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Ernesto Cardenal, sacerdote e poeta

«Sacerdote e poeta Ernesto Cardenal, repousa na paz do Senhor.» Com estas palavras, a arquidiocese de Manágua anunciou a sua morte, este domingo, aos 95 anos, devido a problemas respiratórios, de que sofria há tempos, obrigando-o a contínuas recuperações no hospital. A última crise tinha chegado quatro dias antes.

»Ninguém podia saciar-me, só Deus. Coisa que Deus sabia, mas eu não.» Com estas palavras no primeiro volume das suas memórias – “Vida perdida” – descrevia a vocação religiosa que o tinha conduzido, em 1957, a entrar no mosteiro trapista do Getsémani, no Kentucky, EUA, onde conheceu o seu mestre espiritual, Thomas Merton. Uma experiência fundamental para a sua biografia humana, espiritual e artística.

Foi nesse espaço e tempo que Cardenal amadureceu a ideia de uma comunidade em que a arte – a arte popular, feita de pescadores e agricultores pobres – se tornasse instrumento de aproximação ao Evangelho. Assim, ao regressar à Nicarágua, onde foi ordenado sacerdote, fundou Solentiname, num lugarejo remoto do lago Cacibolca. Aí, no prado diante da igreja construída à mão, será sepultado na quinta ou sexta-feira, após os funerais de hoje, na catedral da capital da Nicarágua.

«Sacerdote e poeta» ou «sacerdote-poeta», porque Cardenal exprimia nos versos que o tornaram um dos autores mais conhecidos e premiados da América Latina – mas também nas afamadas esculturas – a sua tensão constante para o Absoluto. Um místico, mas – como definiu a amiga poetisa Gioconda Belli – «com as raízes bem plantadas na terra».



Em dezembro passado, quando o Prémio Mario Benedetti o catapultou novamente para a ribalta da cultura mundial, o sacerdote decidiu dedicá-lo ao povo nicaraguense e a Álvarito Conrado, morto com um projétil a 20 de abril de 2018, enquanto distribuía garrafas de água aos manifestantes anti-Ortega



A terra da Nicarágua, ferida pela feroz ditadura dos Somoza e por uma injustiça atávica. Isto impeliu Cardenal a viver na primeira linha uma das épocas mais complexas da história do pequeno país centro-americano, que se tornou cruenta fronteira da Guerra Fria.

O sacerdote apoiou, primeiro, a insurreição armada da Frente Sandinista, e, depois, foi nomeado ministro da Cultura no governo nascido da revolução de 1979. Essas opções custaram-lhe a suspensão “a divinis” em 1985. Dois anos antes, durante a viagem à Nicarágua, João Paulo II tinha-lhe pedido publicamente para deixar o cargo.

A 17 de fevereiro de 2019, o núncio Waldemar Stanislaw Sommertag comunicou a Cardenal a decisão do papa Francisco de lhe conceder «com benevolência a absolvição de toda a censura canónica imposta». Tinha sido o próprio poeta, então com 94 anos, a pedir a readmissão ao exercício presbiteral, duas semanas antes, durante uma longa conversa com o núncio.

O ancião sacerdote – contaram os amigos presentes – recebeu a notícia com profunda alegria. E insistiu celebrar logo a missa, ainda estendido na cama aonde a doença o compelia.

Até então, muitas coisas mudaram na Nicarágua e na vida de Cardenal. Vinte cinco anos antes, tinha deixado a Frente Sandinista por discordâncias com o líder, Daniel Ortega, de quem denunciava o crescente autoritarismo.

Regressado ao poder em 2006, o ex-comandante guerrilheiro mudou a constituição, de modo a permitir-lhe a reeleição indefinida. E cooptou instituições e sociedade civil ao colocar os seus familiares em postos-chave da administração. A partir da mulher e vice-presidente, Rosario Murillo, desde sempre a crítica mais acérrima de Cardenal.

Em abril de 2018, a sociedade civil revoltou-se contra o regime de Ortega, populista na retórica, neoliberal na prática. Uma revolta pacífica, reprimida sanguinariamente pelo presidente-autocrata. Mas apesar do balanço trágico de pelo menos 325 mortos, centenas e centenas de detidos políticos, dezenas de milhares de exilados, o protesto prosseguiu clandestinamente.

E Cardenal, de novo, não se ficou, não obstante a idade e a doença. O sacerdote-poeta voltou a empunhar a sua “arma” principal: a palavra. Uma palavra de denúncia e de profecia.

Em dezembro passado, quando o Prémio Mario Benedetti o catapultou novamente para a ribalta da cultura mundial, o sacerdote decidiu dedicá-lo ao povo nicaraguense e a Álvarito Conrado, morto com um projétil a 20 de abril de 2018, enquanto distribuía garrafas de água aos manifestantes anti-Ortega; tinha acabado de completar 15 anos.


 

Lucia Capuzzi
In Avvenire
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 02.03.2020 | Atualizado em 06.10.2023

 

 
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