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Estudo e tradução

A exigência dos clássicos

Sabe há muito que os Estudos Clássicos não são propriamente uma das licenciaturas mais procuradas pelos jovens, mas arvora, com justificado orgulho, a qualidade do trabalho dos alunos que doutorou - entre eles, Frederico Lourenço, poeta, romancista e tradutor para português da Ilíada e Odisseia. Falo de Aires do Nascimento, 68 anos, professor catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, agora distinguido com o Prémio de Tradução do PEN Clube por ter vertido para Português a versão original latina de Utopia, de Thomas More, publicada pela Fundação Gulbenkian, no âmbito das comemorações do 50.º aniversário da instituição.

A pergunta sobre o número diminuto de alunos que procuram os Estudos Clássicos não o incomoda: «Já era assim no meu tempo. Entrei na Faculdade de Letras em 1965 e a proporção era mais ou menos esta: 12 alunos inscritos em Clássicas, 300 em Românicas e outros 300 em Germânicas. Actualmente, a disparidade mantém-se até porque não cresceu a empregabilidade dos novos alunos já que o Latim e o Grego desapareceram dos programas do Ensino Secundário. No entanto, as pessoas que concluem este curso desenvolveram um apurado sentido das fontes e estão muito preparadas dos pontos de vista cultural, filológico linguístico e literário».

No seu caso, a opção Estudos Clássicos não correspondeu exactamente a uma vocação manifestada desde muito cedo, mas uma área de estudo que lhe pareceu interessante. Nunca se arrependeu: «Tive o privilégio de ser um dos últimos alunos licenciados pelo Prof. Rebelo Gonçalves, um grande mestre que adoeceria gravemente pouco depois. Os que, como eu, fôramos convidados a ficar como assistentes vimo-nos assim sem patrono ainda muito jovens».
O desafio foi de monta, até porque o 25 de Abril de 74 imporia mudanças radicais na sociedade portuguesa e, com ela, na universidade: «As pessoas esquecem frequentemente que a minha geração fez a universidade portuguesa de hoje, com todo o esforço que isso implicou e ainda implica. Enfrentámos, por vezes, dificuldades extremas». Aires do Nascimento recorda sobretudo o desafio que «o período posterior à revolução dos cravos em que tivemos de inventar outros modos de funcionamento, novos cursos e até novas relações humanas. De repente, descobríamos que o destino da instituição não dependia só dos órgãos de gestão mas também da nossa responsabilidade.»

Pouco antes, em 1972, no seu labor, que igualava em discrição o dos copistas medievais, Aires do Nascimento introduzira uma revolução tranquila. «Ainda estava a tentar posicionar-me no âmbito da minha disciplina quando me pediram para trabalhar o manuscrito de um importante texto latino medieval. Na altura, um professor muito importante da Universidade de Santiago de Compostela viu esse trabalho e recomendou-me que o aprofundasse na minha tese de doutoramento». A oportunidade era excelente - não só a Filologia Latina Medieval era uma área quase virgem no nosso pais, como o jovem doutorando decidiu aplicar-lhe um método novo de crítica textual baseado na computação, que até aí só se desenvolvia na Universidade de Lovaina: «Contactei com a IBM Portugal que reagiu de forma entusiasta, gizando um novo programa de tratamento de texto, Foi a primeira vez que, em Portugal, se fez este tipo de trabalho.

Nos anos que se seguiram, Aires do Nascimento desempenhou vários cargos universitários: foi coordenador do departamento de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras, vice-presidente do Conselho Científico e pró-reitor da Universidade de Lisboa, Mas as exigências destas tarefas não o afastaram da aturada investigação na sua disciplina, Entre muitos outros trabalhos que constam do seu curriculum, há que destacar o carácter pioneiro do que fez nos âmbitos da Codicologia (nomeadamente no scriptorium do Mosteiro de Alcobaça) e Filologia e Literatura Latina medieval (recuperando tipologias textuais menos conhecidas como hagiografias e livros de milagres). Com diversas recensões criticas publicadas em revistas da especialidade (Euphrosyne, Classica, Scriptoriurn, Gazette du Livre Mediéval, Revue Beige de Philologie et d’Histoire), assinou também diversas obras como Livro de Arautos (De Ministerio Armorum - Manchester, John Rylands Library, ms 28) - edição crítica, tradução e estudo codicológico e literário ou Innocentia Victrix siue Sententia Comitiorum Imperii Sinici pro Innocentia Christianae religionis iota juridice per annum, edição e tradução. Na área de Codicologia e História do Livro Manuscrito publicou Índice ao Inventário dos Códices Alcobacenses da Biblioteca Nacional de Lisboa. A tradução de Utopia, agora distinguida com os Prémios do PEN Clube e da União Latina é, para Aires do Nascimento, o culminar de uma carreira de mais de 35 anos. Tudo começou quando o Prof. Pina Martins, outro dos seus mestres, o desafiou para colaborar consigo na tradução do clássico de Thomas More, a editar pela Gulbenkian no ano do seu cinquentenário: «Senti que, pela personalidade que é e na sua qualidade de presidente da Academia das Ciências, ele tinha todo o direito de fazer este pedido a um seu antigo aluno. E, nessa situação, eu não podia deixar de aceder».

A deterioração da saúde de Pina Martins levou a que Aires do Nascimento assegurasse a finalização da obra, embora a edição conte com uma vasta introdução assinada pelo antigo presidente da Academia das Ciências: «São 150 páginas marcadas por um horizonte cultural imenso e pelo rigor a que Pina Martins nos habituou».

Este é, no dizer de Aires do Nascimento, um texto da maior importância histórica na medida em que o filósofo e chanceler inglês, então ainda um homem da maior confiança do Rei Henrique VIII (que, no entanto, o mandaria executar em 1535), «era um homem da maior cultura com uma grande sensibilidade ao que havia de novo nas sociedades europeias, nomeadamente à gesta dos Descobrimentos Portugueses». O convívio diário com a obra de More, ao longo dos cerca de dois anos que demorou a tradução, não foi isento de problemas, até porque a única tradução existente em Português pertencia ao filósofo José Marinho e parecia demasiado próxima das traduções inglesas da obra, escrita originalmente em Latim, enquanto esta se baseia numa edição fac-similada depositada na Biblioteca Nacional pelo próprio Pina Martins, ele próprio um bibliófilo de excepção. Aires do Nascimento teme, no ofício de tradutor, «o perigo de projectar a própria sombra, Com o objectivo de restituir a fidelidade ao texto, temos de entrar tanto quanto possível na pele do autor», O que nunca é totalmente conseguido.

O professor está perfeitamente consciente dessa fragilidade e admite: «Continuo a sentir-me um jovem estudante perante desafios desta dimensão».

Maria João Martins

in Jornal de Letras, 12.03.2008

26.03.2008

 

 

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Aires do Nascimento
Foto: João Ribeiro
















































































Imagem
S. Thomas More (1478-1535)
Pintura de Hans Holbein, o Jovem











































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