Um livro cresce imenso, na leitura e visões que inaugura, quando se abre à noite. Mais ainda, se o livro é revelado numa paisagem sonora que ilumina os ouvidos, a vida no seu vibrar. Foi o que sucedeu, no passado dia 4 de outubro. Ocorria o primeiro aniversário da inauguração do restauro do órgão construído por Manuel de Sá Couto, em 1832, para a Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, do Colégio de S. Paulo, em Braga, atual sede do Seminário Conciliar. Para assinalar a efeméride, fez-se a apresentação do livro “Restauro Filológico. Manuel de Sá Couto", da autoria do Padre Joaquim Félix. Porque de grande interesse, partilham-se aqui palavras proferidas pelos apresentadores convidados: João Manuel Duque e Domingos Peixoto.
Fotografia: Bili Teixeira, Sérgio Araújo | D.R.
Ouvir o órgão: as vozes da "Memorabilia Christiana"
João Manuel Duque, presidente do Centro Regional de Braga da UCP e investigador do CITER (Centro de Investigação em Teologia e Estudos de Religião), na qualidade de apresentador convidado, sublinhou as qualidades, não de um, mas de “dois objetos”, por cujo “peso” se equivalem sob certos aspetos: o livro e o órgão: «Um, para se ouvir, que produz arte, quando tocado como deve ser; outro, para se ler e ver, com muita arte também, até porque abundante nas imagens.» E, procedendo ao enquadramento das suas palavras, referiu que é de louvar o uso litúrgico deste órgão restaurado, porque, como lamentou, «infelizmente muitos órgãos são restaurados e, pouco tempo depois, já não funcionam, por não serem tocados regularmente»; algo que não corresponde à sua «tarefa essencial».
Concentrando-se depois nas qualidades do livro, sublinha particularidades especiais: a competente investigação, realizada pelo autor, nos arquivos das Irmandades; o estudo dos fragmentos manuscritos encontrados no interior do órgão, surpreendente «cápsula da memória, a vários níveis»; a excelente qualidade das imagens, que permite, por um lado, acompanhar o processo de restauro na Bottega Organara Giovanni Pradella e, por outro, vislumbrar a «complexidade interna que constitui a construção de um órgão»; as circunstâncias históricas que, inclusive com intrigas e litígios entre Irmandades, lhe deram origem e o conservaram vivo. Memória esta que, em horizonte aberto, também é história da cidade de Braga.
João Manuel Duque | Fotografia: Bili Teixeira | D.R.
Como não poderia deixar de salientar, na qualidade de professor da Faculdade de Teologia, tal como o autor do livro, João Duque apresentou o seu enquadramento editorial na Coleção Memorabilia Christiana, publicada em Braga, que traz para o presente a memória cristã, «memória que não é isolada» enquanto ela se apresenta «permeável às condições culturais de qualquer povo». E, nessa medida, também como parte da «memória coletiva». Tanto assim é que, «ao ouvir o órgão, nós estamos a ouvir vozes dos que nos antecederam». Memorabilia Christiana, memória cristã «que vive na permanente transformação, e nos permite estarmos conscientes de sermos aquilo que herdamos e de estarmos aqui também presentes para deixarmos algo para outros que vierem». Por conseguinte, o órgão, agora restaurado, e o livro constituem-se, assim, num «serviço à comunidade».
Domingos Peixoto: Duas palavras
Após a apresentação de João Manuel Duque, usou da palavra Domingos Peixoto, que nos últimos anos tem publicado livros sobre órgãos históricos, o restauro de alguns deles, a prática musical, o ensino do órgão no Conservatório Nacional e o movimento organístico em Portugal. De forma afetuosa, sentida mas sem saudosismos, começou por saudar muitos amigos, que estava a rever, e recordar que estudou no atual edifício do Seminário Conciliar, no ano letivo 1961-62, onde teve o prazer de tocar neste órgão e de conviver com um dos grandes mestres da escola de música bracarense, o Cónego Manuel Faria, a quem foi dedicado o livro. Depois da saudação, sintetizou quanto tinha para dizer em duas palavras. Porque escritas, teve a amabilidade de as enviar, para que mais pessoas possam usufruir da sua leitura. Eis porque, de seguida, as transcrevemos, ipsis verbis, a fim de cumprir a sua missão.
Domingos Peixoto | Fotografia: Bili Teixeira | D.R.
«Duas palavras
- A primeira, de parabéns ao autor do livro, que é um exemplo a seguir nas publicações sobre o restauro de instrumentos históricos, perfeito na sua organização e no rigor e profundidade do estudo dos documentos.
- A segunda, também de parabéns, à diocese de Braga e à própria Faculdade de Teologia pelo contexto em que esta publicação se insere.
A primeira palavra
Um órgão deste tipo é um instrumento musical que tem a sua história: Em que época foi feito? Quem o construiu? Quem o encomendou e para que espaço e finalidade? No que se refere ao restauro, quais as suas características específicas? Que alterações terá eventualmente sofrido? Em que estado se de conservação se encontrava? Quais os critérios para a sua recuperação?
Temos aqui matéria para duas áreas de trabalho:
- Para o investigador, o estudo de toda a documentação existente e disponível que lhe diga respeito, desde o contrato inicial até aos pagamentos aos tangedores/organistas;
Para o artesão organeiro: análise técnica, estudo e decisão dos trabalhos a executar, adequados a cada peça – mera limpeza, reparação ou substituição, no caso de peças irrecuperáveis. Se necessário, análise comparativa com outros órgãos do mesmo construtor.
São duas faces da mesma moeda, porque os documentos falam por si e as inscrições gravadas também; mas os materiais também falam, e por vezes mais alto, fornecendo informações que os papéis até podem ocultar; e falam através dos próprios materiais, das medidas, formas e até marcas de ferramentas, por vezes denotando subtilezas que apontam para uma relação mestre – discípulo. Só nesta aliança entre o investigador e o artesão se consegue restituir ao instrumento a sua funcionalidade sem comprometer a sua identidade.
Este livro do Pe. Joaquim Félix junta estes dois aspectos do restauro: a documentação que envolve o instrumento, outrora pertencente à Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, e um pormenorizado relato da sua desmontagem e reparação. Noutros casos existem o relatório técnico e a investigação, mas permanecem nas prateleiras dos gabinetes ou são publicados separadamente.
Mas este livro inclui também um interessantíssimo e surpreendente estudo que justifica o subtítulo ‘restauro filológico’. Uma análise minuciosa de uns fragmentos de papel utilizados por Sá Couto na vedação dos tubos, fragmentos cuidadosamente recolhidos por Giovanni Pradella. Eram restos de cartas de ou para o próprio Sá Couto, contendo relevantes informações sobre a vida do construtor do órgão. Ou seja, de papéis considerados inúteis, o autor do livro conseguiu extrair utilíssimas informações sobre este mestre construtor, Manuel de Sá Couto, o Lagoncinha, por viver em Lousado junto à ponte com este nome.
Domingos Peixoto | Fotografia: Bili Teixeira | D.R.
A segunda palavra
Também de parabéns, a segunda palavra é dirigida à Faculdade de Teologia por integrar estas ‘memórias organísticas’ na coleção Memorabilia Christiana e, igualmente, à diocese de Braga e à equipa de formadores dos futuros sacerdotes, pelo contexto pedagógico que envolve este projecto: a opção por instrumentos verdadeiros, pelo restauro dos órgãos históricos e por uma sólida formação organística, a cargo de um professor competente e profissional.
Isto denota uma plena consciência da importância da função do organista e uma visão esclarecida das medidas a tomar.
Na verdade, juntamente com a voz humana, também a voz do órgão desde há vários séculos está integrada na acção litúrgica da Igreja Católica Ocidental.
Por isso, o rei dos instrumentos integrou-se no espaço sagrado onde essa acção se desenvolve: a casa de Deus, a casa da beleza onde as artes se encontram – arquitectura, escultura, pintura, música, poesia, talha dourada, paramentaria – uma obra de arte perfeita no seu conjunto, bela, espelho da Beleza suprema, obra graciosa, com uma graça visível, reflexo da graça invisível.
Neste contexto, a sonoridade do órgão – grande ou pequeno – não é uma mera pirâmide sonora, assente nos harmónicos da ressonância natural, para responder a um número maior ou menor de cantores (assembleia, coro ou solista). Ele também tem registos/vozes solistas para que o organista ajude os fiéis a viverem os diferentes momentos da liturgia, desde a aclamação mais efusiva até ao momento de maior recolhimento.
A título de exemplo, vejamos o caso da Elevação (na celebração da Eucaristia). E como estamos a falar de um órgão histórico, posso recuar aos tempos pré-conciliares de que nos lembramos ainda. A missa era em latim e o celebrante estava de costas para a assembleia. A seguir ao Prefácio, o coro cantava o Sanctus e, de seguida, o organista tocava a solo durante todo o momento da elevação, ‘com muita modelação’ (ou modulação), como podemos ler no regulamento do organista da Misericórdia de Aveiro.
É curioso notar que na literatura organística encontramos numeroso repertório para este momento, com o título de Tocata para a Elevação, Tocata di durezze (dissonâncias) e ligature, Tento de falsas (dissonâncias), ou Tento para o levantar o Deus (num manuscrito da Biblioteca Pública de Braga).
A escrita destas peças é geralmente marcada pela dissonância, o artifício musical julgado mais apropriado para expressar o sofrimento, neste caso o momento mais alto da celebração do sacrifício incruento da cruz. Por sua vez, os órgãos tinham um registo próprio para este momento: Voz humana, Flauta romana, Flauta travessa, por exemplo, por vezes registos ondulantes para sublinhar a intensidade emotiva do momento. Ou seja, o organista devia, através do tipo de escrita ou improvisação e da sonoridade do órgão, procurar traduzir em música este momento da celebração e ajudar os fiéis a vivê-la.
Está claro que:
- No presente, como no passado, o organista tem um papel fundamental entre os músicos da Igreja. Ele tem na sua mão o poder de concentrar ou distrair, o poder de ajudar os fiéis ou de os perturbar, o poder de os atrair à igreja ou de os afugentar; tem na sua mão a nobreza da cultura e da beleza ou a arma da sua destruição.
Além de ministério, organista é uma profissão muito exigente, que requer uma atenção muito particular: ele tem que dominar a técnica, a leitura e a improvisação, e conhecer o repertório do seu instrumento. Mas ele tem que conhecer muito bem os segredos das vozes do órgão e saber adequá-las aos diferentes momentos da celebração; só vivendo ele próprio a liturgia pode com a sua técnica ajudar os fiéis a vivê-la também.
Fotografia: Bili Teixeira, Sérgio Araújo | D.R.
Conclusão
Voltando ao livro aqui apresentado, constatamos que ele se enquadra num notável movimento da diocese em reabilitar o órgão verdadeiro, aquele que ‘pode elevar poderosamente as almas para Deus’ (Constituição Apostólica Sacrossanctum Concilium). Constatamos igualmente que estamos perante uma aposta na formação organística – feito por um professor competente e profissional – começando pelos futuros responsáveis pela música litúrgica e pelo património organístico e cultural das igrejas. Ou seja, estamos perante a reabilitação do órgão e perante igual reabilitação da profissão de organista.
Termino, renovando a palavra de parabéns ao autor do livro e a quantos motivaram a sua escrita, pois, a médio e longo prazo, os frutos confirmarão o alcance destas acertadas opções, ditadas pela sabedoria. Braga, 4 de outubro de 2018. Domingos Peixoto».
Fotografia: Bili Teixeira, Sérgio Araújo | D.R.
Concerto de órgão e canto gregoriano
A apresentação do livro fez-se entre duas partes de um concerto no órgão restaurado. André Bandeira, professor de Órgão, Acompanhamento e Improvisação no Seminário Conciliar de Braga e no Conservatório de Música do Porto, que é organista na Igreja de Cedofeita (Porto), interpretou um programa ajustado ao momento e às características do instrumento, contando para a execução das peças em prática alternada com um grupo de seminaristas da Schola Cantorum do Seminário Conciliar, apoiado pelo Padre Juvenal Dinis.
André Bandeira | Fotografia: Bili Teixeira | D.R.
André Bandeira | Fotografia: Bili Teixeira | D.R.
Na primeira parte, foram executadas peças de Heinrich Scheidemann (1595–1663): — Praeludium in d WV34; de Samuel Scheidt (1587–1654): — Missa Dominicale IV Toni (prática alternada: schola e órgão) — Kyrie — Gloria; e, a terminar, — Galliarda in d, novamente de Heinrich Scheidemann. Na terceira parte, após a apresentação do livro, voltaram os mesmos compositores, mas com outras peças: de Heinrich Scheidemann: — Praeludium in d WV33; e de Samuel Scheidt: — Versus “Veni Creator Spiritus” (prática alternada: schola e órgão); Heinrich Scheidemann — Praeludium in C.
Schola Cantorum e André Bandeira | Fotografia: Bili Teixeira | D.R.
Na qualidade de autor do livro, o Padre Joaquim Félix procurou concentrar as suas palavras na gratidão aos apresentadores convidados, organista e cantores, e a todas as pessoas e instituições que contribuíram para a construção e publicação do livro. De forma esclarecida, lembrou ainda as condições excecionais que os Seminários Arquidiocesanos de Braga possuem para o ensino da música, nomeadamente a prática organística, com o órgão restaurado e os novos órgãos, um por cada capela. Algo que promoverá não só a cultura da música litúrgica nas dioceses de Braga, Viana do Castelo e Pemba (Moçambique), mas também contribuirá a seu modo para a consolidação do movimento cultural que está em curso.
Por fim, e sem deixar de testemunhar o gosto que lhe deu a escrita desta obra, convidou as pessoas a contemplar o órgão, que, entretanto, apareceu e identificou, no decurso da investigação sobre o órgão restaurado. E, como não poderia deixar de ser, segundo o seu espírito de investigador, prometeu mais revelações a propósito da história e construção deste órgão histórico, o mais antigo que o Seminário possui.
Fotografia: Bili Teixeira, Sérgio Araújo | D.R.