Bento XVI e o silencioso afastamento da prática da fé por parte dos católicos
Durante a viagem apostólica aos Estados Unidos (de 15 a 21 de Abril), Bento XVI respondeu a três perguntas formuladas pelos Bispos daquele país. Neste artigo transcrevemos a resposta do Papa à interrogação sobre um certo processo silencioso mediante o qual os católicos abandonam a prática da fé, por vezes através de uma decisão explícita, mas com maior frequência afastando-se passiva e gradualmente da participação na Missa e da identificação com a Igreja.
“Certamente, uma boa parte de tudo isto depende da progressiva redução de uma cultura religiosa, às vezes comparada de modo pejorativo com um “gueto”, que poderia reforçar a participação e a identificação com a Igreja. (...) Um dos grandes desafios para a Igreja neste país é o de cultivar uma identidade católica fundamentada não apenas em elementos exteriores, mas principalmente num modo de pensar e de agir enraizado no Evangelho e enriquecido com a tradição viva da Igreja.
Este tema implica claramente factores como o individualismo religioso e o escândalo. Mas vamos ao cerne da questão: a fé não pode sobreviver se não for alimentada, se não é ‘activa na prática do amor’ (GI 5,6). As pessoas têm hoje dificuldades em encontrar Deus nas nossas igrejas? A nossa pregação perdeu, porventura, o sal que lhe é próprio? Não será que tudo isto se deve ao facto de muitos terem esquecido, ou nunca terem aprendido, como rezar na e com a Igreja?
Não falo aqui de pessoas que deixam a Igreja em busca de ‘experiências’ religiosas subjectivas; este é um tema pastoral que deve ser enfrentado nos seus próprios termos. Penso que estamos a falar de pessoas que se desviaram do caminho, sem ter conscientemente rejeitado a fé em Cristo, mas que, por um motivo qualquer, não receberam a força vital da liturgia, dos sacramentos e da pregação. E no entanto a fé cristã, como sabemos, é essencialmente eclesial, e sem um vínculo vivo com a comunidade, nunca alcançará a sua maturidade. Para voltar à questão que acaba de ser debatida: o resultado pode ser uma silenciosa apostasia.
Por isso, permiti-me fazer duas breves observações sobre o problema do ‘processo de abandono’, que, espero, estimulem ulteriores reflexões.
Em primeiro lugar, como sabeis, torna-se cada vez mais difícil nas sociedades ocidentais falar de maneira sensata de ‘salvação’. E no entanto a salvação – a libertação da realidade do mal e o dom de uma vida nova e livre em Cristo – está no coração do Evangelho. Como eu já disse, temos que redescobrir modos novos e atractivos de proclamar esta mensagem e de despertar uma sede dessa plenitude que somente Cristo pode dar. É na liturgia da Igreja, e sobretudo no sacramento da Eucaristia, que estas realidades se manifestam do modo mais poderoso e se vivem na existência dos crentes; talvez tenhamos ainda muito a fazer, para realizar a visão do Concílio a respeito da liturgia, como exercício do sacerdócio comum e como impulso para um apostolado frutuoso no mundo.
Em segundo lugar, devemos reconhecer com preocupação o quase completo eclipse de um sentido escatológico em muitas das nossas sociedades tradicionalmente cristãs. Como sabeis, formulei esta problemática na Encíclica ‘Spe Salvi’. É suficiente dizer que fé e esperança não são limitadas a este mundo: como virtudes teologais, elas unem-nos ao Senhor e levam-nos ao cumprimento não apenas do nosso destino, mas também do destino de toda a criação. A fé e a esperança são a inspiração e a base dos nossos esforços em vista de nos prepararmos para a vinda do Reino de Deus. No Cristianismo não pode haver lugar para uma religião meramente privada: Cristo é o Salvador do mundo e, como membros do seu Corpo e participantes dos seus «munera» profético, sacerdotal e real, não podemos separar o nosso amor por Ele do compromisso pela edificação da Igreja e pela ampliação do Reino. Na medida em que a religião se torna uma questão puramente particular, ela perde a sua própria alma.
Permitam-me concluir, afirmando o óbvio. Os campos estão já hoje prontos para a colheita (cf. Jo 4,35); Deus continua a fazer crescer a messe (cf. 1 Cor 3,6). Podemos e devemos crer, juntamente com o saudoso Papa João Paulo II, que Deus está a preparar uma nova Primavera para a cristandade (cf. Redemptoris missio, 86).” (...)
in Lumen, Maio/Junho 2008
25.07.2008
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