Vemos, ouvimos e lemos
Exposição

Uma Luz no mundo

Na civilização da iluminação artificial, a luz das velas ou de uma lâmpada, ainda que não façam falta para ver, podem significar expressivamente festa, atenção, respeito, oração, presença do invisível, felicidade, passagem para uma nova existência. Por isso a lâmpada no sacrário e as velas sobre a mesa da Eucaristia, ou ante um ícone de Cristo, da Virgem ou de um santo.

Ao longo do ano há dias em que este simbolismo se destaca particularmente. Na Noite Pascal celebramos na luz a ressurreição de Cristo e a passagem das trevas à vida; o Círio Pascal, aceso até ao Pentecostes, recordará o motivo da celebração maior do cristianismo. Depois, a Epifania (a luz da estrela que dirige os passos dos adoradores), a Apresentação do Senhor, a Candelária. Também os dias do Baptismo, das exéquias, da dedicação das igrejas. O cristão é chamado a viver como “filho da luz”: no amor, na verdade e na esperança.

Deus é o criador da luz, lemos no livro do Génesis. O Servo de Iahweh é luz para as nações, autor e agente da salvação. Jesus ilumina todo o homem que nEle crê. A nuvem luminosa da Transfiguração revela a invisível presença do Pai. Paulo reconhece Jesus na luz que o cega. Deus é luz, mas luz inacessível. Quem obedece aos seus mandamentos é filho da luz, e por isso ilumina todos os que andam nas trevas. A luz dá testemunho de uma vida de bondade, em que nada há a esconder.

Na apresentação da exposição “Uma Luz”, patente no Museu de Electricidade, Lisboa, João Pinharanda faz o elogio das sombras, “figuras de escuridão nascidas da Luz”:

“Consideremos o valor simbólico da Luz, de que modo se afirma conta o escuro e a noite e de que modo combate o valor simbólico das Trevas.

Consideremos o Natal, versão cristã da vitória da Luz, marcação ritual da mudança das Estações e dos dias que começam a crescer sobre as noites.

Consideremos a necessidade de iluminar as horas nocturnas para prolongar o dia e as suas tarefas: ler e conversar em vez de dormir, dançar e comer em vez de descansar, ser escravo de m trabalho ou conspirar contra o Mal.

Consideremos ainda o medo e os jogos do medo nascidos da ambiguidade das sombras, figuras de escuridão nascidas da Luz. Consideremos o arrepio do corpo e o seu prazer face a esses jogos; e o modo como a iluminação artificial pode anular essa dimensão ou a pode acrescentar.

No Paraíso, Dante fala de uma Luz tão intensa que não se pode enfrentar.

Essa não é a Luz humanizada que nos importa aqui. Uma Luz Absoluta destrói as diferenças, anula a surpresa, termina com a possibilidade da Poesia, da Liberdade, do Amor e da Felicidade. Tratemos, pois, do elogio da sombra e de como, sem destruir os segredos, a Luz os pode revelar e servir-nos de guia.

De que se compõe um Natal? De algumas lâmpadas de cor, frágeis luzes no acaso de um fio, abandonadas ao baloiçar da noite (João Penalva, Lisboa, 1949)? Do flash intenso mas fragmentário das luzes que riscam as noites das estradas como estrelas sem rota (Jorge Rodrigues, Lagos, 1973)? Do brilho desmultiplicado dos cristais nos tectos dos palácios (Isabelle Faria, Saint-Maur des Fosses, França, 1973)? Mas na noite acendem-se ainda os néons urbanos: o nome de um Teatro onde a má fortuna da Vida se joga com a própria alma (João Penalva); uma tautologia que, marcada por um erro de dislexia, deixa de o ser e passa à forma de verdadeira legenda da noite (Miguel Soares, Braga, 1973).

Em cada hipótese de interpretação do Mundo abrimos um espaço contra a Morte, mas desguarnecemos outra gruta escura. Nenhuma noite vencerá inteiramente a Luz, nenhum dia vencerá inteiramente a Escuridão. Cada ano tem o seu Natal. E talvez uma luz abstracta (Lygia Pape, Nova Friburgo, Brasil, 1929-2004; Fernando Calhau, Lisboa, 1948-2002) nos possa trazer de novo ao real.”

Escutámos há dias: “O povo que andava nas trevas viu uma grande luz; habitavam uma terra de sombras, mas uma luz brilhou sobre eles.” (Is 9, 1). E Jorge de Sena escrevia:

Uma pequenina luz bruxuleante
não na distância brilhando no extremo da estrada
aqui no meio de nós e a multidão em volta
une toute petite lumière
just a little light
una piccolo… em todas as línguas do mundo
uma pequena luz bruxuleante
brilhando incerta mas brilhando
aqui no meio de nós
entre o bafo quente da multidão
a ventania dos cerros e a brisa dos mares
e o sopro azedo dos que a não vêem
só a adivinham e raivosamente assopram.
Uma pequena luz
que vacila exacta
que bruxuleia firme
que não ilumina apenas brilha.
Chamaram-lhe voz ouviram-na é muda.
Muda como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Brilhando indefectível.
Silenciosa não crepita
não consome não custa dinheiro.
Não é ela que custa dinheiro.
não aquece também os que de frio se juntam.
Não ilumina também os rostos que se curvam.
Apenas brilha bruxuleia ondeia
indefectível próxima dourada.
Tudo é incerto ou falso ou violento: brilha.
Tudo é terror vaidade orgulho teimosia: brilha.
Tudo é pensamento realidade sensação saber: brilha.
Tudo é treva ou claridade contra a mesma treva: brilha.
Desde sempre ou desde nunca para sempre ou não:
brilha.
Uma pequenina luz bruxuleante e muda
como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Apenas como elas.
Mas brilha.
Não na distância. Aqui
no meio de nós.
Brilha.

E no início de um novo ano:

"Há dias claros e há dias sombrios. Dias em que apetece dormir pela eternidade, outros em que se ficaria acordado um mês inteiro, apenas para não perder nada do que possa acontecer. Aproveitem-se uns e outros e aqueles, a maioria, em que se misturam os dois. Vêm todos do mesmo barro."

 

Peça da exposição

Fernando Calhau, 1994

 

Peça da exposição Jorge Rodrigues, 2006

 

Peça da exposição Isabelle Faria, II... Lustre #3, 2005

 

Peça da exposição João Penalva, Fortune, 2006

 

Peça da exposição Lygia Pape, Verde, 1999

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© SNPC - Publicado em 02.01.2008

 

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Peça da exposição

Exposição "Uma Luz"

Local
Museu da Electricidade
Lisboa
Sala do Cinzeiro

Horário
Das 10h às 18h
De 3.ª a Domingo

Termina a
15 de Janeiro de 2008

Preço
Entrada livre

































Vista parcial da exposição

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