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Cultura contemporânea

Religião sim, Deus não

A fase moderna da “morte de Deus” pretendia a eliminação da religião. (...) Essa eliminação foi fictícia, não só nem sobretudo porque se mantiveram muitas formas de religiosidade, mas antes de mais porque os substitutos modernos para o Deus morto acabaram por se transformar em formas implícitas de religiosidade, como no caso das diversas modalidades de “religião civil”.

Na pós-modernidade, diferentemente, os substitutos “religiosos” de Deus deixaram se ser simplesmente implícitos e assumem o seu posto de divindades explicitamente religiosas. O fracasso da secularização, que já se manifestava encobertamente nas divinizações da ciência, do estado, da nação, da economia, da natureza, dos sistemas, etc., assume agora a dimensão clara de uma desenfreada procura e prática do religioso. Nesse sentido, a pós-modernidade apenas traz descaradamente à luz do dia algo que já se encontrava secretamente mergulhado nas entranhas da modernidade: que a eliminação da fé no Deus de Jesus Cristo abria caminho a uma desenfreada divinização de realidades imanentes. Nesse sentido, podemos ler a modernidade e a pós-modernidade como regressos claros do mítico politeísmo pagão. A única diferença é que a primeira agiu sem lhe chamar por esse nome – pretendendo até o contrário – enquanto a segunda coloca as cartas claramente sobre a mesa.

É neste contexto que devemos interpretar o diagnóstico de Johann Baptist Metz: “Vivemos numa espécie de crise de Deus devota do religioso, de certo modo numa época de religião sem Deus... Religião como nome para o sonho de uma felicidade sem sofrimento, como encantamento mítico das almas, como jogo pós-moderno de marionetas: sim. Mas Deus, o Deus de Abraão, Isaac e Jacob, o Deus de Jesus?”.

Ora, para o problema que nos ocupa, interessa sobretudo a focalização de Metz. Segundo ele, o problema não reside na presença ou ausência do religioso (cujo dinamismo histórico nunca atinge fases de completa ausência nem de completa presença). O problema está na construção do religioso sem Deus – isto é, com base na completa “morte de Deus”. E quando se fala aqui em Deus, fala-se no Deus bíblico, que é também o Deus de Jesus Cristo. Mas qual é o problema da morte – real-simbólica – desse Deus, no meio do selvagem proliferar das formas religiosas?

Mais uma vez, pode ser elucidativo escutar as palavras irónicas de Nietzche: “«Vós, Homens superiores», assim fala a populaça, piscando o lho, «não há Homens superiores, somos todos iguais; um Homem é um Homem, diante de Deus – somos todos iguais!» Diante de Deus! Mas eis que este Deus morreu. Mas nós não queremos ser iguais diante da populaça. Vós, Homens superiores, afastai-vos da praça pública!... Este Deus era o vosso maior perigo”.

De facto, este Deus é um perigo! O maior perigo, se contemplarmos o mundo na perspectiva dos “Homens superiores”. E quem é que não pretende, nesta fase crepuscular da cultura europeia, ser Homem superior? Por isso, Deus é um perigo para todos; um perigo para a felicidade – para a “saúde” – pública. Porque compromete a pretensão de superioridade de todos sobre todos; porque nos conduz à nossa condição simplesmente humana – à nossa condição fraterna de iguais uns aos outros.

As palavras de Metz são, a este propósito, provocantes mas, actualmente, muito significativas: “Será que Deus nos faz felizes? Faz-nos felizes no sentido de uma felicidade livre de anseios e sofrimentos? No sentido de uma felicidade que se basta a si mesma, uma felicidade referida a si mesma? Proporciona a fé de inspiração bíblica uma serena reconciliação de cada um consigo mesmo? Um saber sobre nós mesmos, não perturbado por qualquer tipo de nostalgia? Duvido”.

É ainda Metz quem fala, a respeito da relação do cristão (e do crente bíblico, em geral) com o seu Deus (ou o inverso) de “memória perigosa”. O seu recurso a uma “razão anamnética” pretende colocar no centro do sentido, não propriamente o eterno retorno do momento, que não permite distanciamento crítico nem qualquer tipo de critério para avaliar as situações, mas o recurso à história e àquilo que ela nos ensina, como base de uma identidade que permite enfrentar criticamente todas as ilusões narcotizantes. É com base na memória – em sentido forte de reactualização constante da história – que a história concreta de Deus com a Humanidade – sobretudo na pessoa concreta de Jesus Cristo – se torna denúncia permanente de todas as falsas divinizações, que nos iludem com felicidades à medida dos nossos desejos subjectivos ou colectivos. É essa memória que possibilita o permanente combate de todas as ideologias, religiosas ou pseudo-religiosas. No contexto cultural actual, predomina sobretudo o fascínio psico-religioso das ofertas de felicidade auto-construída, como alienação a partir de dentro, mesmo que com base em inúmeras manipulações exteriores, mais ou menos sectárias.

Nesse sentido, é também o próprio Metz que diagnostica o nosso tempo como o tempo da amnésia. O modelo científico de racionalidade que se desenvolveu no modelo tecnológico e sistémico hoje predominante, corresponde a uma abordagem do real que não leva em conta a história real, a temporalidade do acontecer, a qual constrói a identidade a partir de uma relação temporal entre passado, presente e futuro. Ora, esse modelo intemporal torna o conhecimento humano – e toda a modalidade de experiência – em algo abstracto, de ta modo “objectivo” (ou objectivado pelo sujeito), que não permite qualquer dinâmica pessoal e humana. A verdadeira identidade humana, assente no processo temporal da memória, é assim superada, rumo a um mundo de tal modo pós-humano que já nem vestígios do sujeito permanecem.

A mais tremenda “morte de Deus”, no meio da feira do religioso, coincide com a “morte do humano”, no mundo de hoje. E a “morte do Homem” resulta, essencialmente, da morte da sua memória. Mais especificamente, resulta da morte da memória de Deus ou do Deus da memória. Porque, ausente esse Deus, desaparece o perigo para a ideologia do Homem superior, que fica com o caminho aberto para todas as suas manifestações. E a consequência fundamental dessa ideologia é a eliminação da igualdade, da fraternidade humana, da “simpatia”, sobretudo para com as vítimas inocentes (que passam a ser, simplesmente, inferiores, fracas). Ou seja, a consequência do fim do perigo que significava Deus, para a humanidade, é o fim da própria humanidade, que origina algo simplesmente “trans-humano” (segundo o modelo do Übermensch de Nietzsche), coincidente com o infra-humano.

Por isso, o futuro da fé cristã – que continua a assentar nessa “simpatia” fraterna, na denominada autoridade do outro sofredor – depois deste multifacetado processo da “morte de Deus”, só é possível enquanto um futuro de recuperação da memória. Não no sentido de simples repetição do memorizado, mas da recuperação de uma razão anamnética que coloque o Deus de Jesus Cristo no centro do seu dinamismo. Trata-se, pois, de uma recuperação em sentido de ressurreição, que pressupõe a morte e a supera – mas cuja superação conduz a algo diferente do que a vida anterior à experiência da morte. Nesse sentido, a “morte de Deus”, na cultura ocidental, conduz-nos a outra “morte de Deus” – aquela que se deu no Calvário e que será, na memória (memoria passionis Jesu Christi), o modelo de toda a correcta relação crente com a morte de Deus e a sua ressurreição – com a nossa morte e a nossa ressurreição.

João Duque
Professor da Faculdade de Teologia da UCP

in Humanística e Teologia, Julho 2008

11.09.2008

 

 

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