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Teologia

Cinco vias ou cinco impasses?

Tomás propõe cinco vias pelas quais podemos, partindo das realidades do movimento, dos efeitos produzidos no mundo, das coisas contingentes, dos diferentes graus de perfeição presentes nos seres, da ordem e do governo das coisas, remontar a Deus como a primeira fonte de toda a transformação, a primeira causa, o ser necessário, o ser mais perfeito, o ordenador do mundo.

À vista disto, a história da metafísica do séc. XIII parece, nos nossos dias, como uma empresa de detomistificação. Cada uma destas vias conheceu os repetidos assaltos de filósofos, esforçando-se por obstruir uma, de minar a outra, declarando-as impraticáveis, vistas como ruinosas tanto pela ciência como pela fé, em suma: transformando estas vias em impasses ou em caminhos abandonados. As vias acabaram por se assemelharem aos impenetráveis trilhos conducentes ao castelo da Bela Adormecida.

A via que Tomás apresenta como a mais explícita perdeu, para nós, a sua transparência. De facto, quando nos fala de movimento, parece entender toda a sorte de transformações, e não somente de mudança de lugar. O arrefecimento de um corpo é para Tomás um exemplo de movimento segundo a sua qualidade. Seja o que for, a realidade do movimento não mais nos remete para uma fonte transcendente, porque estimamos que as leis da natureza, por exemplo a lei fundamental da Dinâmica, que compreende que a soma das forças exteriores exercidas sobre um móvel determina, em quantidade e direcção, a aceleração desse corpo, proporcionalmente à sua massa ( ), explicam suficientemente. Mas pode ser que as leis do movimento nos ocultem a explicação metafísica do movimento, que deverá ser uma explicação última, e não uma simples exposição das condições ou dos antecedentes dos movimentos.  Ali, Tomás ignora o princípio da inércia e da dinâmica newtoniana, e não dispõe senão da teoria aristotélica para conceber o movimento. O movimento, segundo Aristóteles, é actualização de um potencial: «mover é fazer passar da potência ao acto». Como é que se opera tal passagem? Espontaneamente? Afirmá-lo seria renunciar a uma explicação racional. Se é sob a acção de um qualquer agente que se produz tal transformação, que agente será esse? Doutro modo, é necessário entender por movimento, aqui, bem mais do que o movimento local: o arrefecimento de um corpo, por exemplo, entra na categoria de movimento. Mas a questão não é essa: trata-se, antes, de determinar se uma transformação física é ultimamente explicável pela física ou reclama por um primeiro operador de transformação, chamado «primeiro motor».

A primeira via é então tributária de uma física «ultrapassada», pois que é metafisicamente que Tomás, na esteira de Aristóteles, interroga as condições últimas do movimento em todas as suas formas. Portanto, a via não está ultrapassada. Ela supõe que uma qualquer realidade não opera, de si mesma, as suas transformações, e que todas as transformações são, em definitivo, operadas pela acção de uma realidade imutável.

Resta, pelo menos, discutir um outro ponto: a possibilidade ou não de remontar ao infinito no encadeamento das fontes motrizes e dos movimentos produzidos.

 

Remontar ao infinito na sucessão das causas?

Porque não haverá uma sucessão infinita de motores, ou um motor primeiro? Mais genericamente, podemos conceber uma série infinita de transformações físicas? Ou é necessário parar a dado momento? Aquilo que parece evidente a Tomás sê-lo-á também para nós?

Num artigo consagrado a esta questão, Patterson Brown retoma as distinções precisadas por Duns Scot entre causas ordenadas por si ou essencialmente ordenadas e causas ordenadas acidentalmente: «nas causas ordenadas essencialmente, a segunda depende da primeira precisamente no acto da sua causação. Nas causas ordenadas acidentalmente não se dá esse caso, mesmo se a segunda possa depender da primeira a fim de existir ou de uma outra maneira. Assim, um filho depende do pai para a sua existência, mas não depende dele para exercer a sua própria causalidade [o mesmo é dizer, para engendrar ele mesmo uma criança], pois que também ele pode passar ao acto [de engendrar], quer o seu pai seja vivo ou morto».
O argumento de Patterson Brown consiste em afirmar:

1) Podemos conceber uma regressão ao infinito das causas acidentalmente ordenadas;

2) Contudo, a existência dessa série infinita não se sustém por si só, e reclama por uma ou por causas essencialmente ordenadas;

3) A série das causas essencialmente ordenadas não pode ser infinita: existe, portanto, uma primeira causa de existência das coisas, responsável do seu poder de causar.

Desenvolvamos cada um destes pontos.

1.
Pela razão natural, «avançar até ao infinito nas causas operativas, tal não pode ser dito impossível». Tomás admite a possibilidade de uma regressão ao infinito, caso concirna às causas produtoras acidentais: é acidental para aquele homem, considerado como progenitor, haver sido, ele mesmo, engendrado por um outro; é enquanto homem que ele engendra, e não enquanto filho dum outro homem […]. Não é, pois, impossível para um homem ser engendrado pelo homem até ao infinito.

2.
Para Tomás, como para Aristóteles, o número de causas intermediárias não importa: «contando que tenham a natureza de causas intermediárias, elas não podem ser a primeira causa do movimento». O  antecedente imediato, intermediário na série de causas eficientes, não basta para explicar o acto de causalidade donde transmite o efeito ao consequente. Scot radicaliza este argumento: «mesmo se o conjunto dos seres causados fosse infinito, eles dependeriam ainda de qualquer coisa exterior a tal conjunto».

A explicação física de um estado do mundo pelo estado precedente, numa regressão ao infinito, não é incompatível com uma explicação metafísica da existência mesma desses estados, com as suas leis de transformação. Portanto, são duas coisas tão diferentes como o são o autor de um livro que perdurou, em sendo recopiado de um exemplar para outro, e os copistas que o retranscrevem […].

Podemos então admitir uma série infinita de causas acidentalmente ordenadas (por exemplo, das gerações sem começo nem fim, ou as reedições sucessivas de um exemplar) mas a existência em si mesma da geração e dos membros da série em geral reclama por uma causa essencialmente ordenada, ou seja, uma causa da qual dependa a existência de cada causa e o seu poder de exercer a sua causalidade.

Se alguma causa intermediária não é a primeira causa do movimento, como o será uma infinidade de causas intermediárias? Esta questão conduz-nos ao confronto com o sofisma da composição: não podemos concluir sempre, a partir de uma propriedade comum a todas as partes, uma propriedade de conjunto. Um muro de tijolos pesando um quilo cada um não pesa um quilo. Mas um muro de tijolos em que cada um é vermelho será vermelho.

Patterson Brown releva uma hipótese entrevista por Ockham, que é precisamente a de Hume:

Todo o conjunto das causas essencialmente e acidentalmente ordenadas é causado, mas não por uma qualquer coisa que faça parte desse conjunto, nem que lhe é exterior, mas uma parte é causada por qualquer coisa que faz parte desse conjunto, e uma outra por outra, e assim sucessivamente até ao infinito.

Acordámos, com Tomás, a possibilidade de uma regressão infinita de causas acidentalmente ordenadas. Mas e quanto à série de causas essencialmente ordenadas?

3.
Numa série de causas ordenadas essencialmente, a relação de causalidade é transitiva (tal não é o caso das causas ordenadas acidentalmente: Abraão gera Isaac, Isaac gera Jacob, Abraão não gera Jacob). Porque não poderá ela regressar indefinidamente? Tudo depende do conceito de causa que tenhamos. Ou entendemos, por causa, somente um antecedente coordenado com o seu sucessor segundo um hábito de concomitância ou uma regra de consecução. Ou a causa será aquilo que, pelo seu acto, é responsável pela produção do efeito. E a transitividade dessa responsabilidade reclama por um primeiro responsável: «É claro que todo o movendo é movido pelo motor que é precedente (anôterô) mas mais ainda pelo anterior (proteron) dos motores»(1). A forteriori, quando é necessário explicar a existência das coisas, é necessário remontar a uma primeira causa.

 

Entretanto, poder-se-á remontar ao infinito na séria das causas essencialmente ordenadas? Porque não haverá uma infinidade de causas plenamente responsáveis pela existência do efeito e do seu poder causal?

Patterson Brown propõe uma ilustração um pouco derrotista desse conceito de causalidade-responsabilidade: o Sr. Alpha, um automobilista estacionado, sofre uma colisão pela traseira. A análise legal do acidente revela que o veículo do Sr. Beta, responsável por esse estrago, sofrera também ele uma colisão por parte do veículo do Sr. Gama fora forçado a colidir, e assim sucessivamente, indefinidamente. A quem reclamará a seguradora do Sr. Alpha os danos? Pode uma pilha de automóveis comportar um número infinito de veículos? Não bastou, apesar de tudo, apenas um primeiro veículo para começar a colidir com o da dianteira? Não faltará uma explicação última para aquela pilha? Estamos bem diante de um caso de causas essencialmente ordenadas: cada veículo depende da viatura anterior para colidir com a seguinte. Reportar ao infinito a causa da pilha de automóveis, em descartando definitivamente uma causa primeira, é aceitar deixá-la sem responsável.

Do mesmo modo, a primeira via de Tomás reclama uma explicação última do poder causal das coisas.

A segunda via repousa como a primeira sobre a impossibilidade de remontar ao infinito no encadeamento das causas. Ora aqui, não bastam somente as causas do movimento (ou da transformação) mas as causas produtoras da existência. O que é que produz, ultimamente, a existência das coisas? Donde devêm as coisas? A questão é agora mais radical, ou mais facilmente a recusar, pois que podemos bem, com Hume, recusá-la: «todo o objecto que comece a existir deverá necessariamente a sua existência a uma causa?». Mas se admitimos que aquilo que começa a existir deve a sua existência a uma causa, o problema da regressão ao infinito não está regulado, portanto; do mesmo modo, o arrazoamento da segunda via tem um ar circular. É claro que uma coisa não pode ser causa produtora de si mesma.  É igualmente claro que «se pudéssemos avançar ao infinito na série das causas produtoras, não haveria causas primeiras». É claro, ainda, que se suprimimos a causa, suprimimos do mesmo modo o efeito (como diz o adágio: sublata causa, tollitur effectus).  Ele não se sustém sem primeira causa, não tem efeitos intermediários e últimos, a menos que se suponha o que procuramos demonstrar: que todo o efeito depende, [por] via [das] causas intermediárias, de uma primeira causa produtora. Porque não haverá um conjunto indefinido de causas produtoras de existência? A resposta de Tomás, como vimos precedentemente, assenta sobre a noção de causas essencialmente ordenadas. Eis porque a exposição dessa segunda via começa pela alusão àquela ordem de causas.

A terceira via foi baptizada argumento a contingentia mundi. Ela assenta também sobre a impossibilidade de uma regressão das causas ao infinito, mas acrescenta as considerações da modalidade. Tomás considera que a contingência das coisas pode interromper a cadeia da existência. Ele reflecte, assim, em função de um princípio de plenitude, segundo o qual uma possibilidade é sempre realizada num ou noutro momento. A possibilidade de não existir, reconhecida aos seres contingentes, deve realizar-se mais cedo ou mais tarde. É por isso que Tomás escreve: «aquilo que pode não existir é inexistente num dado momento». Mas sobretudo ele estende essa contingência ao mundo, tomado em bloco: «Se então tudo pode não existir, a um dado momento, nada tem existência».

Contra a extensão deste princípio, podemos objectar a concepção de um conjunto de existências contingentes alternando-se indefinidamente: alguma não será necessária, mas a possibilidade de existir será a todo o momento actualizada pelo menos por uma delas.

A quarta via é bastante estrangeira ao pensamento contemporâneo. Para cada qualidade, existe um ser no qual ela se realiza no mais alto grau. Sem dúvida. Um livro de recordes objectivo dar-nos-á as coordenadas dessa realidade, para cada qualidade perspectivada. Mas o que é que garante a existência de um campeão [em] todas as categorias, o que possuirá o mais alto grau de cada perfeição? Bastará invocar a autoridade de Aristóteles para afirmar que o ser, a verdade, o bem culminam numa só e mesma realidade? Tomás admite num outro [passo] que o ser que possui uma qualidade em grau máximo é causa da presença dessa qualidade para todos os outros. Não podemos dar senão o que temos. Deste modo, se não há senão uma única causa de todas essas qualidades, nada tem de espantoso que os seus máximos respectivos coincidam num mesmo ser: «É esse que nós chamamos Deus».

A quinta via é, desta feita, deveras clássica. Ela afirma que as performances constantes ou frequentes dos seres naturais privadas de conhecimento e de intenção não se explicam senão pela intervenção de um ser inteligente. Esta é a via físico-teológica por excelência.

 

(1) Física, 257a10-13.

Paul Clavier

in Qu’est-ce que la théologie naturelle?, Librairie Philosophique J. Vrin, Paris, 2004, pp. 93-100

RF

Publicado em 12.02.2008

 

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