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Educação

No princípio era a Bíblia

A inclusão que habitualmente faço de textos bíblicos, nas aulas de Português, do Básico ao Secundário, com relevância para o Secundário nocturno, foi comentada, ironicamente, como um comportamento “catequizante” e, à luz das novas pedagogias, como uma resistência teimosa à “mudança que se impõe”, ou seja, o ensino centrado no aluno, exclusivamente nos seus interesses, com o consequente apagamento da atitude de transmissão de saber, função que julgo ser a de um professor. (…)

Relativamente aos textos bíblicos e à sua inclusão na sala de aula, na disciplina de Português, interrogo-me por que razão deverei impedir-me de falar com os alunos sobre a nossa relação, por vezes difícil e complicada, com Deus? Que nefastas consequências advirão para os alunos se os enriquecermos com a leitura de textos de uma grande obra literária – A Bíblia – aliás, imprescindível na análise e compreensão de tantos textos e títulos de obras de escritores programáticos ou não, nacionais e estrangeiros?

É impossível calar a presença indesmentível da simbologia sefardita, nas Cantigas de Amigo, em que se inscreve o célebre “Cântico dos Cânticos" de Salomão. Temos também a certeza que acrescentaremos alguma coisa aos alunos, dando-lhes a conhecer o humanista Damião de Góis (aquando da contextualização do poeta Luís de Camões) e possibilitando-lhes a leitura de alguns extractos da sua belíssima e interessante “Descrição de Lisboa” ou da sua tradução do livro bíblico do “Eclesiastes”, em cujo capítulo 9, versículo 18 se escreve: “Melhor é a sapiência que as armas da guerra (…)”. Estudando a Mensagem, de Fernando Pessoa, como será possível explicar aos alunos o conceito de “Quinto Império” senão indo às fontes? De novo se recuperam os textos bíblicos do Antigo Testamento, não só dos profetas Isaías e Ezequiel, que aludem à paz e à harmonia universal do reino messiânico, mas também do apóstolo S. João (Apocalipse) e do profeta Daniel, na interpretação que faz do sonho do rei Nabucadonosor, referindo que após a destruição dos quatro impérios (Assírio, Persa, Grego e Romano) Deus levantou um novo reino. Foi retomando e comentando o profeta Daniel que Vieira visionou o imperecível “Quinto Império, que o Deus do Céu há-de levantar nos últimos tempos dos outros anos (…) sem haver de ser conquistado ou destruído, como sucedeu (…) aos demais”.

Não foi por acaso que Picasso, ao desenhar a sua pomba, lhe colocou no bico um pequeno ramo de oliveira, cuja simbologia de paz se explica pela história bíblica da Arca de Noé e do Dilúvio. História essa que, aliás, Herman Hesse (autor que privilegio no ensino) também recupera no conto “O Europeu”, como forma de manifestar o seu repúdio contra o desencadear da 1ª grande guerra, metaforicamente um dilúvio universal. Como ler e interpretar, por exemplo, o conto “O Homem” de Sophia de Mello Breyner, assim como tantos dos seus poemas, sem se recorrer ao conhecimento cultural dos textos bíblicos do Novo Testamento?

Enriquecedor será igualmente falar aos alunos da influência cultural da Bíblia em escritores, que nela encontram títulos expressivos para as suas obras. Lembremos, entre tantos outros que poderiam ser citados, o escritor norte-americano John Steinbeck em As Vinhas da Ira, A Leste do Paraíso ou A um Deus Desconhecido, o escritor italiano Primo Levi, em Se não agora, quando?, ou ainda Mário de Carvalho, em Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde.

Fascinando-me muito a pintura de Marc Chagall, foi com extrema alegria que recolhi e interiorizei as suas palavras, com as quais termino o meu texto: “Desde a infância que a Bíblia me cativou. Sempre me pareceu, e ainda hoje me parece, a maior fonte de poesia que se pode imaginar".

Maria do Carmo Vieira

in Jornal de Letras, 19.12.2007

Publicado em 31.12.2007

 

 

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