Reflexos do Maio de '68 na sociedade portuguesa: uma abordagem plural
A celebrar os 25 anos (1983-2008), o Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expressão Portuguesa (CEPCEP), da Universidade Católica, lançou recentemente o número 12 da sua revista «Povos e Culturas», dedicado aos “Reflexos do Maio de ’68 na sociedade portuguesa”.
A variedade das pertenças políticas dos autores convidados para esta edição garante uma abordagem plural na análise das implicações dos acontecimentos ocorridos em França há 40 anos. A obra apresenta os estudos de José Barata Moura (“Para uma revisitação de «one-dimensional man» de Herbert Marcuse”), António Coimbra Martins (“Década 60 e Maio 68, paralelismos e interacções”), Luís Salgado de Matos (“Quem somos? Maio de ’68: a revolta da ordem contra as instituições”), Adriano Moreira (“Maio de 68”), Isabel do Carmo (“A realidade portuguesa e o Maio de ‘68”), Jorge Paulo Concela da Fonseca (“Maio ’68 e investigação científica”) e Jaime Nogueira Pinto (“Maio de ’68 e nós”).
A edição inclui ainda entrevistas a D. Eurico Dias Nogueira, Justino Mendes de Almeida e Maria Manuela Aguiar, registando também os depoimentos de José Veiga Simão e Nadir Afonso.
Porquê a escolha deste tema? Na nota introdutória, Roberto Carneiro, Presidente da Direcção do CEPCEP, procura dar uma resposta.
“Olhando retrospectivamente, e buscando um acontecimento que há quatro décadas terá influenciado decisivamente as instituições e os valores da sociedade portuguesa, será difícil encontrar um evento que rivalize com o Maio de ’68 nos seus indiscutíveis impactos. Decorridos 40 anos sobre o «tsunami» que varreu a França, e que teve um efeito de contágio ‘viral’ por toda a Europa, não se descortina nos países vizinhos do nosso outro fenómeno que se aproxime do Maio ’68 nas suas dimensões de revolução cultural, educativa e geracional e cujas marcas perduram até hoje em muitas instituições basilares da nossa sociedade com relevo para a Universidade. (...)
Por outro lado, a verdade é que, por estranho que pareça, não têm sido férteis os olhares académicos sobre um acontecimento de tão vastas repercussões, apesar da sua relevância e da sua influência no espaço e no tempo. «Povos e Culturas» pretende contribuir para a superação desse défice analítico proporcionando uma abordagem independente, multidisciplinar e plural de um fenómeno social cuja complexidade nunca será demais enfatizar. (...)
O CEPCEP que, por vocação e genética, nasceu há um quarto de século com o mandato de reflectir em permanência sobre a fecundidade do encontro de povos e culturas, não poderia, pois, deixar de celebrar o seu aniversário deixando ‘passar em claro’ aquilo que genuinamente se pode classificar como o choque de culturas marcante de toda a década de ’60.”
Apresentamos seguidamente dois fragmentos dos estudos incluídos na revista, da autoria de Isabel do Carmo e Jaime Nogueira Pinto.
Que influência então é que houve? (Isabel do Carmo)
Que influência então podia ter um movimento do qual pouco se sabia, que acontecia para além da imensa Espanha e que só nos chegava por fracos canais? Por estranho que pareça teve muita influência.
O ar da liberdade, mais do que isso, da libertação, infiltra-se por todo o lado. A rebelião da juventude contra a vida arrumadinha, sem rasgo e sem criatividade, espalhou-se por todo o mundo – na Alemanha, na Itália, nos EUA, na América Latina. E porque não em Portugal? A revolta dos estudantes de Coimbra em 1969, a organização de base das CDE’S, foram já uma consequência dos novos ventos internacionais. A juventude ganhava importância. O próprio questionamento da linha ortodoxa do PCP feita dentro e fora da organização clandestina bebia no que se passava “lá fora” essa capacidade de questionar tudo. Ou seja, os jovens, que já se rebelavam e organizavam contra a ditadura, aprendiam a pôr tudo em questão e mesmo as boas “verdades” a que se tinham agarrado durante anos. Isto era verdade para os jovens comunistas e era verdade para os jovens cristãos. E se era “proibido proibir” também era proibido aceitar pensamentos fechados sem perguntar porquê.
Em vários países do Mundo, o ensino nunca mais foi o mesmo, pois os alunos passaram a integrar as decisões e a questionar os programas. Sem que a conexão fosse feita, a verdade é que a partir de Maio de 68 as estruturas universitárias passaram a incluir alunos ao nível da decisão e as associações e federações internacionais ganharam muito mais peso. Em Portugal pouco mudou, mas alguma coisa foi sentida como necessidade. Houve simultaneamente a reforma de Veiga Simão e os “Gorilas” de Veiga Simão, seguranças que punham os estudantes na ordem.
Também ao nível dos costumes os países mudaram e o nosso também. Quando em 1970, depois do estágio, voltei para Portugal havia um cartaz com uma frase dum aluno de Maria Rosa Colaço que dizia “o amor é um pássaro verde num campo azul no alto da madrugada” e uma imagem que sugeria amor. Falar de amor físico em Portugal! Mesmo com metáforas poéticas, tinha o sabor duma janela que se abria. Nessa altura fui à Serra da Estrela e vi uma jovem local a ler um livro de Freud. Ninguém hoje pode perceber o que isto significava de mudança. Senti que o mundo estava de facto a mudar.
Nada ficou igual depois do Maio de 68. Mesmo em Portugal, um país que vivia então calafetado e blindado.
Sinais contraditórios: relativismo e ditadura do grupo (Jaime Nogueira Pinto)
De Maio de 68 ficaram assim sinais culturais que contribuíram para uma mudança na esquerda doméstica que se prolongará no pós-25 de Abril até hoje. Revistas como “O Tempo e o Modo” saíram no marcelismo ao abrigo de um certo abrandamento da Censura e foram espelho destas novas problemáticas. Por outro lado, com o 25 de Abril, uma parte temática de 68, passou de movimentos académico, para o Estado e a sociedade. E se a extrema violência retórica (e às vezes física) dos grupúsculos, o seu purismo e fundamentalismo revolucionários em 1974-75, só encontram rival no modo despachado, discreto e pragmático, com que poucos anos depois trocaram os entusiasmos pelas foices e martelos, pelas «kalash», pelas rodas dentadas, pelo Oriente Vermelho, pelo enfileiramento nos partidos do arco constitucional, sobretudo daqueles que dão lugar no Parlamento e no Governo, passando a respeitáveis homens de Estado ou homens da privada do Estado burguês, o facto é que se passou por lá.
Esta ideologia, graças aos que ficaram fora desta transumância e adaptação revive hoje politicamente, e com um conveniente recuo na retórica da violência e da guerra social, nos dirigentes do Bloco de Esquerda, com a influência político-social respectiva.
Já a segunda parte do programa, o “hedonismo de massas”, assumido numa linha de contestação radical aos valores sociais orgânicos, é hoje poderosa e abrangente, não só no BE mas em significativos segmentos da esquerda. Trata-se de uma ideia de liberalismo sem limites, em que o homem é essencialmente visto como ser lúdico e consumidor, devendo libertar-se de todos os enquadramentos e lealdades orgânicas – à pátria, à família, a valores de orientação permanente.
É do ponto de vista de filosofia política e de valores, a retoma da velha linha do racionalista ateu Hobbes, do materialista Espinosa e dos hedonistas e literatos do século XVIII, todos numa tábua rasa de valores de orientação. Maio de 68 foi o «update» e a repetição geral deste espírito, a ponto de ainda hoje nele se reconhecerem, com manifesta nostalgia, alguns dos reconvertidos localmente ao sistema e ao espectáculo da sociedade burguesa.
CEPCEP
06.06.2008
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Povos e Culturas n.º 12
Reflexos do Maio de '68 na sociedade portuguesa
Autor
AA.VV.
Editor
CEPCEP
Centro de Estudos
dos Povos e Culturas de Expressão Portuguesa
Páginas
296
Ano
2008
ISSN
0873-5921
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