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Diálogo intercultural

Jovens chineses em Portugal: entre duas culturas

A segunda geração. Nasceram em Portugal ou vieram para cá ainda pequenos. Seja como for, os filhos dos imigrantes chineses estão completamente integrados na comunidade portuguesa. Quanto melhor falam a língua, melhor é essa integração. Há contudo aqueles que preferem viver imersos na comunidade chinesa, por acharem que têm mais coisas em comum. Afinal, já diz o provérbio chinês, "uma árvore não faz uma floresta". Viver na China não está nos planos deles, mas também não é algo que afastam completamente. Para já, limitam-se a visitar a terra dos pais para conhecer um pouco mais das suas origens.


Histórias dos filhos de imigrantes chineses que cresceram cá

O sotaque não engana ninguém. Estamos perante uma mulher do Norte, que mostra com orgulho a cidade em que nasceu e cresceu, da Ribeira até à Foz. Uma jovem como tantas outras portuguesas, não fosse o facto de ter os olhos em bico, chamar-se Ai Lin Chow e ser descendente de um dos primeiros chineses a chegar a Portugal. O bisavô vendia gravatas nas ruas do Porto, as mesmas que ela agora percorre, aos 29 anos, ao lado da prima Cláudia e dos amigos Mónica, Li Shu, Li Bei e Zhu Yiki. Portugueses divididos entre as duas culturas.

"Confesso que são poucos os amigos chineses que tenho. Os meus grandes amigos são portugueses. Sinto que nós estamos bastante integrados na sociedade em que nascemos", diz Ai Lin, sentada no restaurante dos tios, um dos mais antigos do Porto, junto ao tabuleiro superior da Ponte D. Luís. Do outro lado do Douro, mostra--nos a igreja da serra do Pilar, com o seu claustro circular, onde casou com um "transmontano".

Baptizada desde os oito anos "por opção", depois de os pais terem perguntado que religião queria seguir, conta que toda a cerimónia de casamento foi muito portuguesa. "A decoração era, contudo, baseada nas tradições chinesas, com vermelho, a cor da sorte, e dourado. Além disso, cada mesa no copo de água tinha o nome de um bonsai" - os mesmos que agora tem em casa. Os filhos, quando os tiver, vão crescer a ouvir o português e o chinês.

Licenciada em Engenharia Ambiental, Ai Lin não é a primeira da família a casar com um português nem a primeira a optar por um trabalho diferente do tradicional: "Tenho duas tias que tiraram Medicina." O mesmo curso que a prima Cláudia, de 17 anos, gostaria de tirar, mas a média deverá empurrá-la para Enfermagem: "Tem de ser ligado à saúde." Não é contudo de estranhar ver uma licenciada ou doutorada a servir à mesa. "Nós não ligamos muito a estratos sociais. A comunidade apoia-se muito uns nos noutros. Sempre que precisamos de ajuda recorremos em primeiro lugar à família."

"Nasci cá, tenho os meus amigos cá, sempre andei em escolas portuguesas. A maioria dos chineses que têm mais amigos dentro da comunidade é porque falam mal a língua", refere Cláudia, que admite preferir a comida portuguesa, porque afinal "como todos os dias comida chinesa".

As duas primas falam chinês em casa, mas entre si optam pelo português. Ambas tiveram aulas de mandarim, mas por uma ou outra razão deixaram os estudos e Ai Lin fica um pouco atrapalhada quando tem de reconhecer que nem o nome em caracteres chineses sabe escrever. "Quando fui à China, há dois ou três anos, as pessoas perceberam logo que eu tinha um sotaque estranho e perguntaram-me se era turista", lembra, dizendo contudo que não teve dificuldades de comunicação, como aconteceu com a prima: "A língua é muito mais difícil do que eu pensava." Ainda assim, Ai Lin diz ter tido uma espécie de choque cultural: "Gostei muito de lá estar, apesar de não me ter identificado com a cultura. Aqui em Portugal, uma pessoa não consegue acompanhar a cultura a 100%."

A amiga, Li Shu, e a irmã, Li Bei, sentem-se totalmente divididas entre as duas culturas. "Nós nascemos na China e viemos para Portugal quando éramos muito novinhas. Os nossos pais sempre tiveram a visão de que devíamos manter algo da cultura chinesa. Por isso, a nossa educação em casa sempre foi muito chinesa. Só que a minha educação formal, a escola, os amigos, sempre foi portuguesa", explica a irmã mais velha, de 24 anos. "Tenho tanto de ocidental como de chinesa", refere, dizendo que no seu MP3 metade da música é oriental.

Numa coisa Li Shu é totalmente chinesa: "Não consigo estar num café ou numa esplanada o dia inteiro sem fazer nada. É muito aborrecido. Nós somos mais racionais no uso do tempo." Ai Lin concorda: "A nossa comunidade está habituada a fazer coisas úteis. Sentimos que é um desperdício de tempo estar sentado num café. De vez em quando sabe bem, mas por um curto espaço de tempo."

Na última visita à China, numas férias de Verão, as irmãs depararam-se com um país completamente diferente, em constante mudança. "Tenho a impressão que se voltar lá é sempre diferente", diz Li Bei, de 21 anos. Em todo o caso, nenhuma sentiu o choque cultural de Ai Lin. "Devido à educação chinesa que tivemos em casa, sabemos como devemos lidar com as diferentes culturas", conta Li Shu.

Ao seu lado, Zhu Yiki concorda: "A mim não me faz qualquer diferença, não tenho grandes dificuldades em viver entre as duas culturas", diz o estudante de Economia, que é também modelo, depois de ter sido "descoberto" no meio da rua. Já Mónica, de 17 anos, viveu até aos cinco na China e não se lembra de sentir qualquer diferença. E regressar? "Talvez, mas não é o meu sonho", reconhece. Li Shu é mais prática: "Eu sou daquelas pessoas que não gosta de ficar muito tempo no mesmo sítio. Se for para a China é melhor. Passei sempre períodos muito curtos de tempo lá e gostava de ter essa experiência." Os pais, que até há pouco tempo tinham um restaurante, optaram por regressar à China depois da crise desencadeada pelas inspecções da ASAE, procurando outras áreas de negócio.


O hábito do trabalho

São 18h30 e a família de Maria Jin Ye está a jantar. Na mesa há beringela, uma espécie de feijão verde seco e galinha. A acompanhar, o arroz e o caldo de feijão. Uma comida bastante diferente dos chow min e chop suey que vão servir aos primeiros clientes, que não tardam a chegar ao restaurante Hua Li, em Paço de Arcos, propriedade da família há seis anos. A conversa decorre no dialecto da região em que os pais nasceram, Zhe Jiang. Mas o português - "Tá a perceber?" - sai-lhe tão facilmente como o mandarim, que aprende na escola desde os 10 anos, na televisão chinesa que vê através do satélite e nos romances que compra nas lojas do Martim Moniz.

Maria nasceu há 18 anos em Coimbra, seis anos depois da irmã, que veio da China ainda bebé. Com o 12.º ano acabado, espera entrar no curso de Direcção e Gestão Hoteleira, no Estoril, na esperança de depois montar o seu próprio negócio. Por enquanto, e como as aulas acabaram, ajuda os pais: primeiro na loja em Oeiras e depois no restaurante. "364 dias e meio por ano." O restaurante só está fechado na tarde da véspera de Natal, um dia de festa também para a família.

Além da mais velha, Maria tem outra irmã de 16 anos e um irmão de 13. Quanto mais novos, mais facilidade têm em interagir com os portugueses: "O chinês dele não é muito bom", diz em relação ao irmão, a torcer o nariz. Mas esta jovem de sorriso fácil, baixinha, não se imagina uma filha única. "Eu até queria que fossem mais. A minha mãe esforçou-se para ter um rapaz, isso eu sei..."

A maioria dos seus amigos são chineses. "Temos mais em comum. Há mais tópicos de conversa. Estamos mais à vontade porque temos os mesmos princípios", reconhece. "Os portugueses gostam muito de ir à praia, de ir a festas, e nós não temos tempo. Depois de estar a trabalhar, gostamos mais de vir para casa descansar. Só quando há convites para uma festa de anos ou algum encontro é que saímos", diz Maria. Normalmente o destino é o bowling, o snooker ou simplesmente as compras. E não esquecer, é claro, o karaoke.

Apesar disso, Maria sente-se uma verdadeira portuguesa e não imagina, para já, um futuro na China. "Talvez um dia, quem sabe." A longa viagem até à terra natal dos pais e avós já a fez várias vezes, mas não sentiu grandes choques culturais. "É quase a mesma coisa, só que eles acordam muito mais cedo", indicou. "Tá a perceber?"

A cultura do trabalho é-lhes incutida desde que são novos. "Estamos sempre dependentes do trabalho, sabemos que sem o restaurante e a loja não conseguimos viver. É de onde vem o dinheiro", afirma. "Estamos habituados a pensar que o trabalho é algo de que não nos podemos separar." Em primeiro lugar, trabalham para acabar o curso. "Os nossos pais não querem que tenhamos o mesmo destino que eles. Porque sabem que a vida deles é cansativa, apesar de nunca nos dizerem..."

Outro local que Maria gosta de frequentar é o templo budista, perto de Cabo Ruivo, em Lisboa, onde tem acesso a mais um pouco da cultura chinesa. "Para mim, a religião é muito importante, eu aprendo muita coisa no templo. Os ensinamentos da mestre fazem-nos acordar." Com um grupo de amigos está a tentar relançar as actividades para jovens: "O objectivo é aprender a religião, perceber os ensinamentos de buda e discutir o que é o budismo."


Descansar só ao domingo

"O que é um 'chinoca'?", pergunta Yi Dong, de 23 anos. Esse era o nome que alguns colegas lhe chamavam, quando chegou a Portugal, tinha então dez anos. De Wenzhou, "terra de emigrantes, de onde todos saem", ainda se lembra, especialmente da "casa velha". Apesar de viver praticamente imerso na comunidade chinesa, especialmente depois de ter deixado a escola no 11.º ano para ajudar os pais, sente-se também já um português.

Na sala de orações da Associação Cultural Evangélica Chinesa, onde os jovens evangélicos acabaram de realizar mais uma reunião, Yi Dong reconhece que agora já não tem amigos portugueses. Porquê? "Eu vou trabalhar e os outros vão estudar. São dois mundos diferentes. Há uma grande diferença entre nós." Que diferença pode haver: "Nós trabalhamos muito, vocês não."

Ao seu lado, Peiling Ruan concorda. Também ela, hoje com 19 anos, deixou os estudos no final da escolaridade obrigatória para poder ajudar os pais, que têm um armazém de revenda e um restaurante. "O meu dia-a-dia é a trabalhar. Só descansamos ao domingo, quando vamos à missa", diz, num português mais arrastado, menos seguro. Ela ainda tem um ou dois amigos portugueses, mas é difícil manter a ligação. "Quando eu tenho tempo, eles não têm tempo."

Já houve uma altura em que Yi Dong lamentava ter deixado a escola e queria continuar os estudos, mas agora já não: "Já estou demasiado bem", refere. No dia de folga, o domingo, vai à missa e, "quando calha", sai com os amigos. "Vamos ao Colombo, às lojas, passear, jogar bowling. Mas temos pouco tempo", reconhece.

Em casa, não mantém nenhuma tradição especial. E apesar de todos falarem mandarim, os irmãos mais novos falam melhor o português. O sobrinho de dez anos até já tem uma namorada portuguesa. E a família aceita? Yi Dong repete o que os seus pais costumam dizer: "Podes namorar com elas, casar é que não..."

Na igreja tem oportunidade de conhecer muitos jovens. Depois da missa para a comunidade, os mais novos reúnem-se para mais orações e cânticos. No último domingo assistiram ainda a um filme que mostrava as raízes do cristianismo na China, de como a palavra de Deus foi sendo substituída pela do imperador, primeiro, e depois pela do Governo. "Mas agora há mais gente a acreditar em Deus e que ele virá para nos salvar", disse Yi Dong, lembrando que a situação religiosa na China já está muito melhor. "Antigamente éramos perseguidos."

Regressar, só para fazer mais uma visita. "É muito estranho porque cada vez que lá vamos, não reconhecemos a nossa cidade", conta, satisfeito pelo seu país estar a receber os Jogos Olímpicos. "É mais um sinal de abertura."

A história de Yi Dong e dos outros oito jovens chineses que vivem em Portugal é só mais uma. Como diz o provérbio chinês: "Uma árvore não faz uma floresta." Haverá por isso outras centenas de histórias que vale a pena conhecer, numa comunidade que tem a fama de ser fechada mas que nos recebe sempre com um sorriso aberto.

Susana Salvador

in Diário de Notícias, 09.08.2008

12.08.2008

 

 

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