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Consumo

Um ano sem compras supérfluas

São Francisco, 1951. O aroma dos bolos acabados de sair do forno espalha-se pela sala. As donas de casa do bairro vão de grupo em grupo, trocando sorrisos enquanto conversam. Poderíamos crer que estávamos numa festa... Mas trata-se de uma reunião da Tupperware e estas senhoras estão aqui para fazer compras.

Ao aplicarem uma camada de cores pastel sobre os anos cinzentos da depressão e da guerra, produtos como os «tupperware» inauguraram uma era de prosperidade, renovação e superabundância. Para milhões de pessoas, os bens de consumo, como a televisão ou o Cadillac, tornaram-se muito mais do que necessários: passaram a ser a essência da vida.

2005. Um grupo de amigos que vive na baía de São Francisco reúne-se em volta de um jantar feito com o que havia em casa. Cansados da corrida interminável ao consumo, querem levar ao extremo o conceito de «buy nothing day» [dia sem compras], passando um ano inteiro sem comprar nada. Inspirando-se no pacto assinado pelos colonos do «Mayflower» em Plymouth Rock [em 1620], chamaram ao seu grupo The Compact e comprometeram-se a limitar as compras aos géneros alimentares, medicamentos e produtos básicos de higiene e a comprar em segunda mão sempre que possível [também recorrem a donativos e trocas].

Hoje, com oito mil membros e 55 delegações em todo o mundo, entre as quais a Islândia e Singapura, The Compact lidera um movimento de contestação da cultura do consumo [a lista dos blogues está em http://sfcompact.blogspot.com].

Os “compacters” não são extremistas nem revolucionários: milhões de pessoas em todo o mundo vivem assim há muitas gerações. Mas ameaçam e põem em causa tudo aquilo em que acabámos por acreditar, no mundo industrializado, acerca do que é a "boa vida". Este movimento desencadeou reacções apaixonadas, que vão do aplauso à indignação. Os seus membros foram apelidados de “fanfarrões condescendentes que arruínam a economia americana". Uma «compacter» de Chilliwack, no Canada, conta que, quando aderiu ao grupo, os seus amigos reagiram como se tivesse entrado para uma seita satânica. Quer se ame ou se odeie, The Compact obriga-nos a questionarmo-nos sobre as verdadeiras razões das nossas compras diárias.

Os motivos por que as pessoas aderem ao movimento Compact são diversos: alguns procuram reduzir as despesas, outros os desperdícios, outros ainda querem escapar ao materialismo e optar por valores mais espirituais. Todos concordam, no entanto, em dizer que comprar não é a solução para os seus problemas: pelo contrário, pode muito bem ser a causa de muitos deles.

“O dinheiro e as dívidas parecem dominar a mossa existência”, salienta Rúna Björg Gartharsdóttir, membro de The Compact na Islândia. Aderiu ao movimento para quebrar aquilo a que chama o “ciclo vicioso” do hiperconsumo: trabalhar de mais para gastar mais, a desintegração social devida a este excesso de trabalho, as consequências do desperdício sobre o ambiente, o nascimento de conflitos para controlar os recursos destinados a aumentar a procura... Em suma, uma miríade de problemas ligados entre si pelo desejo, aparentemente inofensivo, de poder comprar um iPod ou uma colecção de automóveis de luxo.

A maioria dos «compacters» afirma, de momento, que a sua escolha é estritamente “pessoal” e negam ter um objectivo politico. Mas continuam a suscitar o descontentamento por voltarem costas a um ideal sagrado, ao credo partilhado por milhões e milhões de indivíduos de que “mais” é melhor do que “apenas o suficiente”. Os comerciantes esperam que este movimento continue a ser marginal, mas, segundo inquéritos realizados pela socióloga Ju­liet Schor, 81 por cento dos americanos acham que o seu país está demasiado concentrado no consumo e cerca de 90 por cento pensam que este é demasiado materialista.

Quando lhe dizem que a sua recusa em comprar poderá destruir a economia do pais, Rúna Björg Gartharsdóttir fica muito orgulhosa. “Isto demonstra até que ponto as forças de mercado influenciam o país, neste momento. Devíamos ser nós a controlar as nossas vidas e a definir as nossas prioridades”, afirma.

Jenny Uechi

in Courrier Internacional, Fevereiro 2008

07.03.2008

 

 

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