Leitura
Existe Deus?
A revista italiana MicroMega lançava um volume sobre o confronto entre Fé e Razão, com textos, entre outros, do seu Director, Paolo Flores d’Arcais, e do então Prefeito para a Congregação da Doutrina da Fé, Cardeal Joseph Ratzinger.
Para o efeito, organizou um debate com ambos os autores, num lugar público de Roma, sob moderação do jornalista Gad Lerner. O histórico diálogo foi seguido por mais de duas mil pessoas, e dentro e fora do Teatro Quirino (muitas em plena rua, recorrendo-se a um amplificador improvisado).
Existe Deus? – Um confronto sobre verdade, fé e ateísmo apresenta a transcrição desse debate, bem como dos textos de Ratzinger e Flores d’Arcais que estavam, nesse dia, a ser lançados.
De seguida, publicamos um dos textos desta obra, A verdade católica, da autoria do actual Papa, Bento XVI.
Verdade do cristianismo?
No final do segundo milénio, e justamente no espaço da sua expansão originária, na Europa, o cristianismo encontra-se mergulhado numa profunda crise, provinda da crise da sua pretensão de verdade. Esta crise tem uma dupla dimensão: em primeiro lugar, pergunta-se cada vez com maior insistência se, no fundo, será justo aplicar à religião a noção de verdade; por outras palavras, se ao homem é dado conhecer a verdade propriamente dita sobre Deus e as coisas divinas. O homem contemporâneo reconhece-se muito melhor na parábola budista do elefante e dos cegos: uma vez, um rei do Norte da Índia reuniu em certo lugar todos os habitantes cegos da cidade. Depois, fez passar um elefante diante dos que ali estavam presentes. Deixou que uns tocassem na cabeça, e disse: “Um elefante é assim”. Outros puderam tocar na orelha ou no dente, na tromba, no lombo, no casco, na traseira, nos pelos da cauda. O rei, em seguida, perguntou a cada um: “Como é um elefante?”. E, segundo a parte que tinham tocado, respondiam: “É como um cesto entrançado…”, “é como um vaso…”, “é como a haste de um arado…”, “é como um armazém…”,“é como um pilar…”, “é como uma giesta…”. Então – continua a parábola – começaram a discutir, gritando: “O elefante é assim”, “não, é assim”, atiraram-se uns aos outros e começaram a lutar, para grande divertimento do rei. A disputa entre religiões surge aos homens de hoje como esta discussão entre cegos de nascença. Pois, frente ao mistério de Deus, somos cegos de nascença, assim parece. Para o pensamento actual, o cristianismo não está de modo algum mais bem situado do que as restantes religiões; pelo contrário, com a sua pretensão de verdade, parece sofrer de uma cegueira peculiar em face do limite do nosso conhecimento do divino, e caracteriza-se por um fanatismo particularmente insensato que, de modo incorrigível, confunde o todo com a porção apreendida na sua própria experiência.
Além disso, este cepticismo generalizado perante a pretensão de verdade em matéria de religião vê-se apoiado pelas questões que a ciência moderna levantou sobre as origens e os conteúdos do cristianismo. A teoria evolucionista parece ter superado a doutrina da criação; os conhecimentos sobre origem do homem debelaram, aparentemente, a doutrina do pecado original; a exegese crítica relativiza a figura de Jesus e questiona a sua consciência filial; a origem da Igreja em Jesus afigura-se duvidosa, etc. O fundamento filosófico do cristianismo revela-se problemático após o “fim da metafísica” e as suas bases históricas surgem a uma luz ambígua em virtude dos modernos métodos históricos. É, pois, fácil reduzir os conteúdos cristãos a símbolos, não lhes atribuir uma maior verdade do que aos mitos da história das religiões – vê-los como uma modalidade de experiência religiosa que, com humildade, se deveria situar ao lado das outras. Aparentemente, vistas assim as coisas, poderia continuar-se a ser cristão e prosseguir na utilização das formas de expressão do cristianismo, cuja pretensão se alterou de modo radical: a verdade, que era para o homem uma força vinculante e uma promessa segura, converte-se doravante numa forma de expressão cultural da sensibilidade religiosa geral, e que se nos afigura óbvia em virtude da nossa origem europeia.
Ernst Troeltsch, no início do século XX, fez uma formulação filosófica e teológica desta retirada do cristianismo da sua pretensão originariamente universal, que apenas se podia fundar na sua pretensão de verdade. O cristianismo é, pois, apenas o lado do rosto de Deus voltado para a Europa. As “particulares características ligadas à cultura e às raças”, e “as características das suas grandes formações religiosas que abarcam um contexto mais amplo” elevam-se à categoria de instância derradeira: “Quem se atreveria a formular juízos de valor verdadeiramente categóricos a tal respeito? É algo que só o próprio Deus poderia fazer, ele que está na origem destas diferenças”. Um cego de nascença sabe que não nasceu para ser cego e, por conseguinte, não deixará de se interrogar sobre o porquê da sua cegueira e sobre o modo como dela sair. Só aparentemente o homem se resignou ao veredicto de ser cego de nascença frente àquilo que lhe pertence, à única realidade que, em última instância, conta na nossa vida. A tentativa titânica de se apropriar do mundo inteiro, de extrair da nossa vida e para a nossa vida todo o possível mostra, tal como as explosões de um culto do êxtase, da transgressão e da destruição de si, que o homem se não contenta com semelhante juízo. Porque, se não sabe donde vem e porque existe, não será porventura em todo o seu ser uma criatura falhada? O adeus aparentemente indiferente à verdade sobre Deus e sobre a existência do nosso eu, a aparente satisfação por não ter já de se ocupar de tudo isto, é um engano. O homem não pode resignar-se a ser e a permanecer, quanto ao que é essencial, um cego de nascença. O adeus à verdade nunca pode ser definitivo.
Sendo assim, importa levantar de novo a questão extemporânea da verdade do cristianismo, por supérflua e difícil de responder que a muitos se afigure. Mas como? A teologia cristã deverá, sem dúvida, examinar cuidadosamente, sem medo de se expor, as diferentes instâncias que se levantaram contra a pretensão de verdade do cristianismo no campo da filosofia, das ciências naturais, da história natural. Mas, por outro lado, deverá tentar igualmente obter uma visão geral do problema relativo à verdadeira essência do cristianismo, da sua posição na história das religiões e do seu lugar na existência humana. Gostaria de dar um passo nesta direcção, realçando como, nas suas origens e dentro do kosmos das religiões, o cristianismo encarou esta sua pretensão.
Que eu saiba, não existe nenhum texto do cristianismo antigo que arroje tanta luz sobre a questão como a discussão de Santo Agostinho com a filosofia religiosa do “mais erudito entre os Romanos”, Marco Terêncio Varrão (116-27 a.C.). Este partilhava a imagem estóica de Deus e do mundo; definiu Deus como animam motu ac ratione mundum gubernantem (como “a alma que governa o mundo por meio do movimento e da razão”), por outras palavras: como a alma do mundo que os Gregos chamam kosmos: hunc ipsum mundum esse deum. Esta alma do mundo, porém, não recebe culto algum. Não é objecto de religio. Por outras palavras: verdade e religião, conhecimento racional e ordem cultual situam-se em dois planos de todo diversos. A ordem cultual, o mundo concreto da religião, não pertence à ordem da res, da realidade como tal, mas à dos mores – dos costumes. Não foram os deuses que criaram o Estado, o Estado é que instituiu os deuses, cuja veneração é essencial para a ordem do Estado e para o bom comportamento dos cidadãos. Na sua essência, a religião é um fenómeno político. Varrão distingue assim três tipos de “teologia”, entendendo por teologia a ratio, quae de diis explicatur – a compreensão e a explicação do divino, poderíamos traduzir. Tais são a theologia mythica, a theologia civilis e a theologia naturalis. Mediante quatro definições, explica ele, em seguida, que se deve entender por estas “teologias”. A primeira definição refere-se aos três teólogos associados a estas três teologias: os teólogos da teologia política são os poetas, porque compuseram cantos sobre os deuses e são, por isso, cantores da divindade. Os teólogos da teologia física (natural) são os filósofos, os eruditos, os pensadores, que, indo além dos hábitos, se interrogam sobre a realidade, sobre a verdade; os teólogos da teologia civil são os “povos”, que decidiram não se aliar aos filósofos (à verdade), mas aos poetas, às suas visões poéticas, às suas imagens e às suas figuras.
A segunda definição concerne aos lugares a que na realidade estão associadas as teologias singulares. À teologia mítica corresponde o teatro, que tinha efectivamente um carácter religioso, cultual; segundo a opinião comum, os espectáculos tinham sido instituídos em Roma por ordem dos deuses. À teologia política corresponde a urbs. O espaço da teologia natural seria o kosmos.
A terceira definição designa o conteúdo das três teologias: a teologia mítica teria por conteúdo as fábulas sobre os deuses, criadas pelos poetas; a teologia de Estado, o culto; a teologia natural responderia à questão sobre quem são os deuses. Vale a pena, agora, prestar maior atenção: «Se – como em Heraclito – esses [os deuses] são feitos de fogo ou – como em Pitágoras – de números, ou – como em Epicuro – de átomos, e outras coisas ainda que os ouvidos podem suportar mais facilmente dentro dos muros escolares do que fora deles, na praça pública», depreende-se com absoluta clareza que esta teologia natural é uma desmitologização, ou melhor uma racionalidade, que perscruta criticamente o que existe por detrás da aparência mítica e a dissolve mediante o conhecimento científico-natural. Culto e conhecimento ficam entre si separados. O culto continua necessário, enquanto for uma questão de utilidade política; o conhecimento tem um efeito destruidor sobre a religião e não deveria, por isso, trazer-se à praça pública.
Por fim, existe a quarta definição. A partir de que tipo de realidade é constituído o conteúdo das diversas teologias? A resposta de Varrão é esta: a teologia natural ocupa-se da “natureza dos deuses” (que, de facto, não existem), as outras duas teologias tratam dos divina instituta hominum – das instituições divinas dos homens. Segue-se daí que toda a diferença se reduz àquela que existe entre a física no seu significado antigo e, por outro lado, a religião cultual. «A teologia civil não tem, em última análise, nenhum deus, só a “religião”; a “teologia natural” não tem religião, mas só uma divindade». Não pode, decerto, ter nenhuma religião, porque ao seu deus (fogo, números, átomos) não pode ser dirigida a palavra em termos religiosos. Por isso, religio (termo que designa essencialmente o culto) e realidade, o conhecimento racional do real, configuram-se como duas esferas separadas, uma ao lado da outra. A religio não extrai a sua justificação da realidade do divino, mas da sua função política. É uma instituição de que o Estado necessita para a sua existência.
Encontramo-nos aqui, sem dúvida, perante uma fase tardia da religião, na qual se desfaz a ingenuidade da atitude religiosa e, por isso, se inicia a sua dissolução. Mas o vínculo essencial da religião com a estrutura estatal penetra decididamente muito mais fundo. O culto é, em última instância, uma ordem positiva que, enquanto tal, não pode ser avaliada pelo problema da verdade. Enquanto Varrão, na sua época, em que a função política da religião era ainda assaz forte, podia, para a justificar enquanto tal, defender uma concepção algo grosseira da racionalidade e da ausência de verdade do culto politicamente motivado, o neoplatonismo tentará, bem depressa, outra via de saída da crise, na qual o imperador Juliano baseou, em seguida, o seu esforço por restabelecer a religião romana de Estado. Aquilo que os poetas dizem são imagens que se não devem entender fisicamente; mas são, de algum modo, imagens que expressam o inexprimível para todos aqueles homens aos quais está fechada a via régia da união mística. Embora não sejam verdadeiras, as imagens justificam-se como aproximações a algo que deve sempre permanecer inexprimível.
Antecipámos assim algo do que iremos dizer. A posição neoplatónica, de facto, é já em si uma reacção contra a tomada de posição cristã acerca do problema da fundação cristã do culto e do lugar da fé que está na sua base, na tipologia das religiões. Voltemos, pois, a Agostinho. Onde é que ele situa o cristianismo na tríade varroniana das religiões? O que espanta é que Agostinho, sem a mínima hesitação, assinala ao cristianismo o seu lugar no âmbito da “teologia física”, no marco do racionalismo filosófico. Encontra-se aqui em perfeita continuidade com os primeiros teólogos do cristianismo, os apologetas do século II, e também com a posição que Paulo indica ao cristianismo no primeiro capítulo da Carta aos Romanos, a qual, por seu turno, se baseia na teologia veterotestamentária da Sabedoria e, através dela, remonta aos Salmos, que escarnecem dos deuses. Sob esta perspectiva, o cristianismo tem os seus precursores e a sua preparação na racionalidade filosófica, não nas religiões. Segundo Agostinho e a tradição bíblica, para ele normativa, o cristianismo não se baseia nas imagens e nos pressentimentos míticos, cuja justificação se encontra, ao fim e ao cabo, na sua utilidade política, mas reclama-se do divino que a análise racional da realidade consegue apreender. Por outras palavras, Agostinho identifica o monoteísmo bíblico com as ideias filosóficas sobre o fundamento do mundo que se formaram, com variantes diversas, na filosofia antiga. Tal é o que se entende quando o cristianismo, a partir do discurso de Paulo no Areópago, se apresenta com a pretensão de ser a religio vera. Por conseguinte, a fé cristã não assenta na poesia nem na política, essas duas grandes fontes da religião; baseia-se no conhecimento. Venera o Ser que é o fundamento de tudo o que existe, o “Deus verdadeiro”. No cristianismo, a racionalidade tornou-se religião, e já não é o seu adversário.
Para que tal acontecesse, para que o cristianismo se compreendesse como a vitória da desmitologização, a vitória do conhecimento e, assim, da verdade, devia necessariamente encarar-se como universal e ser levado a todos os povos; não como uma religião específica que desaloja outras em virtude de uma espécie de imperialismo religioso, mas como verdade que torna supérflua a aparência. E justamente por isso, na ampla tolerância dos politeísmos, será considerada como intolerável, inclusive como inimigo da religião, como “ateísmo”. Não se fundava na relatividade e na convertibilidade das imagens, perturbando assim sobretudo a utilidade política das religiões e pondo em perigo os fundamentos do Estado, em cujo âmbito não pretendeu ser uma religião entre outras, mas a vitória da inteligência sobre o mundo das religiões.
Por outro lado, a esta posição do cristianismo no kosmos da religião e da filosofia se deve igualmente a sua força de penetração. Já antes do início da missão cristã, alguns círculos cultos da antiguidade buscaram na figura do “homem temente a Deus” a ligação com a fé judaica, que lhes surgia como uma figura religiosa do monoteísmo filosófico e respondia, ao mesmo tempo, às exigências da razão e à necessidade religiosa do homem. A esta a filosofia, por si só, não podia responder: não se reza a um Deus unicamente pensado. Mas onde o Deus descoberto pelo pensamento se deixa encontrar no coração da religião como um Deus que fala e actua, então reconciliam-se o pensamento e a fé.
No nexo com a Sinagoga, havia ainda algo que não satisfazia: o não judeu, de facto, continuava sempre a ser um estranho, nunca podia chegar a uma pertença plena. Este nó foi desfeito no cristianismo por meio da interpretação que Paulo fez da figura de Cristo. Só então o monoteísmo religioso do judaísmo se tornou universal e, deste modo, a unidade de pensamento e fé, a religio vera, tornou-se acessível a todos.
Justino, filósofo e mártir († 167), pode ver-se como figura sintomática deste acesso ao cristianismo: estudara todas as filosofias e, por fim, reconhecera no cristianismo a vera philosophia. Estava convencido de que, tornando-se cristão, não havia renegado a filosofia, mas que só então se tornara verdadeiramente filósofo. A convicção de que o cristianismo era uma filosofia, a filosofia perfeita, ou seja, a filosofia que conseguiu chegar à verdade, persistirá para lá da época patrística. É ainda de todo actual no século XIV, na teologia bizantina de Nicolau Cabasilas. A filosofia não se entendia então, decerto, como uma disciplina académica de natureza puramente teórica, mas também e sobretudo, num plano prático, como a arte do bem viver e do bem morrer – o que todavia só se pode alcançar à luz da verdade.
A união da racionalidade e da fé, que se realizou no desenvolvimento da missão cristã e na construção da teologia cristã, trouxe igualmente consigo correcções decisivas na imagem filosófica de Deus, das quais é conveniente destacar duas em particular. A primeira consiste em que o Deus em que os cristãos acreditam e veneram é, diferentemente dos deuses míticos e políticos, deveras natura Deus; nisto satisfaz as exigências da racionalidade filosófica. Mas, ao mesmo tempo, impõe-se também o outro aspecto: non tamen omnis natura est Deus, “nem toda a natureza é Deus”. Deus é Deus por sua natureza, mas a natureza como tal não é Deus. Cria-se uma separação entre a natureza universal e o Ser que a funda, que lhe dá origem. Só então a física e a metafísica chegam a uma clara distinção entre si. Só o verdadeiro Deus que podemos reconhecer, mediante o pensamento, na natureza é objecto de oração. Mas Ele é mais do que a natureza. Precede-a, e ela é criatura sua. A esta separação entre Deus e a natureza acrescenta-se uma segunda descoberta, ainda mais decisiva: ao deus, à natureza, à alma do mundo ou fosse o que fosse, não se podia orar, não era, como vimos, um “deus religioso”. Mas agora, segundo o testemunho da fé do Antigo Testamento e, sobretudo, do Novo Testamento, o Deus que precede a natureza voltou-se para os homens. Justamente por não ser só natureza, não é um Deus silencioso. Entrou na história, veio ao encontro do homem e, deste modo, o homem pode encontrar-se com Ele. Pode unir-se a Deus, porque Deus se uniu ao homem. As duas dimensões da religião, que entre si sempre estiveram separadas, a natureza eternamente dominadora e a necessidade de salvação do homem que sofre e luta, estão unidas uma à outra. A racionalidade pode tornar-se religião, porque o próprio Deus da racionalidade entrou na religião. O elemento que a fé reivindica como seu, a Palavra histórica de Deus, é efectivamente o pressuposto para que a religião possa, por fim, voltar-se para o deus filosófico, que já não é um Deus puramente filosófico e que nem sequer rejeita o conhecimento filosófico, antes o assume. Manifesta-se aqui algo de surpreendente: os dois princípios fundamentais do cristianismo, aparentemente contrários, o nexo com a metafísica e o vínculo com a história, condicionam-se e referem-se um ao outro: juntos, constituem a apologia do cristianismo como religio vera.
Pode, pois, dizer-se que a vitória do cristianismo sobre as religiões pagãs se tornou possível pela sua pretensão de racionalidade; mas importa acrescentar que a tal está ligado um segundo motivo de igual importância. Consiste, antes de mais, para o mencionar de modo muito geral, na seriedade moral do cristianismo, característica que, aliás, Paulo já havia relacionado com a racionalidade da fé cristã: o que a lei, no fundo, intenta, as exigências essenciais explicitadas pela fé cristã, de um Deus único para a vida do homem, corresponde àquilo que o homem, cada homem, traz escrito no coração, pelo que o considera como Bem, quando se lhe apresenta. Corresponde àquilo que “é bom por natureza” (Rm 2, 14s.). A alusão à moral estóica, à sua interpretação ética da natureza, é aqui tão patente como noutros textos paulinos, por ex. na Carta aos Filipenses (“Tudo o que é verdadeiro, tudo o que é nobre, tudo o que é justo, tudo o que é puro, tudo o que é amável, tudo o que é respeitável, tudo o que possa ser virtude e mereça louvor, tende isso em mente” (4, 8).
A unidade fundamental (embora crítica) com a racionalidade filosófica, presente na noção de Deus, confirma-se e concretiza-se agora na unidade igualmente crítica com a moral filosófica. Assim como no campo do religioso o cristianismo superava os limites de uma escola de sabedoria filosófica, justamente porque o Deus pensado se deixava encontrar como um Deus vivo, assim também aqui ocorreu uma superação da teoria ética numa práxis moral, vivida em comum e feita concreta, na qual a perspectiva filosófica é transcendida e transposta para a acção real, sobretudo graças à concentração de toda a moral no duplo mandamento do amor a Deus e ao próximo. Simplificando, poderíamos dizer que o cristianismo convencia pela união da fé com a razão e pela orientação da acção para a caritas, para a solicitude amorosa pelos que sofrem, pelos pobres e pelos fracos, para lá de toda a diferença de condição.
Esta força íntima do cristianismo pode ver-se, com clareza, no modo como o imperador Juliano tentou restabelecer o paganismo numa forma renovada. Como pontifex maximus da religião restaurada dos antigos deuses, procurou instituir – o que nunca antes existira – uma hierarquia pagã, feita de sacerdotes e metropolitas. Os sacerdotes deviam ser exemplos de moralidade; deviam dedicar-se ao amor de deus (a divindade suprema entre os deuses) e do próximo. Eram obrigados a realizar actos de caridade para com os pobres, já não lhes era permitido ler as comédias licenciosas e os romances eróticos, e deviam pregar nos dias de festa sobre um tema filosófico para instruir e formar o povo. Teresio Bosco diz justamente, a este respeito, que o imperador tentava deste modo, não restabelecer o paganismo, mais cristianizá-lo – numa síntese limitada ao culto dos deuses, de racionalidade e religião.
Olhando retrospectivamente, podemos dizer que a força que transformou o cristianismo numa religião mundial consistiu na sua síntese entre razão, fé e vida; esta síntese condensou-se precisamente na expressão religio vera. Impõe-se, por isso, cada vez mais a questão: porque é que, hoje, esta síntese já não convence? Porque é que, hoje, ao invés, surgem contraditórios e até reciprocamente exclusivos a racionalidade e o cristianismo? Que é que na racionalidade? Que é que mudou no cristianismo?
Houve um tempo em que o neoplatonismo, sobretudo Porfírio, contrapôs à síntese cristã uma outra interpretação da relação entre filosofia e religião, uma interpretação que tentava ser uma refundação filosófica da religião politeísta. Ora, hoje, este modo de harmonizar a religião e a racionalidade parece impor-se, de novo, como a forma de religiosidade ajustada à consciência moderna.
Porfírio formula assim a sua primeira ideia fundamental: latet omne verum, “oculta está toda a verdade”. Recordemos a parábola do elefante, atestada justamente pela concepção em que budismo e neoplatonismo se encontram. De acordo com ela, sobre a verdade, sobre Deus, não há certeza alguma, apenas opiniões. Na crise de Roma, no final do século IV, o senador Símaco – imagem especular de Varrão e da sua teoria da religião – resumiu a concepção neoplatónica em algumas fórmulas simples e pragmáticas, que podemos encontrar no seu discurso perante o imperador Valentiniano II, no ano 384, em defesa do paganismo e da reposição da deusa Vitória no Senado romano. Cito apenas a frase decisiva, e que se tornou célebre: “Todos veneramos o mesmo, todos pensamos o mesmo, contemplamos as mesmas estrelas, um só é o céu sobre as nossas cabeças, o mesmo mundo nos circunda; que importam os diversos tipos de sabedoria pelos quais cada um busca a verdade? Não se pode chegar por um único caminho a um mistério tão grande”.
É tal e qual o que, hoje, afirma a racionalidade: não conhecemos a verdade como tal; nas imagens mais diversas contemplamos, no fundo, a mesma coisa. Mistério ingente, o divino não se pode reduzir a uma só figura que exclua todas as outras, a um único caminho que a todos vincularia. Há muitos caminhos, há muitas imagens, todas reflectem algo do todo e nenhuma é, por si mesma, o todo. O ethos da tolerância é próprio de quem reconhece em cada uma delas uma parte de verdade, de quem não põe a sua acima das outras e se insere tranquilamente na sinfonia polimorfa do eterno Inacessível. Este oculta-se por detrás de símbolos, mas estes símbolos afiguram-se como a nossa única possibilidade de chegar, de algum modo, à divindade.
Foi, portanto, superada pelo progresso da racionalidade a pretensão do cristianismo de ser a religio vera? Estará ele, pois, obrigado a abandonar esta pretensão e a ingressar na visão neoplatónica ou budista ou hinduísta da verdade e do símbolo, a contentar-se, como propusera Troeltsch, com mostrar do rosto de Deus a parte virada para a Europa? Será necessário, porventura, ir além de Troeltsch, que via ainda no cristianismo a religião mais adequada para a Europa, tendo em conta que esta põe em dúvida tal adequação? Eis a verdadeira questão que, hoje, a Igreja e a teologia têm de enfrentar. Todas as crises que agora observamos no seio do cristianismo só de modo secundário se baseiam em aspectos institucionais.
Na Igreja, os problemas das instituições e das pessoas derivam, em última instância, desta questão e do enorme peso que ela tem. Ninguém esperará, no final do segundo milénio cristão, que esta provocação fundamental encontre, mesmo só de longe, uma resposta definitiva num artigo. Não pode de modo algum encontrar respostas puramente teóricas, tal como a religião, enquanto atitude última do homem, nunca é só teoria. Exige a combinação de conhecimento e de acção em que assentava a força persuasiva do cristianismo dos Padres da Igreja.
Não quer isto dizer que nos possamos subtrair à urgência que o problema tem sob o ponto de vista intelectual, remetendo para a necessidade da práxis. Para terminar, tentarei apenas abrir uma perspectiva que possa indicar a direcção. Vimos que a originária unidade relacional, embora nunca de todo alcançada, entre racionalidade e fé, a que Tomás de Aquino deu uma forma sistemática, se rompeu não tanto pela evolução da fé quanto pelos novos progressos da racionalidade. Poderiam apontar-se como etapas desta mútua separação Descartes, Espinosa, Kant. A nova síntese integradora tentada por Hegel não restitui à fé o seu lugar filosófico, mas tende a convertê-la em razão e a suprimi-la como fé. A esta absolutização do espírito contrapõe Marx a unicidade da matéria; a filosofia deve então circunscrever-se inteiramente à ciência exacta. Só o rigoroso conhecimento científico é conhecimento. E assim se diz adeus à ideia do divino.
A profecia de Auguste Comte de que, um dia, haveria uma física do homem e que as grandes questões, até agora confiadas à metafísica, seriam abordadas no futuro de um modo tão “positivo” como tudo o que, já hoje, é ciência positiva, encontrou, no nosso século, um eco impressionante nas ciências humanas. Olvida-se cada vez mais a separação entre a física e a metafísica, introduzida pelo pensamento cristão. Tudo deve voltar a ser “física”.
A teoria evolucionista foi-se cristalizando como o caminho para fazer desaparecer de vez a metafísica, para tornar supérflua a “hipótese de Deus” (Laplace) e formular uma explicação do mundo estritamente “científica”. Uma teoria evolucionista que explique de modo englobante todo o real tornou-se uma espécie de “filosofia primeira” que representa, por assim dizer, o autêntico fundamento da compreensão racional do mundo. Toda a tentativa de introduzir outras causas distintas das elaboradas por uma teoria “positiva”, toda a tentativa de “metafísica” surge necessariamente como uma recidiva no aquém da razão, como uma renúncia à pretensão universal da ciência. Também a ideia cristã de Deus é tida por acientífica. A esta ideia já não corresponde nenhuma theologia physica: a única theologia naturalis é, nesta visão, a doutrina evolucionista, e esta não conhece nenhum Deus, nenhum Criador, no sentido do cristianismo (do judaísmo e do Islão), nenhuma alma do mundo ou dinamismo intrínseco, no sentido do estoicismo. Quando muito, em sentido budista, poderia considerar-se o mundo inteiro como uma aparência, e o nada como a verdadeira realidade, e justificar assim as formas místicas de religião que, pelo menos, não se estão em competição directa com a razão.
Ter-se-á dito com isto a última palavra? Estarão definitivamente separados o cristianismo e a razão? Seja como for, não se discute o alcance da doutrina evolucionista como filosofia primeira e a exclusividade do método positivo como único tipo de ciência e de racionalidade. É necessário que esta discussão seja iniciada por ambas as partes com serenidade e disponibilidade para ouvir – o que até agora só aconteceu de modo muito reduzido. Ninguém poderá pôr seriamente em dúvida as provas científicas dos processos micro-evolutivos. Reinhard Junker e Sieghfried Scherer dizem, a este respeito, no seu Kritisches Lehrbuch sobre a evolução: “Tais fenómenos [os processos micro-evolutivos] são bem conhecidos a partir dos processos naturais de variação e de formação. O seu exame por meio da biologia evolutiva levou a conhecimentos significativos acerca da capacidade maravilhosa de adaptação dos sistemas vivos”. Dizem neste sentido que, com razão, se pode caracterizar a investigação sobre a origem como a disciplina régia da biologia. A pergunta que um crente pode fazer em face da razão moderna não é acerca de isto, mas sobre a extensão de uma philosophia universalis que ambiciona tornar-se uma explicação geral do real e tende a não admitir qualquer outro nível de pensamento. Na própria doutrina evolucionista, o problema apresenta-se quando se passa da micro à macro-evolução, passagem a cujo respeito Szamarthy e Maynard Smith, ambos defensores de uma teoria evolucionista omnicompreensiva, afirmam: “Não há motivos teóricos que permitam pensar que, com o tempo, linhas evolutivas aumentem em complexidade; nem sequer há provas empíricas de que tal aconteça”.
A questão que agora importa levantar vai mais fundo: trata-se de saber se a doutrina evolucionista se poderá apresentar como uma teoria universal de todo o real, para lá da qual as ulteriores questões sobre a origem e a natureza das coisas já não são lícitas nem necessárias, ou se questões últimas afins não ultrapassam o campo da pura pesquisa científico-natural. Gostaria de apresentar a questão de um modo ainda mais concreto. Eis como se expressa um tipo de resposta como a que encontramos, por exemplo, na seguinte formulação de Popper: «A vida, tal como a conhecemos, consiste em “corpos” físicos (melhor, em processos e estruturas) que resolvem problemas. Que as diferentes espécies “aprenderam” mediante a selecção natural, por meio do método de reprodução mais variação; método que, por seu lado, foi aprendido segundo o mesmo método. É uma regressão, mas não é infinita…»? Não creio. No fim de contas, trata-se de uma alternativa que já se não pode resolver simplesmente nem ao nível das ciências naturais nem também, no fundo, da filosofia. Trata-se de saber se a razão ou o racional se encontra, ou não, no princípio de todas as coisas e no seu fundamento. Trata-se de saber se o real surgiu do acaso ou da necessidade (ou, com Popper, de acordo com Butler do Luck and Cunning, “sorte e astúcia”), e portanto daquilo que é desprovido de razão; se, por outras palavras, a razão é um casual produto marginal do irracional, insignificante, por fim, no oceano do irracional, ou se continua a ser verdadeira a convicção fundamental da fé cristã e da sua filosofia: In principio erat Verbum – no princípio de todas as coisas existe a força criadora da razão. A fé cristã é, hoje como ontem, a opção pela prioridade da razão e do racional. Esta questão última já não pode, como se afirmou, ser resolvida por meio de argumentos extraídos das ciências naturais, e o próprio pensamento filosófico fica aqui bloqueado. Neste sentido, não se pode fornecer nenhuma prova derradeira da opção cristã fundamental. Mas, em última análise, poderá a razão, sem se renegar a si mesma, renunciar à prioridade do racional sobre o irracional, ao Logos como princípio primeiro? O modelo hermenêutico oferecido por Popper, que, sob formas diversas, se imiscui noutras apresentações da “filosofia primeira”, demonstra que a razão também só pode pensar o irracional segundo a sua medida, logo racionalmente (resolver problemas, elaborar métodos!), restabelecendo assim implicitamente o primado contestado da razão. Com a sua opção a favor do primado da razão, o cristianismo persiste ainda hoje como “racionalidade”, e penso que uma racionalidade que dispense esta opção significaria necessariamente, contra as aparências, não uma evolução, antes uma involução da racionalidade.
Vimos antes que, na concepção do cristianismo primitivo, as noções de natureza, homem, Deus, ethos e religião estavam entre si indissoluvelmente ligadas, e que esse nexo ajudou justamente o cristianismo a ver claro na crise dos deuses e na crise da antiga racionalidade. A orientação da religião para uma visão racional do real, o ethos como parte desta visão e a sua aplicação concreta sob o primado do amor associaram-se entre si. O primado do Logos e o primado do amor revelaram-se idênticos. O Logos já não aparece apenas como razão matemática na base de todas as coisas, mas como amor criador até se tornar compaixão para com a criatura. A dimensão cósmica da religião que venera o Criador no poder do ser, e a sua dimensão existencial, a questão da redenção, compenetraram-se e tornaram-se uma só coisa. De facto, uma explicação do real que não consiga de modo significativo e integral fundar um ethos permanece necessariamente insuficiente. Ora, é um facto que a teoria evolucionista, onde se arrisca a alargar-se a philosophia universalis, tenta fundar um novo ethos com base na evolução. Mas este ethos evolucionista, que encontra inelutavelmente a sua noção fulcral no modelo da selecção, e portanto na luta pela sobrevivência, na vitória do mais forte, na adaptação bem sucedida, tem pouco de consolador a oferecer. Mesmo onde se tenta embelezá-lo de vários modos, continua a ser, ao fim e ao cabo, um ethos cruel. O esforço por destilar o racional a partir de uma realidade em si mesma desprovida de significado falha aqui de modo rotundo. Tudo isto é de escassa utilidade para aquilo de que temos necessidade: uma ética da paz universal, do amor prático do próximo e do necessário ir além do particular.
A tentativa de, nesta crise da humanidade, conferir de novo um sentido compreensível à noção de cristianismo como religio vera deve, por assim dizer, apontar igualmente para a ortopraxia e para a ortodoxia. Ao nível mais profundo, o seu conteúdo deverá consistir, hoje – como sempre, em última análise – no facto de que o amor e a razão coincidem enquanto verdadeiros e genuínos pilares fundamentais do real: a razão verdadeira é o amor e o amor é a razão verdadeira. Na sua unidade, constituem o verdadeiro fundamento e a meta de todo o real.
Joseph Ratzinger (Bento XVI)
In Existe Deus?,ed. Pedra Angular
© SNPC |
28.07.09
Existe Deus?
Um confronto sobre a verdade, fé e ateísmo
Autor
AA.VV.
Editora
Pedra Angular
Ano
2009
Páginas
160
Preço
€ 12,60
ISBN
978-989--961-45-1-2
Leitura: Existe Deus? Um confronto sobre verdade, fé e ateísmo. Leia «A verdade católica», de Bento XVI
17 maneiras de rezar: Sair da igreja (XIV) | IMAGENS |
Que o nosso grão seja abundante
Livro dos Provérbios: A sabedoria entrará no teu coração e o conhecimento será para ti uma delícia | IMAGENS |
O percurso de São Paulo na pintura de Ilda David': 2 Coríntios 11, 24-33 | IMAGENS SLIDE SHOW |
Fotografia: A Praia Formosa | IMAGENS |
O Evangelho das imagens | IMAGENS |