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Bento XVI nos Estados Unidos

A comunhão eucarística e as posições divergentes da doutrina da Igreja Católica

Uma das consequências da visita de Bento XVI aos Estados Unidos foi o debate aberto naquele país sobre a recepção da comunhão eucarística por parte de responsáveis políticos que têm defendido posições divergentes da doutrina católica.

As numerosas notícias sobre o caso envolveram especialmente Rudolph Giuliani, antigo presidente da Câmara de Nova Iorque. Mas a polémica inclui também personalidades como Nancy Pelosi, actual presidente da Câmara dos Representantes, e os senadores John Kerry (antigo candidato do Partido Republicano à Presidência) e Edward Kennedy. Todos aceitam a escolha do aborto.

Durante alguns dias, este gesto não provocou qualquer reacção. Mas o silêncio foi interrompido por um artigo de Robert Novak no Washington Post, a 28 de Abril. O colunista, depois de sublinhar que aqueles políticos receberam a comunhão das mãos, não do Papa, mas do Núncio Apostólico nos Estados Unidos, recordou que o então cardeal Ratzinger escreveu, em 2004, que as pessoas defensoras da livre escolha não deveriam receber a comunhão eucarística.

Acusado pelo articulista de desobediência ao Papa pelo facto de ter convidado Giuliani para a Missa presidida por Bento XVI, o arcebispo de Nova Iorque emitiu um comunicado lamentando a conduta do ex-«mayor», dado que ela foi contra um acordo estabelecido por ambos há alguns anos: ficou então decidido que Giuliani não receberia a comunhão devido à sua posição favorável ao aborto.

O porta-voz de Giuliani não demorou muito tempo a responder, referindo que o antigo presidente tinha todo o interesse em se encontrar com o prelado, dado que a sua fé é um assunto de carácter pessoal e que deve permanecer confidencial.

Já em 2004, aquando da campanha para a Presidência, John Kerry viu recusada a comunhão pelo arcebispo de St. Louis, apesar de a opção de outros prelados ser ter sido diferente.

Esta divisão parece manter-se actualmente. Apesar de Bento XVI não ter mudado de opinião face ao que defendia antes de chegar ao pontificado, os bispos dos Estados Unidos, reunidos em assembleia, decidiram por maioria que cabe a cada bispo optar por conceder ou não a comunhão a políticos favoráveis ao aborto.

O tema foi abordado pela jornalista Bárbara Wong no Público de 27 de Abril:

«O ex-mayor de Nova Iorque, casado pela terceira vez e pró-aborto, tomou a hóstia durante a missa celebrada por Bento XVI. Por que é que foi um escândalo? Há padres que se recusam a dar a comunhão a divorciados. Os que não o fazem defendem que se trata de uma questão de consciência e que a consciência é pessoal. (...)

Para os católicos, a comunhão é um sacramento, tal como a confissão e o matrimónio. Por isso, comungar durante a missa não é um acto leviano, porque os cristãos acreditam que naquele pedaço de pão está Jesus Cristo e que quem comunga deve estar em comunhão com a mensagem de Cristo e com a doutrina da Igreja. Ora, se é lei para o Vaticano que o matrimónio é um sacramento indissolúvel – durante a cerimónia, o padre é peremptório: "Não separe o homem o que Deus uniu" -, se Giuliani quebrou essa aliança com Deus, logo da primeira vez que se divorciou, não deveria comungar. (...)

À saída da missa na catedral de Nova Iorque, Giuliani foi confrontado pela Reuters, que lhe perguntou se se sentia mal com o que acabara de fazer, e a resposta foi, coerentemente, que "não".

"A questão da sagrada comunhão é uma questão de consciência e a consciência é pessoal. Nenhum de nós pode negar a comunhão a ninguém", defende o padre Caesar Rubiano, da diocese de Trenton, citado pelo Daily News. "Se uma pessoa acredita que é o melhor para si, então é uma questão de escolha pessoal", acrescenta.»

O gesto de Giuliani foi igualmente comentado por Pedro Mexia, no seu blog:

«(...) A decisão de comungar é, em qualquer caso, uma escolha individual; uma questão de consciência de cada católico. Não digo que Giuliani “fez bem”. Ele é que sabe se fez bem. Também não defendo uma “desobediência civil” generalizada; mas sei e sinto que aquela proibição é injusta e quase ofensiva. Um divórcio é um fracasso. Um novo casamento é uma esperança. A Igreja não pode castigar quem fracassa nem quem reconstitui a esperança.

Este castigo é especialmente grave para um católico: afasta-se o crente do único acto da missa que tem uma dimensão especificamente transcendente. Sem a comunhão, a eucaristia é um ritual de leitura comentada e oração; mas com a comunhão, a eucaristia é um acto radical que separa os crentes dos não-crentes. Um acto que pela sua natureza afasta os agnósticos e os crentes que não se sentem dignos de receber a hóstia. Giuliani achou que era digno. Nenhum de nós sabe se ele tem razão.

É admissível que se exclua alguém da comunhão por causa de actos gravíssimos e incomuns. Mas voltar a casar depois de um divórcio é um acto comum e nada censurável. A proibição da Igreja tresanda a "lei iníqua".

Giuliani, não importa se por fé ou política, infringiu a lei. E o padre que o viu à frente não lhe recusou a hóstia. Dada a notoriedade de Giuliani, o acto apareceu em todas em notícias. Imagino que muitos estranhem tal bizantinice. Eu acho que foi um momento interessantíssimo na história cultural do cristianismo.»

Rudolph Giuliani

E na Igreja portuguesa, que opiniões há sobre o assunto? A jornalista Bárbara Wong, no artigo acima referido, fez a pergunta a alguns padres.

«"Se é um caso público, o padre não devia ter dado a comunhão", responde Saturino Gomes, director do Instituto de Direito Canónico, da Universidade Católica Portuguesa. "Quem está divorciado ou recasado não deve comungar. Com a defesa do aborto é a mesma coisa, porque está em dissonância com a Igreja", explica.

São Paulo diz, na primeira Carta aos Coríntios, que os que querem comungar devem fazer um exame de consciência e avisa: "Quem come e bebe sem discernimento o Corpo [de Cristo], come e bebe a própria condenação." Também o Código de Direito Canónico define que quem estiver em "pecado grave não celebre a missa nem comungue o Corpo do Senhor sem se confessar". Mas os divorciados também não se podem confessar.

Portanto, a lei é clara. E a prática? Essa é mais ambígua. O "Público" falou com alguns sacerdotes que dizem conhecer casos que, à luz da Igreja, não cumprem os requisitos para comungar, mas que se trata de pessoas que estão integradas em comunidades onde não é polémico fazê-lo. Outras são aconselhadas a ir à missa a lugares onde não são conhecidas, precisamente para não causarem escândalo ao comungar. Cada caso é um caso e há situações onde o exemplo cristão dessas pessoas passa precisamente por não comungarem. "Existem casais que sentem que o seu primeiro casamento não foi válido e vivem em fidelidade, mas digo-lhes para não comungarem, porque é uma forma bonita de expressarem que estão em comunhão com a Igreja", defende Ildo Fortes, pároco de Carcavelos.

Em Lisboa, o cónego Carlos Paes acompanha casais divorciados que voltaram a casar.

"Oficialmente, as pessoas romperam uma aliança e por isso não se devem aproximar da eucaristia, mas isso não significa que tenham sido excomungadas ou que estejam de castigo. O que se passa é que a Igreja não se sente autorizada [a dar a comunhão], enquanto não se provar que a primeira aliança não foi efectiva", explica.

Os documentos da Igreja propõem dar assistência a estas famílias, o que Carlos Paes faz através das Equipas de Santa Isabel, um movimento reconhecido pela hierarquia. Estes casais podem, "à sua maneira, participar"; não podem é comungar, confessar-se ou participar em nenhum sacramento. Esta questão "é experimentada de forma dolorosa pelos casais cristãos", reconhece o padre, avançando que este é um assunto que continua a merecer a atenção dos bispos e de toda a Igreja.

José Cruz jamais recusou dar a hóstia. "Seria uma vergonha, seria como apontar o dedo em público", considera o capelão hospitalar da Cuf Descobertas e de Santo António dos Capuchos, em Lisboa. A sua atitude, explica, passa por falar em privado, ouvir a história de vida e aconselhar espiritualmente essa pessoa. Quantas vezes, não estão presas a um casamento que não foi verdadeiro, questiona. "Penso sempre: Se Cristo estivesse aqui, o que é que Ele faria? Cristo ensina-nos a acolher a pessoa como ela é, no seu todo. Como é que eu posso negar o Pão do Céu a alguém que está à beira da morte?", exemplifica.

O anonimato de uma cidade com alguma dimensão como Alverca do Ribatejo permite que o prior não conheça todas as pessoas, mas, volta e meia, há quem lhe chame a atenção para determinado indivíduo que pertence a uma seita, que foi à bruxa, que vive em união de facto ou que se recasou, conta José Maria Cortes. "Nesses casos, falo com essas pessoas, ouço-as e se, objectivamente, a coisa se confirma, digo que o melhor é não comungar", diz o sacerdote. Às vezes, esses impedimentos podem resolver-se. O pároco da Igreja dos Pastorinhos, em Alverca, já tem celebrado casamentos de pessoas que viviam juntas. "Sempre que for possível, ajudamos a regularizar a situação."

As histórias de cada um devem ser conversadas "numa lógica de amor, mais do que legalista", considera Carlos Azevedo, capelão do Hospital D. Estefânia, em Lisboa, que não deixa de salvaguardar: "É importante que as pessoas tenham algum decoro, porque não vale tudo."

O padre José Cruz concorda e cita a Bíblia, lembrando a mulher adúltera que foi apresentada a Jesus, com a sugestão de ser apedrejada: "Quem de entre vós estiver sem pecado seja o primeiro a atirar-lhe uma pedra", disse Jesus à multidão, que acabou por se dispersar. "Ninguém te condenou? Também eu não te condeno. Vai e de agora em diante não peques mais", diz à mulher. "É possível fazer um caminho. O tempo de hoje coloca-nos questões que não podemos responder apenas com a lei, mas com a misericórdia", interpreta o capelão.

É Deus que "em última análise julga", diz Carlos Paes, que não nega a comunhão a ninguém. "A decisão última é do crente", avalia. Essa é "uma motivação interior que não deve ser condenada. Devemos evitar fazer juízos, porque a pessoa pode ter feito um caminho de reparação que o padre desconhece", conclui José Luís Costa, pároco de Caxias e Porto Salvo e capelão do hospital prisional de S. João de Deus.»

Público | Estado Civil | rm

07.05.2008

 

 

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