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História

O Eremitismo em Portugal a partir da Idade Média

A vida eremítica sempre surgiu, aos olhos do homem medieval, como o modelo por excelência de uma via radicalmente entregue à busca e ao encontro com Deus. Figuras como Antão, Paulo de Tebas, Macário ou Hilarião, são repetidamente propostos como ideal dessa experiência integral, intensa, de Deus, obtida pelo afastamento do bulício do mundo e através de uma vida austera, de luta interior contra o mal, que se prolonga necessariamente no confronto exterior com um meio adverso e hostil. Desde a segunda metade do século III, quando estes homens se instalam nos desertos do Egipto e muitos outros se juntam a eles, desejosos de imitar o seu modo de vida sob a sua direcção espiritual, o eremitismo configura-se nessa tensão permanente entre a procura da solidão e os tempos necessários de vida em comunidade e de abertura ao mundo, do qual se afastara mas para o qual se dirige o seu testemunho como apelo e denúncia.

A difusão, no Ocidente, dos textos que perpetuavam a memória dos ditos e feitos destes homens do deserto, fará despoletar uma diversidade grande de experiências, onde a vida eremítica se mistura, nos percursos individuais, com a experiência comunitária, ora antecedendo a fundação de novas ordens ou famílias religiosas, ora surgindo como o culminar da vida monástica. Assim o previa a “Regra de S. Bento”, bem consciente da excelência deste modo de vida mas também as suas exigências, ao determinar que o monge pudesse solicitar ao abade do seu mosteiro a necessária permissão para o ingresso na vida eremítica, sempre sob a vigilância deste e apenas após um tempo, mais ou menos longo, de vida em comunidade.

Contudo, o eremitismo permaneceu também como uma forma de vida alternativa, resistente ao enquadramento numa comunidade religiosa sujeita a uma Regra ou à direcção de um superior. Os testemunhos documentais são, por vezes, fugidios e parcos de informações, e mesmo os vestígios materiais relativos a este tipo de experiências debatem-se com o carácter precário destes grupos, que acabam, muitas vezes, por ser absorvidos por novos movimentos religiosos ou que se extinguem após a morte do respectivo fundador. Ainda assim, encontramos, já no âmbito do chamado monaquismo hispânico, anterior à época de expansão da Regra de S. Bento ou da de Santo Agostinho como textos normativos obrigatórios (séc. XI), alguns testemunhos arqueológicos da existência de comunidades eremíticas no actual território português, nas margens do Rio Minho e no entre Lima e Minho.

Do mesmo modo, José Mattoso pôde recensear, para os séculos XII e XIII, numa época de crescimento demográfico e de expansão territorial dos reinos cristãos para sul, o proliferar deste tipo de experiências, muitas das quais de curta existência e outras paulatinamente absorvidas pelas novas ordens religiosas entretanto surgidas (Cister, Premonstratenses, Cónegos Regrantes de Santa Cruz de Coimbra). Da sua análise sobressaem, contudo, alguns aspectos respeitantes à relação entre os eremitas e o espaço que se manterão, em grande parte, válidos para o período posterior. Com efeito, a sua busca de solidão, se os leva a procurar espaços menos povoados e afastados dos principais núcleos habitados, exige também que deles não se distanciem em excesso. A necessidade de visibilidade do seu modo de vida, como testemunho de radicalidade na vivência do Evangelho e na renúncia aos bens materiais ao poder social ou político, a sua dependência face à prodigalidade dos diferentes corpos sociais e a sua actividade em prol dos mais necessitados, por meio da hospitalidade concedida aos mais pobres, aos viandantes e peregrinos, leva-os a instalarem-se perto das principais vias de comunicação. Uma solidão que se torna, assim, relativa ou, pelo menos, não absoluta.

O mesmo veremos acontecer mais tarde, já nos finais da Idade Média, quando um novo surto eremítico, documentado a partir de 1360, leva a uma rápida expansão de comunidade de anacoretas por todo o Nordeste alentejano e pela península de Setúbal, estendendo-se mesmo à Estremadura (Óbidos e Alenquer) e ao Algarve (Tavira). Estamos já num contexto diferente, onde a longa crise dos séculos XIV e XV, as conturbações políticas que atravessam os reinos peninsulares e a grave crise que afecta toda a Cristandade, com o Papado dividido, durante várias décadas, entre Roma e Avinhão, geram um profundo desejo de reforma também ao nível religioso.

Ditos a si próprios como “homens da pobre vida”, estes eremitas escolherão lugares afastados dos núcleos populacionais, nos vastos termos rurais que envolviam as vilas e as cidades do sul do país, dedicando-se a uma vida que aliava a oração, à qual os seus benfeitores se confiam, ao trabalho manual nas terras que, pelas suas próprias mãos, retiravam ao inculto. Doadas por particulares ou pelos concelhos, estas terras levam os ermitérios a adquirir uma configuração particular. Habitados por pequenos grupos de anacoretas – os solitários depressa atraem discípulos... – os ermitérios apresentam-se, em regra, delimitados por uma cerca, que preservava a solidão dos seus habitantes, junto à qual se encontram com frequência algumas terras de vinha, mais exigentes dos cuidados do homem, ou mesmo de pão, sempre ponteadas por árvores de fruto. O inculto facultava também aos eremitas alguns recursos importantes, desde o mel à madeira e ao mato, necessário ao pascigo do gado. Mas, na sua localização, o ermitério tinha sempre em conta um factor fundamental: a proximidade de um curso de água, indispensável para os seus habitantes, para as suas culturas e para o gado.

Mas, tal como para os eremitas do século XII, também estes homens da pobre vida necessitavam da proximidade das vilas e cidades, onde se deslocam para adquirir alguns bens de que precisam ou para colocar à venda, através de intermediários, os bens resultantes do seu trabalho manual, sejam os frutos da terra, algum gado ou mesmo alguma produção artesanal – sobretudo as colheres de madeira, amplamente referidas na documentação. E também nas suas casas acolhem peregrinos e viandantes, exercendo para com eles a hospitalidade.

Do espaço para as suas orações e para as celebrações litúrgicas, pouco sabemos. É certo que alguns ermitérios têm, nas suas imediações, pequenas capelas rurais. Mas também desde cedo o despojamento a que se votam leva-os a optar por outras alternativas, nomeadamente a obtenção de licença para a posse de altares portáteis, que permitiam a celebração da Eucaristia fora de espaços especificamente consagrados ao culto divino.

Surgidas a partir de uma iniciativa individual ou de pequenos grupos de eremitas, estas comunidades da “pobre vida” obterão desde cedo a protecção régia e dos concelhos, sobretudo a partir do reinado de João I (1385-1433). A necessidade de assegurar o seu modo de vida leva-as a congregarem-se numa irmandade, cerca de 1460, em torno da prestigiada cada da Serra de Ossa (concelho de Redondo). Só no século XVI se submeterão a uma Regra escrita e autorizada pela Igreja (a de Santo Agostinho) e se transformarão, já em 1578, numa Congregação autónoma filiada na Ordem dos Eremitas de S. Paulo Primeiro Eremita (os chamados Paulistas). Esta transformação marcará uma progressiva alteração no seu modo de vida, com uma clericalização dos seus membros, uma maior importância dada aos estudos e à formação letrada e uma maior preocupação em aproximarem-se das cidades e vilas, onde constroem novos conventos.

Isto levará a um maciço abandono, a partir dos finais do século XVI, dos antigos ermitérios medievais, deixando-os, até hoje, á espera de um efectivo levantamento dos vestígios que deles sobreviveram e que nos possam falar um pouco mais do quotidiano destes primeiros eremitas e do modo como deixaram vincado, no espaço, a sua procura de solidão.

João Luís Fontes

Instituto de Estudos Medievais, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa

in Pedra e Cal, Abril/Maio/Junho 2008

08.09.2008

 

 

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