A sacralização do secular
“‘O Deus que tudo via, mesmo o Homem: esse Deus devia morrer! O Homem não suporta que viva uma tal testemunha!’ Assim falou o mais feio de todos os Homens... Por toda a parte por onde passo, o caminho é mau. Arruíno e desonro todos os caminhos...” Assim descreveu Nietzsche (Also sprach Zarathustra, Der hässlichste Mensch), em traços de génio, o acontecimento da “morte de Deus” na cultura ocidental, após uma vida de longos séculos. Já antes tinha clarificado o que essa morte significava: «O maior acontecimento novo – que “Deus está morto”, que a fé no Deus cristão perdeu a credibilidade – começa precisamente a lançar as suas primeiras sombras sobre a Europa... O acontecimento é, em si mesmo, demasiado grande, demasiado longínquo, demasiado distante da capacidade de compreensão de muitos, para que se possa sequer dizer que já tenha chegado a sua notícia; muito menos que muitos saibam o que realmente aconteceu – e tudo o que terá que se desmoronar, após a derrocada dessa fé, porque estava construído sobre ela, nela apoiado, tinha crescido a partir dela: por exemplo, toda a nossa moral europeia” (Die fröhliche Wissenschaft, § 343). Está claro, portanto, que se fala do final da fé cristã, devido não propriamente a uma oposição externa, mas a ter perdido a sua credibilidade, a ter, de certo modo, envelhecido a sua capacidade de convencer. E, em consequência do final dessa fé, o horizonte de sentido da cultura europeia deixa de ser ocupado por Deus. Não por um “deus” qualquer, mas precisamente pelo Deus da tradição (da fé) cristã, pois é esse que morre culturalmente.
É claro que, se a morte cultural de Deus é consequência da perda de fé – enquanto fenómeno, também ele cultural, resultante de um processo histórico que a ele terá conduzido – não é menos verdade que o desaparecimento de Deus, comparável ao crepuscular desaparecimento do sol, ao desmoronar-se de uma antiga confiança, tem, por seu turno, consequências culturais inevitáveis. A primeira dessas consequências é a derrocada da moral europeia – com tudo o que isso significa para a tradição humanista. Mas essa será apenas uma das maiores – e finais – manifestações do nihilismo instaurado por este processo. Em realidade, nessa posição extrema, nenhum deus sucederá ao sol que se pôs e o que restará serão as sombras, ou mesmo as trevas, que se alastrarão sobre a Europa. Porque nenhuma nova confiança despontará.
Essa consequência drástica não foi compreendida nem assumida pela maioria dos homens modernos – simbolizados no “mais feio dos Homens” – que continuam a procurar um “deus”, seja ele qual for, que venha substituir a antiga confiança. Essa foi a primeira consequência, a mais imediata, mais vulgar e com mais efeitos, da moderna morte cultural de Deus. Na sua excepcional capacidade de análise cultural, Nietzsche percebeu que a modernidade não passou de um conjunto de tentativas de substituir Deus por outros horizontes de divindade: sobretudo a ciência e a política, a quem sucedeu a economia e, na actualidade, o mundo mediático ou sistémico. Em certo sentido, tudo isso são modalidades de o ser humano se auto-divinizar, divinizando uma razão que, progressivamente, se vai tornando num órgão abstracto que escraviza cada ser humano concreto – e arruína todos os seus caminhos.
Nesse sentido, podemos dizer que a pretensa secularização moderna acabou por sacralizar os elementos mais diversificados: a razão, enquanto capacidade humana; o estado, enquanto última fundamentação do poder; a nação, como soberana sobre os indivíduos; a ideologia utópica como motor absoluto; o próprio indivíduo como auto-divindade absoluta, etc. Todas estas modalidades acabaram por se manifestar como formas de religião “não-religiosa”, ou seja, que não assumiam explicitamente o seu estatuto religioso.
No dizer clarividente de um historiador e analista nosso contemporâneo e conterrâneo, Fernando Catroga, “a sacralidade ressurgiu, com alguma eficácia – ainda que, muitas vezes, invisível e inominada para os seus actores –, no próprio interior da imanência secular” (Entre Deuses e Césares, Coimbra, Almedina, 2006). Assim sendo, não podemos dizer que a denominada secularização – naturalmente esperada, como consequência da “morte de Deus” – tenha mesmo secularizado o espaço cultural europeu. E isso, não só porque se tenha mantido a referência, em muitos europeus, ao Deus cristão – o que também é verdade; mas sobretudo porque o abandono dessa referência significou, em realidade, uma mais vasta sacralização do mundo, transformando tudo em potencial divindade. Nesse sentido, uma outra perspectiva de secularização – esta de raiz teológica – poderá ser assumida, ao mesmo tempo, como consequência da morte cultural de Deus e como crítica à inconsequente não-secularização da cultura, que apenas substituiu divindades, umas após outras.
João Duque
in Humanística e Teologia, Julho 2008
Faculdade de Teologia da UCP, Porto
14.08.2008
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