O bibliotecário e arquivista da Santa Sé considera que na Biblioteca Apostólica do Vaticano (BAV) sente-se «o que é o cristianismo como projeto humano, de civilização, que tem uma capacidade de integração, acolhimento, valorização do diferente, do distante, do exótico, mesmo quando se contrapõe» à Igreja.
Trabalhar na BAV é uma «grande experiência humana e cultural», e é um «privilégio muito grande servir a Igreja e a humanidade» na instituição, afirmou o arcebispo D. José Tolentino Mendonça esta quinta-feira, na capela do Rato, em Lisboa, na sessão de encerramento do curso “Filosofia, Literatura, Espiritualidade”, organizado por aquela comunidade católica.
Na sua apresentação, que reproduzimos em grande parte no vídeo abaixo, o responsável explicou que a BAV é sobretudo uma biblioteca que se distingue pelos 80 mil manuscritos, do séc. II até à invenção da imprensa, incluindo-se, nas suas «pérolas», o cancioneiro das Cantigas de Amigo, da literatura galaico-portuguesa.
Há também 1,6 milhões de livros impressos, sobretudo até ao século XVIII, nos quais se encontram a carta de Colombo a comunicar a descoberta da América, duas Bíblias de Gutenberg e folhas com as observações diárias que Galileu fazia aos astros.
Além destes departamentos, há duas secções «muito importantes»: obras de arte em papel, com autores como Miguel Ângelo, Dürer, Bernini e Leonardo da Vinci (apontamentos), e a numismática.
Por isso, «dificilmente alguém chega à Biblioteca e não encontra nada das suas proveniências» históricas e culturais, destacou D. Tolentino Mendonça, que sintetizou os momentos fundamentais da história da instituição.
O papa Nicolau V tomou uma «decisão extraordinária» ao criar uma biblioteca aberta ao exterior, que, de início, tinha 150 manuscritos, contando com mais de 1200 no ano da morte, em 1455.
A primeira biblioteca existiu ao lado do quarto do papa, mas dado que o espaço se tornou exíguo, Sisto IV, ainda no século XV, concedeu-lhe mais quatro salas, e, pela primeira vez, nomeou um bibliotecário.
No seu curto pontificado (1585-1590), o papa Sisto V, ligado à génese da capela Sistina, constrói o que é hoje a base da BAV. Na modernidade, a instituição teve grande impulso por parte de Leão XIII, no século XIX.
Contrapondo-se à tendência verificada nos séculos XX e XXI de «destruição de bibliotecas», como a «riquíssima» de Bagdad, o Vaticano «tem feito um esforço exemplar» para cuidar do património à guarda da BAV.
A Santa Sé está preocupada com a instabilidade em algumas regiões do Oriente, que podem ameaçar os arquivos e as obras preciosas de pequenas Igrejas indefesas, havendo um «esforço diplomático grande para que a barbárie» não as atinja. E, nesse sentido, alguns dos livros guardados na BAV são também testemunhas de histórias de luta e «resistência».
Além da missão de salvaguarda, a Santa Sé tem investido recursos importantes, com o patrocínio de benfeitores, para disponibilizar ao público as suas obras, estando digitalizados 20% dos escritos.
D. Tolentino Mendonça revelou que quando o papa Francisco visitou a Biblioteca, a 4 de dezembro, ficou impressionado com a cópia da moeda que a mulher pobre depositou no templo, e que era «tudo o que tinha para viver».
«Naquele momento, o papa disse: “Não imaginam a alegria que me deram ao mostrar esta pequena moeda, porque uma das minhas maiores curiosidades, quando chegar ao céu, vai ser conhecer esta viúva”», relatou.
A intervenção terminou com a evocação da primeira biblioteca que D. Tolentino Mendonça conheceu.