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Arquitectura

Quatro magnólias - Uma arquitectura de silêncio

Publicado pela Relógio d'Água Editores, o livro "30 Exemplos - Arquitectura Portuguesa no Virar do Século XX" é uma selecção dos textos escritos pelo arquitecto Manuel Graça Dias para o "Expresso" nos últimos três anos.

Escreve o autor sobre a obra: "Segui quase sempre o mesmo método: visitar [sempre que possível acompanhado pelo(s) autor(es)] a obra, o espaço construído; andar por lá, deixar-me levar, seguindo sugestões que me iam fazendo ou que eu entendia propor.

Perguntas ligeiras acertavam a minha percepção; bisbilhotar; olhar por trás, por dentro, as caixas construídas; perguntar à flor da pele, mais por paixão do que por curiosidade racional.

Mais tarde analisava os desenhos reduzidos que me faziam chegar. Compreendia às vezes, só então, as razões geométricas que nos tinham conduzido os passos. Se fosse preciso, pelo telefone, unia bocados do puzzle, concluía impressões, raciocínios.

Depois escrevia. Numa 'primeira parte', ganhava espaço e embalagem, situando o problema num todo mais vasto, mais largo, cada projecto parecendo-me sempre caber num dos muitos temas que atravessam a cidade contemporânea: desenvolvia alguns conceitos, apontava mitos, tentava baralhar ideias feitas. Depois, procurava descrever, no essencial, a obra que visitara."

Dos 30 exemplos propostos por Manuel Graça Dias, propomos o texto e as fotografias da Capela Mortuária de Santa Eulália, situada em Oliveira do Douro. O projecto (1994-1998) é do Arq.º José Fernando Gonçalves.

Oliveira do Douro era, até aqui há uns vinte, trinta anos, uma freguesia no concelho de Vila Nova de Gaia respirando ruralidade, dividida por muros de pedra e caminhos marcados por plátanos antigos.

Descíamos a Avenida da República, já nessa altura densa de automóveis e trolleys, e, bruscamente (imaginávamo-nos a mudar de página, a mudar de tempo), virávamos para Oliveira do Douro. Lembro-me mal, mas recordo uma estrada logo diferente, as paredes cheias de musgo, os paralelepípedos de granito, bocados de quintas estendidas até ao rio.

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Passaram-se alguns anos, entretanto, e muita coisa com eles. Toda a coroa de vilas e aldeias à volta do Porto se urbanizou violentamente. Gaia, ao tornar-se cidade, independente do Porto, gerou também o crescimento das suas freguesias e Oliveira do Douro estava perto de mais para continuar um discreto povoado a fingir viver de uma agricultura inexistente.

A auto-estrada, nos seus novos acessos à ponte do Freixo, aproximou ainda mais a pequena localidade da cidade-metrópole.

Oliveira do Douro, contudo, mantém ainda um certo encanto (o desastre generalizado dos grandes subúrbios baixou-nos as expectativas), apesar de até o Colégio do Sardão ter alienado parte dos seus terrenos para lotear: edifícios de habitação com alguma expressão e volume, claro, mas ao longo de uma estrutura de azinhagas e pequenos arruamentos ainda amáveis, misturados com outras edificações menos especulativas, casas antigas, lojas anacrónicas, a força de grupos arbóreos e clareiras paisagísticas fortes, mercê da topografia acidentada onde a localidade se instala, pinhais ao longe a caminho do rio, numa faixa protegida.

Um cemitério, com entrada pelo adro fronteiro à Igreja Paroquial de Oliveira do Douro, ilustra o crescimento rápido destas localidades periféricas que o último quartel do século XX não poupou à violência da suburbanidade.

Ao cemitério reconhecem-se três áreas. Uma primeira de XIX, estabilizada, resultante do lento passar do tempo por sobre o lugar: intimista, alteada da rua, é limitada por jazigos instalados perifericamente e encara a Igreja e o adro com serenidade. Depois, completamente aberta à vista de quem passa, numa cota mais baixa, uma segunda fase, muito árida, traduz uma nova época num acrescento de anos 30. Finalmente, quase sem desenho, um outro talhão grande, quadrado, militar, anexado ao segundo para o lado norte, constitui uma terceira zona mais actual de expansão, rodeado de traseiras de edifícios habitacionais. Não há uma árvore, um muro, uma alameda intencional, um momento de contemplação, nada que descanse e apoie a dor de quem o procura.

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Do lado oposto da Alameda de St.ª Eulália, que borda o cemitério, num terreno em forma de trapézio, até há pouco vazio, entre anónimas moradias, ergue-se um apoio mortuário desenhado por José Fernando Gonçalves (JFG).

O pequeno conjunto (capela e duas câmaras) é o contrário das extensões do cemitério; é um trabalho recatado, pensado para atender ao momento dos que o demandarem, respeitando-os, envolvendo-os com uma calma e uma serenidade que, apesar de objectiva e desejavelmente programática, é difícil de construir com tal acerto [principalmente nos tempos mais recentes, em que equivocadas ideias levam alguns arquitectos — e algum público com eles — a imaginarem que tudo terá de ser (ter) muita expressão, barata emotividade e originalidade, para ser alguma coisa que valha a pena].

Uma arquitectura de silêncio (e a expressão, um pouco retórica, ganha neste programa espantosa propriedade), de sossego e calma, também se mostra necessária. E a discrição do arquitecto que se recolhe ao desenho para maduramente pensar como é que os outros irão utilizar o espaço, o que necessitam, como o gostarão de encontrar ou não ver, muito mais importante/premente que uma expressividade aleatória de emocionados tiques pessoais ou emergências gratuitas de quem for chamado a resolver o problema.

O que não significa que cada arquitecto não transporte o seu modo, a sua experiência e a sua capacidade de síntese para o campo do projecto.

JFG olhou o problema com grande delicadeza e sensibilidade (teve também a sorte de encontrar no Padre Avelino Soares um encomendador/cliente aberto, moderno, receptivo e exigente que assumiu, primeiro, o necessário diálogo, e, depois, a execução, como coisa sua, batendo-se com paixão durante a obra).

Visto de fora, o conjunto é formado, fundamentalmente, por três caixas quase cegas e abstractas.

A maior, à direita, em betão à vista, é a capela; as outras duas, forradas a travertino, abrigam as câmaras-ardentes.

Os três volumes são ligados por uma comprida galeria, a toda a largura do lote, revestida exteriormente a chapa de cobre, e estabelecendo, na sua ortogonalidade, uma primeira disciplina à geometria do terreno que atrás se alarga ligeiramente no confronto com os quintais vizinhos.

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São, aliás, estes quintais, na sua excessiva domesticidade, o ponto de partida para a correcção angular introduzida pela galeria.

Ela serve os volumes numa distribuição em E (e, dada a sua largura, funciona também como espaço de estar, à beira das capelas), mas conforma, sobretudo, um pátio triangular, no tardoz, que uns janelões de padieira baixa vêem verde, rebatendo luz suave ao interior.

Toda a galeria, não deixando de ser austera, é amaciada pela presença desta luz, destas trepadeiras e arbustos que escondem os muros; mesmo de noite (mistérios da electricidade) aquele pequeno pedaço de pátio, aquele pequeno pedaço de exterior, é um nódulo iluminado, um intervalo de esperança no modo como a vegetação é enquadrada pelos vidros da galeria, no modo como a olhamos ou percorremos ou reflectimos, sentados no banco contínuo de madeira em frente.

A capela é também uma peça de rigoroso e severo recorte. Meditaremos sentados sentindo a luz escorrer ao fundo, atrás do altar, por entre uma parede duplicada; ou então lateralmente, através de um janelão grande, pudicamente foscado na metade superior, activando-nos o olhar de novo à relva que, fora, cerca o construído.

Os volumes de travertino são exemplarmente estucados no interior; nestas pequenas câmaras, ao fundo, parece flutuar um paralelepípedo de betão branco para o pousar dos caixões.

Passadeiras vermelho-vivo são estendidas quando as salas são utilizadas. São passadeiras que só param no corredor-galeria, assinalando o uso, tornando mais confortável e quase luxuoso o recolhimento familiar.

As duas câmaras são rigorosamente iguais, mas, porque muito encostadas, as janelas que se abrem a poente, expõem ambientes diferentes.

Da primeira, voltada à zona que, sob o alpendre exterior, frente ao portão lateral do cemitério do outro lado, antecede a entrada nos diversos espaços, vê-se um relvado largo.

JFG pretendia-o preenchido com quatro magnólias já adultas: um tecto de sombra, o peso das flores grandes brancas perfumadas a esmaecer no chão, fazendo sentir o ciclo da vida a quem velasse dentro; da segunda, apenas o insólito da próxima visão da forra calcária da caixa ao lado, textura gretada castanha branca.

Foi este o único incumprimento do Padre Avelino; perto do fim, a paróquia não teve dinheiro e foi colocado apenas um plátano ainda novo, a meio do quadrado do pátio. Um estore de tela recata agora o janelo baixo daquela câmara, uma vez que sem as árvores, a rua se torna muito presente.

Mas quem sabe se entretanto não aparecerá um mecenas, um generoso doador de magnólias? A sensibilidade do todo mereceria essa atenção.

Arq.º Manuel Graça Dias
Luís Ferreira Alves (Fotografia)

in 30 Exemplos - Arquitectura Portuguesa no Virar do Século XX

Publicado no "Expresso" de 20.10.2001

06.08.2008

 

 

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Capa

30 Exemplos
Arquitectura Portuguesa no Virar do Século XX

Autor
Manuel Graça Dias

Editora
Relógio d'Água Editores

Páginas
259

Preço
€ 13,50

ISBN
972-708-816-3

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