«Na verdade, há sempre algo por desvelar-se ou por se revelar totalmente, mesmo se já expresso, acreditado ou visível no mundo, que nos lança à descoberta do ainda-não dito, visto ou tocado. Sem ser fragmentário, o cristianismo originário também vive do fragmento ou da provisoriedade, até que tudo se reunifique plenamente em Deus mesmo.»
É de uma fé cristã sempre em construção, lacunar, que tem de conviver com a incompletude, o oculto, as sombras, o enigma, o transitório, que acena o novo livro de João Paulo Costa, “À sombra do invisível – Fragmentos de um crer sapiencial”, que é esta semana lançado pela editora Sistema Solar, através da chancela Documenta.
«Independentemente do grau de adesão ou de crença religiosa, todos nós humanos, em algum momento da nossa existência, colocamos as questões últimas que nos lançam para fora de nós mesmos. E aí, então, descobrimos ou intuímos, nas horas limites da perda ou do gozo, que o Ser primeiro e último, mais do que estar além de nós, está possivelmente aquém, sob os nossos pés, no e pelo qual silenciosamente nos movemos e existimos», escreve o sacerdote da arquidiocese de Braga.
Depois de frisar que «a erótica do desejo corpóreo dos amantes é a metáfora mais potente para pensar a reciprocidade do desejo humano-divino, mesmo na diferença ontológica que os singulariza, sem reduzir ao presente a satisfação total de algo que é insatisfeito por natureza», o autor assinala «Esta relação de mútuo encobrimento, que envolve os amantes ou a vida do crente em Deus, nos abrirá o discernimento do caminho de uma vida justa, bela e verdadeira».
«Esta sobriedade espiritual é fundamental para o discernimento da qualidade da experiência crente eclesial. O teólogo alemão Karl Rahner falava de “espiritualidade invernal”. Esta alimentar-se-ia da inquietude e do desejo de ser encontrado pela sóbria ebriez do Espírito, sem pressupor, à partida, qualquer logro de consumação entre o que se deseja e o que se alcança realmente. É um caminho simultaneamente tumultuoso e luminoso!», aponta. Com efeito, «por muita clarividência que haja num espaço ou objeto, há sempre aí um ligeiro véu, uma penumbra que lhe dá a verdadeira intensidade».
João Paulo Costa indicia três vias de relação-revelação de Deus: «Se no sopé da montanha ainda é possível falar positivamente de Deus (teologia positiva), isto das verdades de fé que devem ser acreditadas pelos crentes, já no cume da montanha, Deus revela-se na potência fulgurante da “sarça ardente” (teologia apofática), onde apenas pelo silêncio absoluto se acede à união corporal com o Inefável (teologia mística)».
Tendo em conta que «a atmosfera cultural ocidental» se transformou «irredutivelmente», «o centro e a fonte da reflexão teológica já não poderá ser exclusivamente a razão iluminada ou os estéreis debates em torno da modernidade e da pós-modernidade que uma certa teologia academicista ainda fomenta como modelo de toda a reflexão teológica».
«Sem a razão poética ou simbólica, a dimensão que move e abre o humano à possível experiência sensível e silenciosa do mistério da vida, dificilmente a frescura da proposta cristã poderá trazer algo de novo ao nosso tempo. O cultivo da teologia sapiencial monástica é uma via nova de acesso ao mistério do homem, de Deus e do mundo. De que outro modo se poderia falar de Deus senão narrando-O poeticamente, como nos poemas salmódicos, ou na prosa poética litúrgico-testamentária? Não é a própria experiência crente cristã a narração poético-revelativa do evento histórico de Deus e dos humanos? Este é um outro caminho possível que encontra raízes profundas no interior da própria tradição cristã, como bem o atesta a qualidade sensível do movimento místico-monástico», acentua.
Neste sentido, «as artes de sentido e poéticas» podem ter «um papel fundamental para a qualidade simbólica da expressão singular e comunitária da fé crística eclesial. Paradoxalmente, com o mundo que deveio “racionalmente adulto ou irreligioso”, e que por isso mesmo rejeitaria a “hipótese de trabalho Deus” (Deus tapa-buracos ou o Deus ex machina) ou prescindiria da fé religiosa tout court, coexiste um mundo onde o humano ainda busca e permanece sedento de vida espiritual autêntica. No mesmo humano coexistem estes dois mundos! Esta realidade é mais visível na atual viragem do fatigado Ocidente para a novidade filosófica do Oriente e das suas práticas mentais à luz do yoga ou do budismo zen ocidentalizado».
Ora, questiona o teólogo, «a ser verdade que o mundo se tornou cientificamente adulto, dessacralizado e os humanos se autonomizaram relativamente a Deus e à religião, como poderá esta nova realidade cultural e social ser uma oportunidade criativa para o próprio cristianismo?».
«O presente ensaio faz, de algum modo, um díptico com o nosso primeiro livro primaveril Indícios – À escuta dos traços de Deus. É nosso desejo vir a desenvolver uma fenomenologia indicial que reabilite a gramática teologal e espiritual do cristianismo, a partir das suas próprias fontes literárias e simbólicas (místico-apofáticas), em diálogo com outros campos do saber humano, como a filosofia fenomenológica ou a estética da obra de arte (pictural, literária, poética…). A prática de uma hermenêutica sapiencial da experiência crente poderá dar ao cristianismo a sua relevância cultural e textual. A relação dialógica da cultura humanística com o desejo de Deus poderá restituir ao cristianismo a sua força simbólico-sapiencial. Esta potência brota da experiência vivida e afetiva da verdade evangélica nos mais inesperados encontros inter-humanos», explica João Paulo Costa.
No itinerário traçado «à sombra do Invisível, evocaremos mais do que demonstraremos, não por simples efeito de estilo literário, mas porque é esse o nosso próprio modo de ser. Pensamos a Escritura em diálogo com o nosso tempo e com as múltiplas gramáticas existenciais para dizer o humano comum e a sua possível relação com o Transcendente».
«A nossa proposta encaminha-se, ainda que só por ora tenuemente, para uma hermenêutica apofática da realidade, que abarca muitas das gramáticas artísticas do nosso tempo. Esta via é parte fundante do património literário-espiritual do cristianismo, ainda que olvidada pelo “positivismo teológico” que grassa nas infecundas ciências teológicas! Não só a orientação deste ensaio procura ser relativamente apofático, como o próprio caminho humano e espiritual de quem o escreve», acrescenta.
As meditações, divididas em três partes, constituem «variações dançantes em torno da Voz que deveio carne, do Verbo amoroso que habitou entre nós, deixando tudo em aberto, sobretudo a experiência pessoal da sua vinda no mais íntimo da Vida. Como a dança, estas declinações são epifanias esboçadas. Elas suspendem a pretensão de tudo dizer, a lógica dos silogismos compostos, a transparência conceptual definitiva, para dar lugar à brecha, ao fragmento, à brevidade dissonante, que torna inevitável a sombra de luz que nos fere».