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Eça de Queirós

O caminho-de-ferro de Jerusalém

A inauguração do caminho-de-ferro entre Jafa e Jerusalém é o tema da crónica inédita de Eça de Queirós, revelada pelo Jornal de Letras. Assinado com o pseudónimo de João Gomes, este texto, publicado na edição de 17.10.1892 da Gazeta de Notícias (Rio de Janeiro) foi descoberto pela investigadora Irene Fialho enquanto trabalhava, com Carlos Reis e Maria João Simões, na preparação da edição crítica de A Correspondência de Fradique Mendes.

«A obra horrenda está consumada: - e Jesus, se ainda não se lembra da terra e dos homens, que tão mal lho merecem, pode na verdade gemer de novo o seu consumatum est! Desde ontem ficou concluído, ficou aberto, com as locomotivas acesas, fumegando e silvando, o Caminho-de-ferro de Jaffa para Jerusalém! O Progresso, sujo ainda com a felugem deste feito, e contente, esfrega as suas mãos de aço!

É em Jaffa, a antiquíssima Jeppo, já falada e rica antes do Dilúvio, que se ergue, com os seus alpendres, a sua carvoeira, as suas balanças, a sua sineta áspera, o seu chefe de boné agaloado, a primeira Estação desta Estrada de Ferro, entre esses laranjais, tão gabados pelo Evangelho, onde S. Pedro, chamado pelos brados das mulheres, ressuscitou Dorcas, a tecedeira, e a ajudou a sair do seu sepulcro. Daí a locomotiva, com os seus vagões de 1.ª classe, forrados de chita, atravessa a planície de Saaron, tão particularmente amada do céu, e que, nos intervalos das guerras Filistínicas, se cobria toda de açucenas e rodas; corta através de Beth-Dagon, e mistura o pó do seu carvão de Cardiff ao vetusto pó do Templo Fenício, que Sansão, mudo e repassado de tristeza, derrocou movendo os ombros; e rola por sobre Lydda, e atroa com os sues guinchos o grande S. Jorge, que ali dorme o seu sono terrestre; toma água, por um tubo de couro, do Poço Santo donde a Virgem na fugida para o Egipto, repousando o figueiral, deu de beber ao Menino; pára em Ramleh, que é a velha Arimateia (Arimateia, quinze minutos de demora!) a pátria do homem que enterrou o Senhor; fura em túneis fumarentos, as severas colinas de Judá, onde choraram os profetas; rompe por entre ruínas que foram outrora a valente cidadela e são hoje a sepultura dos Macabeus; galga, numa ponte de ferro, a torrente onde David errante escolhia pedras para a sua funda justiceira; corre através do vale melancólico que habitou Jeremias; passa ainda a Emaus, transpõe a torrente do Cédron, e estaca enfim, arquejando, no vale de Hénon, no terminus de Jerusalém.

Tal é o seu sacrossanto itinerário: - e eu que não sou engenheiro, nem accionista desta Companhia dos Caminhos-de-ferro da Palestina, mas um velho peregrino desses lugares adoráveis, tenho a caturrice de considerar esta obra de civilização como uma obra de profanação. S. Pedro ressuscitando a velha Dorcas; a florescência milagrosa das roseiras de Saaron; Sansão e a sua desconsolação e a sua força; o Menino bebendo, na sua fuga para o Egipro, á sombra das árvores, que os anjos iam adiante, semeando. São talvez fábulas: mas são fábulas que há dois mil anos têm dado a energia moral a um terço da Humanidade.

Os lugares onde se passavam estes factos, decerto muito simples e muito humanos, que depois, através da imaginação e pela necessidade que a alma tem de Divino, se transformaram na adorável mitologia cristã, são por isso veneráveis perante a religião como perante a história. Todo o céu, todos os seres excepcionais que hoje formam para o crente, a corte do céu, desde Jacob a S. Paulo, viveram, combateram, ensinaram, padeceram, naqueles lugares – que por isso muito justamente se denominam santos. Jeová só ali se mostrava no seu terrífico esplendor, no tempo em que visitava os homens.

Todos os deuses nascem no Oriente – mas a Palestina foi decerto a residência mais grata da divindade. Daí lhe ficou esse dom único na terra, de tornar mais piedosos e melhores, e mais toleradores da vida, e mais fortes em esperança, aqueles que vão em peregrinação respirar esse ar, que ainda conserva o perfume da passagem dos anjos, e pisar esse solo onde ainda não se apagaram as pegadas divinas.

A Terra-Santa constitui assim um perpétuo fermento de ilusão. Mas a ilusão é tão útil como a certeza – e na formação de todo o espírito, para que ele seja completo, devem entrar tanto os Contos de Fadas como os problemas de Euclides. Destruir pois a influência moral, religiosa e mesmo poética da Terra-Santa, tanto sobre os corações simples como sobre as inteligências cultas, é um retrocesso na verdadeira civilização. Ora, locomotivas correndo entre Jerusalém, Jericó, Nazaré, Belém, a Galileia, a Samaria, com os seus guinchos, a sua pressa rude, a sua fealdade, o seu desenvolvimento paralelo e de estações, restaurantes, hotéis, ónibus e outros et coeteras inevitáveis e grosseiros destroem irremediavelmente essa influência da poética Terra-dos-Milagres, porque a modernizam e a materializam.

Essa influência encantadora da Palestina de que provinha? Unicamente de ela se ter conservado através destes quatro mil anos, imutavelmente bíblica e evangélica. Decerto existem hoje em Israel, modificações introduzidas pelo muçulmanismo; a administração turca é menos completa e eficaz que a administração romana; os vergéis e jardins que cercavam Jerusalém desapareceram; certas cidades perderam o seu heróico feitio de cidadelas; o vinho é raro; e não duvido que aqui e além, em Sião, se gema ao piano a valsa de Madame Angot. Mas todas estas alterações são de exterioridade.

A vida íntima, a sua forma rural, urbana ou nómada, as maneiras, os costumes, os cerimoniais, as construções, os trajes, os utensílios, – tudo permanece idêntico ao que era nos tempos de Abraão e nos tempos de Jesus. Entrar na Palestina é como penetrar numa Bíblia real e viva. As tendas de pele de cabra plantadas à sombra dos sicómoros; o pastor, apoiado à sua alta lança, seguido do seu rebanho; as mulheres, de túnica azul e branca, cantando a caminho da fonte, com o seu cântaro no ombro; o montanhês, atirando a funda às águias; os velhos sentados, pela frescura da tarde à porta das vilas muradas; os claros terraços cheios de pombas; o escriba que passa com o seu tinteiro dependurado da cinta; as servas à porta moendo o grão; o homem de longos cabelos nazarenos que nos saúda com a palavra de paz! e que conversa connosco por parábolas; a hospedeira que nos acolhe atirando para nós passarmos um tapete ante o limiar da sua morada; e ainda os longos mantos às riscas brancas e pardas, e os bastões com uma flor esculpida, e as jóias, e os perfumes, – tudo imediatamente coloca o peregrino na velha Judeia das Escrituras, e de um modo tão presente e tangível, que a cada momento se espera ver Jesus surgir a uma volta do caminho, no meio dos seus amigos.

É esta imutabilidade da Terra-Santa que lhe dá a sua estranha e subtil influência sobre as almas. A história ou lenda que cada um tem na memória adquire logo, na sua decoração natural, onde se não desmanchou uma linha nem uma só cor desbotou – uma realidade tão intensa, que parece, passados momentos, que não a aprendemos num livro, mas que a testemunhamos, que andamos nela envolvidos, e que a nossa alma está agora nela recebendo a sua verdadeira iniciação.

Esta sensação, preciosa para o crente, não o é menos para o céptico, (quando inteligente) porque o põe numa comunhão directa, intrínseca, com um dos mais maravilhosos momentos da História Humana. Decerto seria igualmente interessante (mais interessante talvez) que se pudesse colher a mesma emoção intelectual na Grécia, e que aí encontrássemos ainda, viva e idêntica, nos seus mesmos trajes, nas suas maneiras, na sua sociabilidade, na sua cultura, o seu viver, a grande Atenas de Péricles. Infelizmente, essa Atenas incomparável jaz morta, para sempre soterrada, desfeita em pó, sob a Atenas romana e a Atenas bizantina, e a Atenas bárbara, e a Atenas muçulmana, e a Atenas constitucional, com o seu parlamento e o seu deficit. Por toda a parte hoje, o cenário da história está esfrangalhado e em ruínas. Os próprios montes perderam, ao que parece, a configuração clássica: e ninguém pode achar no Lácio, o rio, e o fresco vale que Virgílio habitou e tão suavemente cantou. Um único sítio da terra permanecia ainda com os aspectos, os costumes, os trajes, e o viver, com que o tinham visto, e de que tinham partilhado os homens que deram ao mundo uma das suas mais altas transformações; e esse sítio era um pedaço da Judeia, e a Samaria, e a Galileia.

Ora, a modernização da Terra-Santa é certa, logo que através dela comecem a silvar e a fumigar esses caminhos-de-ferro, que, mais que nenhum outro elemento da nossa civilização, têm a propriedade de reduzir todas as regiões e todos os costumes, os mais urgentes e originais ao protótipo querido deste século, que é o distrito de Liverpool ou Marselha.

Ninguém mais do que eu, decerto, aprecia e venera o caminho-de-ferro: - e ser-me-ia penoso o ter de jornadear de Lisboa para o Porto; ou de Madrid para Paris, como Jesus subia o vale de Jericó para Jerusalém, escarranchado num burro. As coisas mais úteis, porém, são importunas, e mesmo escandalosas quando invadem brutalmente lugares que lhes não são congéneres. Nada há mais necessário na vida do que um restaurante; e todavia ninguém, por mais descrente e irreverente, desejaria que se instalasse um restaurante com a sua vulgaridade, as suas mesas, o seu tinir de pratos, o seu cheiro a guisados, - nas naves de Notre-Dame, ou na velha Sé de Coimbra. Um caminho-de-ferro é obra excelente, entre Paris e Bordéus – Entre Jericó e Jerusalém, basta a égua ligeira, que se aluga por dois dracmas, e a tenda de lona que se planta à tarde, entre os palmares, à beira de uma água clara, e onde se dorme tão deliciosamente sob a paz radiante das estrelas da Síria.

E é justamente essa água árabe, e a tenda, o camelo grave que leva o rancho, e a escolta flamejante de beduínos, e as frescas paragens junto aos poços bíblicos, e as longas recordações do Passado, à noite, em torno à fogueira do acampamento, que fazem o encanto da jornada, e atraem o homem de gosto, que ama as emoções verdadeiras. Quando de Jerusalém se partir para a Galileia, num wagon estridente e cheio de pó, ninguém fará essa peregrinação magnífica, - a não ser o destro commis-voyageur, que vende pelos bazares chitas de Manchester ou panos vermelhos de Sedan.

É bem possível por isso que esta Companhia dos Caminhos-de-ferro da Palestina venha a recolher os seus wagons vazios e inúteis, aos depósitos de Marselha, seu elemento natural.

Será essa uma pura alegria para todos os espíritos cultos – que não forem accionistas. Mas, se ela florescer, se o peregrino adoptar para isso da sua fé, ou da sua curiosidade histórica, a “grande velocidade a 200 réis por quilómetro” – então a obra horrenda ficará imutavelmente consumada, e para sempre estabelecida na terra dos milagres, na Sião Redentora e brilhante de claridade.

E, dentro de poucos anos, o homem positivo, que de manhã partir da velha Jeppo, no seu wagon de 1.ª classe, e comprar na estação de Gaza a Gazeta Liberal do Sinai, e jantar divertidamente em Ramleh no Grand-Hotel dos Macabeus, irá, à noite, em Jerusalém, através da Via Dolorosa, iluminada pela electricidade, beber um bock e bater três carambolas no Casino do Santo Sepulcro!

E tudo isto, (afirmaram as gentes graves desde Brindisi até Glasgow) será Progresso, maravilhoso Progresso!»

João Gomes (Eça de Queirós)

in Jornal de Letras, 30.07.2008

14.08.2008

 

 

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