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Religião e Cultura

Tese de doutoramento sobre as romarias de S. Miguel

Carmen Ponte viu aprovada na Universidade de Poitiers, França, uma tese de doutoramento intitulada "Romeiros de S. Miguel: entre tradição e inovação. Da oralidade ao texto escrito".

 

Para que serve em França uma tese de doutoramento sobre as romarias micaelenses?

Serve para leccionar no âmbito da cultura e da tradição portuguesas e dar a conhecer a riqueza e o valor deste fenómeno como marca essencial da identidade açoriana, visto que os estudos, em França, sobre os Açores são quase inexistentes. O meu doutoramento foi financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia de Portugal e por uma bolsa de co-tutela do governo francês, o que me permite ensinar nos dois países. A tese tem o título de "Romeiros de São Miguel: entre tradição e inovação. Da oralidade ao texto escrito".

 

Depois de toda a investigação que fez, qual o aspecto que a marcou mais no estudo das romarias?

O que me marcou mais foi o contacto directo com os romeiros, com os mestres de romeiros. Fiz várias entrevistas que foram transcritas para a minha tese e soube de várias histórias que me marcaram imenso. Saber o que os romeiros sentem e ver como a tradição evoluiu.

 

Mas faz parte da tradição os romeiros não falarem muito sobre aquela semana especial nas suas vidas. Não sentiu dificuldade em obter testemunhos?

É verdade que muitos romeiros me disseram que era difícil de explicar o que sentiam naquela semana de caminhada. Mas fui-me aproximando deles e, pouco a pouco, fui sabendo coisas. E é verdade que tive a vantagem de me apresentar com o estatuto de investigadora que vinha recolher informações para uma tese. Tive o cuidado de tratar todos como seres humanos dotados de grande sensibilidade e não como objectos de pesquisa. Mesmo assim, deparei-me com alguns romeiros que não quiseram falar.

 

Alguma vez tentou participar numa romaria?

Nunca tentei, mas cheguei a perguntar se o podia fazer e o que me disseram foi que não era aconselhável.

 

Nos últimos anos, tem causado alguma polémica o facto de as mulheres não poderem ir nas romarias. Este assunto foi abordado na sua tese?

A minha tese abordou, claro, o papel e a participação da mulher nas romarias. Devo dizer que na minha investigação encontrei manuscritos que falam da participação das mulheres no início das romarias. Encontrei um documento do padre Manuel da Purificação que fala do vulcão de 1630 e dos tremores de terra e que refere a mudança dos eremitas das Furnas para a Caloura. Nesse texto, na margem esquerda, há uma nota, com caligrafia diferente, sobre as visitas às casinhas de Nossa Senhora, uma clara referência às romarias, que incorporavam homens e mulheres. E também encontrei um texto do século XVIII, no qual se pode ler que a Igreja chegou a proibir as romarias por causa da sua dimensão lúdica.

 

Mesmo assim?...

Exactamente. O documento fala das visitas às ermidas da Ilha, referindo o uso de instrumentos musicais e danças à noite, o que foi criticado e proibido. Mas ainda no que respeita às mulheres, eu própria entrevistei duas senhoras da Lomba da Maia que participaram numa romaria em 1957.

 

Acha que as romarias micaelenses deviam ser abertas a mulheres?

A minha posição não é defender ou contestar a participação das mulheres nas romarias. Apesar da existência de mulheres nas romarias, e da participação de poucas mulheres no século XX, o que é certo hoje é que estas romarias se tornaram, ou melhor, são consideradas como uma tradição masculina e agora não é fácil mudar.

 

Há sempre o argumento da enormidade do esforço físico.

Julgo que o argumento do esforço físico é de ordem ideológica. Até porque há crianças que vão nas romarias. Mas não posso adiantar muito sobre isso porque nunca passei pela experiência.

 

Em termos físicos, as crianças suportam as romarias melhor do que os adultos.

Compreendo. Mas ainda no que se refere às mulheres, é interessante salientar que antes da regulamentação escrita e oficial das romarias, estas eram um movimento autónomo e os mestres eram os únicos a decidir e portanto tinham a liberdade de aceitar, ou não, mulheres nos ranchos.

 

Cada romeiro tem o seu contexto e uma romaria que, só por si, é uma prova de grande exigência, é composta por dezenas de romeiros. Ora, incorporar mulheres num rancho significaria aumentar a problemática do seu funcionamento.

Concordo consigo. A mistura dos dois sexos não facilitaria.

 

Numa romaria, onde todos são tratados por igual, vão homens de 60 e 70 anos, miúdos de 7, 10, 14 anos, vão camponeses, pescadores, doutores, engenheiros, lavradores.

Por isso, se as mulheres participassem nas romarias, teria de haver uma enorme organização, designadamente ao nível das pernoitas.

 

Sim, à noite nem sempre é fácil acomodar todos os romeiros.

Realmente, as situações são diferentes para o homem e para a mulher, embora haja mulheres defensoras de que podem fazer uma romaria da mesma maneira que o homem. É compreensível que queiram participar, até porque estamos num mundo em que há igualdade de sexos. E se há séculos as mulheres participavam por que razão não o podem fazer hoje?

 

Resta saber se o formato das romarias nesse tempo era semelhante ao de hoje, se constava de sete noites e oito dias de caminhada.

No manuscrito de que lhe falei, não há detalhes sobre isso, mas há referências a romarias no Verão e no Inverno. Com o evoluir dos tempos, mudaram para a época quaresmal. Mas estas romarias duravam certamente alguns dias porque segundo os manuscritos, os romeiros e romeiras visitavam de dia e de noite as ermidas. Além disso, descobri que existem dois regulamentos de romeiros: há a "Regra do Romeiro" da autoria de Laurénio Fernandes, enviada à Diocese de Angra para oficialização e nesta Regra existe um capítulo que proíbe as mulheres de par-ticiparem nas romarias; e há o regulamento oficial das romarias, do qual já foram feitas três versões (1962, 1989 e 2003) e que nada diz sobre a matéria.

 

Ainda hoje há quem pense que as romarias são um divertimento ou um tempo de descanso.

Pelo contrário, são uma grande penitência. Da investigação que fiz na imprensa do século XX, a opinião sobre as romarias não é unânime. Há pessoas que criticam, entre as quais alguns padres.

 

Sempre houve sacerdotes pouco adeptos das romarias

Mas há outros que as defendem.

 

Ainda não há muito tempo havia padres que fechavam as Igrejas quando os romeiros passavam. Será que alguns não gostavam de perder a liderança de umas dezenas de fiéis para o mestre de romeiros?

Acho que esse é um aspecto importantíssimo. Nas romarias, quem lidera é o mestre. Mas penso que, actualmente, a maioria dos padres adere às romarias.

 

A Igreja tem evoluído.

Foi a partir dos finais dos anos 50 do século passado que a Igreja começou a sua aproximação às romarias, levando mesmo os sacerdotes a serem mais doutrinários no período de preparação das romarias. Hoje, as romarias são um movimento laico organizado perfeitamente integrado na vida da paróquia. Antes, eram uma expressão de religiosidade popular, que a cultura erudita nem sempre aceitava da melhor forma.

 

As romarias quaresmais micaelenses são um dos maiores tesouros da cultura açoriana?

Com certeza. Um dos aspectos que mais me fascinou foi o da a relação entre a oralidade e a escrita. A tradição oral é fundamental nas romarias. Antigamente, os mestres eram recrutados entre cantadores populares, repentistas.

 

As romarias são exemplos riquíssimos de música popular na sua vertente religiosa.

É verdade. E o mestre é a figura mais importante do rancho, não só pela sua capacidade de dirigir homens, mas também pela sua voz e pela sua arte de memorização e improvisação. Nas visitas às igrejas, há as fórmulas fixas dos cânticos, mas depois também há as partes improvisadas. Muitas vezes, o texto impresso vem em estrofes de quatro versos, mas, no fundo, o mestre canta-o em versos longos de quinze e dezasseis sílabas. Esta notação sob forma de quadra oculta formas de cântico, de melodia e de poesia bem diferentes e que lembram a maneira de cantar o romance ibérico tradicional em versos longos. Há uma tradição nas romarias no sentido original da palavra. No fundo existe uma diversidade infinita de romarias, cada romaria contendo aspectos que diferem de grupo para grupo, de mestre para mestre e mesmo de freguesia para freguesia. As romarias mudam conforme o mestre, há diferenças de freguesia para freguesia.

 

A personalidade do mestre tem bastante influência na romaria, embora o essencial seja igual para todas.

As romarias são uma tradição que nunca se fixa, são sempre móveis. É este o sentido original da tradição. Como um tesouro sempre aberto, que se altera conforme as mudanças na sociedade, mas privilegiando ao mesmo tempo as formas tradicionais deste fenómeno e que permitem dar continuidade a um passado sempre presente.

 

No início, ia-se na romaria para pedir a Deus o fim dos terramotos e dos vulcões. Hoje, vai-se por promessa, por fé, por curiosidade, por desafio, por penitência. Ou vai-se porque se herdou o bordão do bisavô, do avô, do pai.

É verdade que, no princípio, havia o medo dos tremores de terra. Mas na década de sessenta do século passado houve a guerra colonial e portanto fizeram-se muitas promessas nessa época, mas é verdade que hoje são várias as motivações para se fazer uma romaria...

 

Numa romaria, há solidariedade, fraternidade, igualdade. É uma oportunidade para cada um se encontrar consigo mesmo.

Exacto. Numa romaria, há oração, espírito de grupo, valores comunitários, um ambiente que contrasta com o mundo individualista em que presentemente vivemos. Muitos romeiros me disseram que depois de uma romaria a vida não é a mesma coisa. Passa-se a olhar a sociedade de outra maneira.

Eduardo Jorge S. Brum

in Expresso das Nove

17.03.2008

 

 

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