveis mais altos para responder às necessidades espirituais das pessoas. Este é o objetivo do património espiritual que, se não alimenta a nossa interioridade, ainda que seja bom não tem vida. É certo, todavia, que este passado cristão parece demasiado pesado e fastidioso para as nossas costas, e é por isso que nos estamos a afastar dele. Estamos a renunciar à nossa herança, não podemos negá-lo. E o homem que renuncia ao seu passado, poderá saber onde está hoje e para onde se dirige no futuro?



O objetivo final da espiritualidade não é simplesmente a paz interior, mas sobretudo o amor para os outros. E isto deve ser sempre muito claro para gerar, entre nós, não uma espécie de aristocracia do espírito, mas sobretudo um maior sentido de humanidade



Alguns, quem sabe nós próprios, mais do que refutar a herança - atitude típica dos rebeldes - selecionam o que nos interessa, deixando de lado, quase sempre por preguiça ou por incompreensão, o que nos parecer estar hoje desatualizado. Esta atitude sincrética, que não consegue fecundar uma sábia tradição com outra, mas que se limita a uma caprichosa contraposição, gerou aquilo que os sociólogos denominaram "espiritualidade à carta", que define a maior parte dos denominados "buscadores espirituais". Esta escolha, como não poderia ser de outra forma, não é só egocêntrica enquanto coloca o indivíduo no centro, mas egoísta porque, colocando a centralidade no indivíduo, não se preocupa realmente com o outro. Uma meditação que não seja ditada pela compaixão não é meditação cristã, nem budista ou de qualquer outra religião. Alterar o significado de "espiritualidade" reduzindo-a a puro bem-estar físico e psíquico é hoje muito frequente. O objetivo final da espiritualidade não é simplesmente a paz interior, mas sobretudo o amor para os outros. E isto deve ser sempre muito claro para gerar, entre nós, não uma espécie de aristocracia do espírito, mas sobretudo um maior sentido de humanidade.

Tudo o que é cristão hoje é considerado no Ocidente, temos de o admitir, insignificante e quase desprezível. Algo a deixar definitivamente para trás, um contrassenso numa sociedade evoluída como a nossa, um paradoxo relativamente ao pensamento técnico e altamente civilizado. Mostrar-se orgulhoso de ser cristão ou, sem chegar a este ponto, testemunhar tranquilamente a sua convicção religiosa, considera-se hoje "politicamente incorreto", quase uma provocação. Este "húmus" alargou-se de tal modo que se pode dizer, sem exagerar, que hoje na Europa reina uma ignorância absoluta em relação a tudo o que se refere ao património bíblico, teológico, litúrgico e espiritual que oferece o cristianismo. Esta ignorância ganha terreno com os anos.

A principal responsável por esta deplorável situação é, a meu ver, a própria Igreja, que durante séculos lutou mais pela sua subsistência como instituição do que pelo reino de Deus. A Igreja católica é a primeira responsável, ainda que - naturalmente - não a única, por ter cedido, para o dizer nos termos do papa Francisco, à autorreferencialidade, isto é, por ter olhado para o seu próprio interior em vez de olhar para o mundo. Este é o principal pecado, isto é aquilo que como Igreja temos de redimir. E por isso, quer o saibamos quer não, viemos a este retiro: para começar um modesto mas necessário renovamento religioso e eclesial. Segundo o meu ponto de vista, nós, Os Amigos do Deserto, somos aqueles, juntamente com outros, que somos chamados a realizar esta tarefa.



O sonho de ser um homem que tem em si Deus está por cumprir-se. Estamos prontos para nos despertarmos. Porém, sentarmo-nos para meditar, dia após dia, com inabalável fidelidade e com humildade colocada à prova, é o sinal incontestável de que queremos escutar esta pergunta: «Pedro, filho de João, amas-me?»



Responder hoje para tornar possível uma vida interior não será possível se não escutarmos e respondermos primeiro a uma pergunta. Quando, após a ressurreição, Jesus Cristo aparece aos seus discípulos na margem do lago de Tiberíades e coloca a Simão Pedro por três vezes esta pergunta que formula também hoje a nós: «Pedro, filho de João, amas-me?» (João 21, 15-17). À sua resposta afirmativa, Jesus responde sempre com as mesmas palavras: «Apascenta as minhas ovelhas»; ou seja, cuida das pessoas que te estão próximas. O amor pelo Senhor realizar-se cuidando dos próprios semelhantes.

Pedro é o homem que renegou Jesus e se purificou com as suas lágrimas, sabemo-lo. Mas Pedro não é simplesmente um homem fogoso e fanfarrão, mas alguém que viveu a experiência da própria fragilidade. Por isso, humilde e mais do que nunca, é agora capaz de responder: «Senhor, Tu sabes tudo, sabes que te amo». É uma resposta que vem do coração, não do cérebro nem das vísceras. É uma resposta que olha para o horizonte mais nobre - o amor - mas com a consciências dos próprios limites e da fragilidade da carne.

Todas as declarações de amor brotam de um insucesso amoroso. O nosso sim à meditação cristã, a nossa aceitação desta imensa herança espiritual será confiável porque sabemos que não se pode construir sobre as nossas capacidades ou os nossos méritos - como tentaram as gerações que nos precederam -, mas apenas sobre Ele. E portanto, fixando o nosso olhar nele, e não em nós, esta é a vocação ao deserto à qual fomos convocados. Este é o ponto: só meditando podemos chegar a experimentar o olhar transformador de Jesus, esse olhar que faz de nós homens e mulheres novos. Só assim, meditando, se realiza o grande milagre: Deus dialoga com Deus, em silêncio, no cenário da alma humana. O sonho de ser um homem que tem em si Deus está por cumprir-se. Estamos prontos para nos despertarmos. Porém, sentarmo-nos para meditar, dia após dia, com inabalável fidelidade e com humildade colocada à prova, é o sinal incontestável de que queremos escutar esta pergunta: «Pedro, filho de João, amas-me?». A vida que levarmos, só isso, será a nossa resposta.


 

Pablo d'Ors
In L'Osservatore Romano
Trad.: SNPC
Publicado em 26.04.2018 | Atualizado em 10.10.2023

 

 
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