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Joseph Ratzinger: 85 anos

A rebeldia de Bento XVI

Em Dezembro de 2005, o seu primeiro Natal como morador no Palácio Apostólico, circularam fotografias de Bento XVI com um gorro que ninguém sabia explicar. Um jornal italiano trouxe em capa inteira essa imagem, acrescentando apenas um “o Papa faz bem”, aludindo às baixas temperaturas que se faziam sentir nessa quadra, mas a perplexidade, ainda assim, era grande. As explicações vieram mais tarde: aquele gorro encarnado chama-se camauro, é uma peça do guarda-roupa pontifício e o último Papa a utilizá-lo havia sido João XXIII. A mesma efervescência repetiu-se quando o Papa apareceu ainda com outro chapéu: uma versão estival do chamado saturno.

 

Relançar o papel da fé

São apenas adereços? Sim, claro. E certamente mais do que isso. O que está em causa é o estilo, e não apenas no sentido individual que lhe dava Buffon no célebre aforismo “o estilo é o próprio homem”. Está em causa e estilo como conceito essencial para descrever colectivamente a identidade cristã.

Num estudo recente, o teólogo Christoph Theobald explica bem como o estilo evita a redução do cristianismo á intemporalidade de um sistema doutrinal, mostrando o conjunto da vida cristã como maneira de habitar o mundo, actualidade histórica, modo orgânico de existência. O que se sente com Bento XVI, quer se trate da escolha de um chapéu ou do tema a tratar em ocasiões tão extraordinárias como a ida ao campo de concentração de Auschwitz ou à cátedra da Universidade de Ratisbona, é que o cristianismo não é um parque jurássico, uma ideologia religiosa, um corpo de apparatchiks: o cristianismo está vivo, ancora-se numa experiência espiritual e histórica, é legível à razão, interroga-se à luz de uma tradição teológica, debate-se com o presente das múltiplas culturas, confronta-se, aprofunda-se.

Essa é a rebeldia de Bento XVI. Ele não se conforma com a progressiva marginalização da fé nas sociedades ocidentais, tornada uma espécie de amuleto privado e supletivo. O Papa teólogo sonda continuamente as condições de possibilidade da fé. Paradoxalmente, isso que é o mais expectável na determinação de um Papa, torna Bento XVI, aos olhos de alguma opinião pública, um personagem algo inesperado.

João Paulo II teve uma acção providencial no elã de reconciliação com que o convulsivo século XX terminou: a queda do muro e o fim da guerra fria; a purificação da memória eclesial com os pedidos de perdão pelos erros cometidos em nome do cristianismo e a aproximação entre os vários credos religiosos; o sentido de uma unidade que as suas 104 viagens apostólicas sublinharam profeticamente. Wojtyla era um Papa a contas com a história, apostado num virar de página. Ratzinger liga o seu ministério a outra direcção: à necessidade de alicerçar as razões da fé e relançar o seu papel e relevância no coração humano.

Por isso Bento XVI valoriza tanto o catolicismo como forma. As alterações subtis que tem introduzido no seu cerimoniário não se devem interpretar simplesmente como um de gustibus non est disputandum (gostos não se discutem). Trata-se, sim, da afirmação de um catolicismo também como forma, como imagem. Quando, por exemplo, substitui o báculo assumidamente contemporâneo que Paulo VI encomendara ao escultor Lello Scorzelli, e que João Paulo II tornou uma sua imagem de marca, por um de linhas mais clássicas que pertencera a Pio IX, podem-se, é claro, discutir os efeitos, mas não a intencionalidade do gesto.

 

Um trabalhador na vinha

Há, inclusive, em Bento XVI, um deliberado apagamento do teólogo diante do Papa. As suas Encíclicas são textos absolutamente preciosos, mas não na sofisticação que esperaríamos de um renomado universitário. Regressam a um esquema essencial, o das virtudes teologais: Fé, Esperança e Caridade.

Comparadas com a dos seus predecessores, são muitas vezes enunciados mais simples, com um pendor antropológico muito desenhado. O seu grau de inovação prende-se mais com o modo revigorante de organizar a argumentação em diálogo com uma teologia da história: citando acontecimentos, acolhendo percepções filosóficas de sentido contrário e meditando nelas, recorrendo à experiência dos santos ou ao verbo intenso de poetas e escritores, e tudo isto de modo transparente, como que ocultando a própria erudição. O que sobressai em cada Encíclica é a paixão pela fé e a recondução da vida a esse núcleo essencial. O seu texto mais denso destes anos é o volume “Jesus de Nazaré”, uma obra que Bento XVI escreveu enquanto teólogo, e que abriu deliberadamente à apreciação crítica e ao debate, colocando-a fora do âmbito do seu magistério.

O Papa procura distinguir entre o que ele é e o que ele serve. Aliás, na primeira homilia do seu pontificado (24/4/2005), não podia ser mais liminar. Qualquer governante, no início do seu mandato, expressa a sua vontade, traduzindo-a em objectivos e acções a implementar. É o momento pragmático. Mas Bento XVI fez desse momento uma simbólica confissão de renúncia: “o meu verdadeiro programa de governo é não fazer a minha vontade, não perseguir ideias minhas, pondo-me contudo à escuta, com a Igreja inteira, da palavra e da vontade do Senhor e deixar-me guiar por Ele, de forma que seja Ele mesmo quem guia a Igreja nesta hora da nossa história”.

Na mesma linha, as palavras brevíssimas que dirigiu na varanda da Basílica, na sua aparição inicial: “Depois do grande Papa João Paulo II, os senhores cardeais elegeram-me a mim, um simples e humilde trabalhador na vinha do Senhor”.

 

Com ou sem maquilhagem

Podemo-nos perguntar porquê? O que levou Joseph Ratzinger a um pontificado que se esforça por recentrar a vivência da Igreja em torno à verdade da fé, redescobrindo aí vitalmente a sua identidade e anunciando isso ao mundo? Nos seus escritos ele conta duas histórias que, melhor do que muitas palavras, nos ajudam a perceber o diagnóstico de que parte.

A primeira história aparece naquela que é, porventura, a sua obra mais conhecida e traduzida, “Introdução ao cristianismo” (1968): “Certa vez, houve um incêndio num circo. O director mandou o palhaço que já se encontrava vestido e maquilhado, para a vila mais próxima, à procura de ajuda, advertindo-o de que existia o perigo de o fogo se espalhar pelos campos, com risco eminente para as casas do próprio povoado.

“O palhaço correu até à vila e pediu aos moradores que viessem ajudar a apagar o incêndio que estava a destruir o circo. Mas os habitantes viram nos gritos do palhaço apenas um belo truque de publicidade; aplaudiam e desatavam a rir. Diante dessa reacção, o palhaço fez de tudo para convencer as pessoas de que não estava a representar, de que não se tratava de um truque e sim de um apelo da maior seriedade. Mas a sua insistência só fazia aumentar os risos; eles achavam que a performance estava excelente – até que o fogo alcançou de facto aquela vila. Aí já foi tarde, e o fogo acabou por destruir não só o circo, mas também a povoação.”

Comentando esta “parábola” Ratzinger pergunta: “Bastaria aderir ao aggiornamento, retirar a maquilhagem, andar à paisana e adoptar uma linguagem do século ou de um cristianismo sem religião para que tudo fique bem? Basta a troca do figurino espiritual para que as pessoas venham a correr, cheias de ânimo e boa disposição, para ajudar a apagar o incêndio que o teólogo diz estar a ameaçar todos? Eu diria que essa teologia realmente desmaquilhada e metida numa moderna roupagem civil que hoje se apresenta um pouco por todo o lado torna essa esperança bastante ingénua”.

 

Um elefante é assim

A segunda história, Ratzinger contou-a na Sorbonne, em 1999, e introduziu-a com esta chave: “O homem contemporâneo reconhece-se nesta parábola”. “Uma vez, um rei do norte da Índia reuniu todos os cegos da cidade. Depois, fez passar um elefante diante deles, deixou que uns tocassem na cabeça, e disse: ‘Um elefante é assim’. Outros puderam tocar na orelha ou no dente, na tromba, no lombo, no casco, na traseira, nos pêlos da cauda. O rei, em seguida, perguntou a cada um: ‘Como é um elefante?’. E, segundo a parte que tinham tocado, respondia,: ‘É como um cesto entrançado...’, ‘é como um vaso...’, ‘é como a haste de um arado...’, ‘ é como um armazém...’, ‘é como um pilar...’, ‘é como uma giesta...’. Então – continua a parábola – começaram a discutir, gritando: ‘O elefante é assim’, ‘não, é assim’, atiraram-se uns aos outros e começaram a lutar”.

Dá que pensar a rebeldia de Bento XVI.

 

José Tolentino Mendonça
In Expresso, 8.5.2010
15.04.12

Bento 16


















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