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«O Senhor não está no ruído»: Os rostos do silêncio, por José Augusto Mourão

O silêncio jaz, como os textos, arqui-orais, à espera que o acorde (o ressuscite) algum passante ou legente. Aparentemente, o silêncio não é um ato comunicativo: espera a sua vez, a sua fala, enquanto memória figurativa do corpo e superfície de inscrição de emoções (luto, suspense, reprovação, anuência, desabamento, júbilo). Se me volto para alguém, se o interpelo, e esse alguém não se voltar para mim, não me responder, o seu silêncio tem em mim um efeito passional, intrigante, interpretável como recusa, desprezo, abandono. Se peço silêncio, interrompo a fala do outro; obrigar o outro a calar-se: “Cala-te!” é utilizar uma injunção fortemente modalizada: “eu quero” (que te cales), “tu deves” calar-te. O silêncio, na interação social é a ausência de fala. Enquanto modo de representação, o silêncio prende o sujeito emissor ou recetor, criando uma relação nova com o espaço e o tempo em que evolui. O silêncio nesta área pode ser dividido em três categorias (Bruneau, 1973): mental, social, ou ambas, sendo definidas segundo o tempo, o contexto e a perceção. Há quem fale do silêncio surdo, isto é o silêncio que não sonoro mas gestual, próprio dos surdos para quem fazer silêncio – ou calar-se – no mundo visual que é o seu, se mostra quando deixa de mexer as mãos como outros deixariam de abrir a boca (onde encontramos o corpo enunciante). Fisiologicamente, o silêncio é o resultado de hesitação, autocorreção, ou de deliberada interrupção da fala com o fim de clarificação ou de processamento de ideias. Há silêncios curtos e silêncios longos, em intensão e em extensão. O silêncio interativo manifesta-se nas funções interativas, reativas, ou de dar lugar à fala do outro. Mas há o silêncio incapacidade de responder, recusa, significante musical (suspiro, pausa), esvaimento da linguagem diante do inefável. E há o mutismo como perversão do desejo quando “le silence même de la vie est contaminé et la source de la parole polluée”, escreve D. Vasse.



Thomas Merton falava de vida religiosa como vida silenciosa. O que a vida religiosa exige é que se deixe instalar o silêncio para que Deus fale, que se entre no silêncio de si para aí ouvir a Palavra. Quando amamos alguém, procuramos a sua presença: basta então que aquele que procuramos esteja lá, mesmo que nenhuma palavra se troque: essa é a verdade do silêncio interior



Há o intervalo entre o apelo da voz que se faz ouvir no interior do corpo e a sua proferição sob forma de oração, de meditação, de “monólogo interior”, de mutismo, de ressentimento. Uma mente silenciosa, liberta do ruído do pensamento é uma finalidade e um importante passo no desenvolvimento espiritual. Esse “inner silence” não é ausência de som; pelo contrário, é entendido como o pátio que permite o contacto com o divino, a realidade última, ou a verdade de cada um. Muitas tradições religiosas implicam a importância de estar quieto e mesmo no pensamento e no espírito em vista ao crescimento espiritual transformador. No Cristianismo existe o silêncio da oração contemplativa, ou de meditação cristã; no Islão, há a sabedoria dos escritos dos Sufis que insistem na importância de encontrar o silêncio dentro de si. No Budismo, o silêncio permite que a mente se torne silenciosa em função da iluminação espiritual. No Hinduísmo, incluindo os ensinamentos do Advaita Vedanta e os passos do yoga, os mestres insistem na importância do silêncio para o crescimento interior. Em algumas tradições do Quakerismo (ramo do Cristianismo), o silêncio é uma parte presente nos serviços da oração e um tempo que permite que o divino fale ao coração. Que é a meditação senão um «pensamento acompanhado por reflexão que procura com prudência a causa e a origem, o modo e a utilidade de cada coisa»? A meditação que isola a alma da azáfama das atividades terrestres precisa do silêncio como a sua antecâmara, como condição da sua potenciação. O primeiro gesto do silêncio é a expulsão do mundo e do ruído, conforme está escrito: “O Senhor não está no ruído” (1 R 19,11). A casa é o dentro. O invólucro do silêncio como movimento imóvel. E é porque se associa o silêncio associa ao espírito que a matéria pode aparecer como obstáculo ou trampolim. Há o silêncio que acompanha a recitação e que opera uma rutura no fio da praxis enunciativa – a oração, v.g., ou a pausa numa partitura musical, ou ainda a interrupção da fala numa situação interlocutiva. Para o autor de “La voix nu”e a leitura da “lectio divina” é uma “épreuve de nudité”. (…)



«É no meio do silêncio, no momento em que todas as coisas mergulham no maior silêncio, em que o verdadeiro silêncio reina, que se ouve o Verbo, porque se queres que Deus fale, é preciso calares-te: para que ele entre, todas as coisas devem sair»



O silêncio é uma estratégia de comunicação, um fazer, como se verá adiante no relato da mulher que se ajoelha aos pés de Jesus e lhe unge os pés, e que lemos como uma parábola no decurso de um discurso. O corpo fala, o silêncio é um gesto significante, afetivo. Há silêncios prenhes: Jonas, no ventre da baleia, é o símbolo de Cristo silencioso no seio da mãe e, ao mesmo tempo, a figura reduzida ao silêncio e que depois renasce, falando. Thomas Merton falava de vida religiosa como vida silenciosa. O que a vida religiosa exige é que se deixe instalar o silêncio para que Deus fale, que se entre no silêncio de si para aí ouvir a Palavra. Quando amamos alguém, procuramos a sua presença: basta então que aquele que procuramos esteja lá, mesmo que nenhuma palavra se troque: essa é a verdade do silêncio interior. Nesse silêncio escuta-se o que vive em nós, a palavra. O silêncio da presença faz apelo a um presente radicalmente outro. S. Agostinho coloca a questão de fundo: lembramo-nos do passado, antecipamos o futuro, mas o presente? E contudo, não podemos definir o passado e o futuro senão relativamente ao presente. O silêncio faz parte da observância regular recolhida da tradição por S. Domingos. Entre os elementos da vida regular e que constituem a vida dominicana, por exemplo, destaca-se o silêncio. No nº 46 do Livro das Constituições e Ordenações lê-se: «Os irmãos devem diligentemente guardar o silêncio, sobretudo nos lugares e tempos destinados à oração e ao estudo; é, com efeito a defesa de toda a observância e contribui sobremaneira para a vida religiosa interior, para a paz, para a oração, para o estudo da verdade e para a sinceridade da pregação». (…)



Jesus não fala, quando se ajoelha diante dos discípulos para lhes lavar os pés. O seu ato vale pela palavra: o seu ato faz corpo com a sua palavra ou a sua palavra faz corpo com o seu ato. O seu ato é palavra



O tempo da receção vive-se antes de mais no silêncio. Acolher o dom do amor do Outro passa pelo silêncio da escuta. Ou não fosse o silêncio o pai da palavra, como dizia Domingos de Gusmão. O místico Jean Tauler, evocando o “Dum medium silentium” da liturgia, escreve: «É no meio do silêncio, no momento em que todas as coisas mergulham no maior silêncio, em que o verdadeiro silêncio reina, que se ouve o Verbo, porque se queres que Deus fale, é preciso calares-te: para que ele entre, todas as coisas devem sair». Receber a palavra não é receber uma mensagem a transmitir, é reconhecer esta palavra num corpo, como palavra da vida. É pelo corpo que passa a receção: não há palavra sem interação. Não há praxis enunciativa sem um corpo que responde a outro corpo. Mesmo que seja virtual: afinal, pensar, recordar, são operações virtuais, não há traços visíveis que as colham, ao contrário da escrita.



Deus é percetível como um perfume quando o confessamos e celebramos. «Eis onde estás! Respiro um pouco em ti quando derramo sobre a minha alma num grito de alegria em que ressoam ares de festa celebrada»



O texto de João diz-nos que o gesto de dom tecido na verdade do silêncio é um mais pregnante do que qualquer outro, calculista, dominador, masculino. Como anunciar aquele que nos tocou sem pronunciar uma palavra só? Estando Jesus em Betânia, à mesa, chegou uma certa mulher que trazia um frasco de alabastro, com perfume de nardo puro de alto preço; partindo o frasco, derramou o perfume sobre a cabeça de Jesus (Mc 14,3). Uma mulher coloca um gesto em silêncio: quebra um frasco de perfume e derrama-o na cabeça de Jesus. Gesto que os discípulos não entendem. Jesus assinala a distância entre o gesto e o efeito que criou quando lido e interpretado. As palavras dos discípulos não entendem a perda senão em termos de descodificação. Jesus dirá que ela «fez uma boa obra». Ela não perfuma o corpo morto, mas um corpo à mesa. «Em qualquer parte do mundo onde for proclamado o Evangelho, há de contar-se também, em sua memória, o que ela fez» (Mc 14, 9). O seu gesto é transformado em palavra de anúncio. O perfume derramado transforma as aparências e aquilo que se diz delas, abrindo um outro espaço. O vaso quebrado assinala a dissociação entre as palavras e as coisas (as aparências) em que diz algo diferente da relação ao outro: este corpo vivo como “coisa” visível não deve ser tido por aquilo que parece ser, transporta um outro tempo e um outro espaço nele: «O filho do Homem será entregue, sofrerá, morrerá e ressuscitará ao terceiro dia». O frasco partido rasga as aparências e faz intervir uma palavra que vem de algures, do fundo das Escrituras. A unção pode ser vista como um gesto colocado sobre o corpo: um corpo morto pede que sobre ele se coloquem gestos de embalsamento. Este gesto é uma porta que abre para um corpo a vir, inscrevendo nas margens do visível o invisível da vida e da morte. O gesto da mulher adverte para a ilusão de poder absoluto sobre o mundo, sobre si e o outro. A palavra nasce do silêncio. O silêncio da mulher é um silêncio prenhe: o da palavra silenciosa, da palavra do corpo que fala. Esta mulher fala por gestos, não por palavras: prefigura o triunfo da morte. Pode este perfume útil para a conservação do corpo morto servir para a conservação da palavra? De que fala esta fratura do vaso senão do ato de proclamação e da economia, dom do amor que só na brisa ligeira se percebe – que é discreto, silencioso – e nos leva a desconfiar da impostura da língua e dos grandes gestos. O dom da mulher passa por um perfume evanescente que passa numa brisa ligeira e é o seu gesto de derramar este perfume que Jesus associa ao anúncio do evangelho. Jesus não fala, quando se ajoelha diante dos discípulos para lhes lavar os pés. O seu ato vale pela palavra: o seu ato faz corpo com a sua palavra ou a sua palavra faz corpo com o seu ato. O seu ato é palavra. Deus é percetível como um perfume quando o confessamos e celebramos: “Respire in te paululum” (Conf. XIII). «Eis onde estás! Respiro um pouco em ti quando derramo sobre a minha alma num grito de alegria em que ressoam ares de festa celebrada» (Agostinho).



A evidência do divino vivo, tal um oceano de luz, é doçura e dá-se não ao raciocínio, mas ao coração e à sensação: o «tudo sentir em Deus» de Isaac o Sírio torna-se o culto da “sensação de Deus” que recusa as palavras e se afasta da lógica da teologia



De acordo com as normas culturais, o silêncio pode ser interpretado como positivo ou negativo, por defeito ou por excesso. Enigmático é o rosto do silêncio que denuncia o exílio da palavra e do encontro. Os monges inventaram técnicas de suspensão, práticas de interrupção da fala. No meio Metodista Cristão, a organização da fé e do silêncio, bem como a reflexão durante os sermões deve ser apreciada pela congregação, enquanto numa igreja Baptista do Sul, o silêncio pode significar desagrado relativamente àquilo que está a ser dito, ou talvez desconexão da comunidade congregada. Diz-se que só temos uma experiência completa do silêncio na morte. O silêncio completo é quando não se sente o mínimo ruído. Nos laboratórios, os animais submetidos a uma total falta de ruído mostram sinais de mudanças de comportamento e de agressão. Na religião ortodoxa o culto do silêncio tem um lugar de destaque. A excelência espiritual do hesicasta é silenciosa e contemplativa. A evidência do divino vivo, tal um oceano de luz, é doçura e dá-se não ao raciocínio, mas ao coração e à sensação: o «tudo sentir em Deus» de Isaac o Sírio torna-se o culto da “sensação de Deus” que recusa as palavras e se afasta da lógica da teologia. A apófase é o cúmulo desta teologia negativa que nega a limitação conceptual de Deus: nem valor, nem conceito, nem representação, Deus é o inacessível, o mistério sem fundo. (…) Através do trabalho da ausência, do luto, do vazio, sempre pulsional, não é o silêncio a manifestação de um indizível?









 

José Augusto Mourão
In Didaskalia
Imagem: IvanSpasic/Bigstock.com
Publicado em 08.10.2023

 

 
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