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Quase culpados de estar vivos

«A duração da nossa vida poderá ser de setenta anose, para os mais fortes, de oitenta;/ mas a maior parte deles é trabalho e miséria,/ passam depressa e nós desaparecemos»: este versículo do Salmo 90 é certamente subscrito por muitos, e em particular pelos idosos, que têm uma consciência concreta e quotidiana dos seus limites e da diminuição a que estão sujeitos. Os idosos, mesmo que tentem remover o pensamento dos dias que estão diante deles, sabem que estes não serão muitos. Sabem que, inexoravelmente, repentinamente ou após um itinerário de doença, serão os dias últimos da sua vida.

Os velhos, precisamente, são os mais atacados pelo coronavírus, e por isso dificilmente são capazes de atravessar a doença com um resultado positivo. Dizem-no as estatísticas diárias: os mais jovens também são atingidos, mas a frequência de mortos entre os idosos não deixa espaço à segurança de se ficar isento de um caminho penoso. É o itinerário que conhecemos, porque o vemos diariamente através dos média: itinerário de solidão, de isolamento, de impedimento à comunicação com os seus amados; é um caminho desesperante, de que só se pode desejar um rápido fim.

Um artigo de há alguns anos definiu a geração dos nascidos no início dos anos 40 como «a geração perfeita», no sentido de uma geração afortunada. Com efeito, assim parecia ser, mas agora também ela parece carregar os sinais da desgraça. É a geração que sofreu o desmantelamento, teorizado ou simplesmente praticado, da parte de agentes políticos e sociais que desfraldavam a bandeira da novidade, e agora se sente quase culpada por ainda estar viva. E cada um, do seu ponto de vista, gostaria de prescindir desta experiência de democratização, já que a pandemia atinge todos, soberanos e pobres, fortes e fracos, jovens e velhos: todos ameaçados da mesma maneira, todos juntos na mesma barca.

Não se ouve declarar que, perante a impossibilidade de se salvar todos os doentes, dada a escassez de meios técnicos à disposição, se escolhe quem é mais jovem e se deixa morrer o idoso? Paralelamente, este é um discurso que, de testemunhas autênticas, sabemos ter inspirado alguns doentes idosos (como o P. Giuseppe Berardelli) a pedir para que fosse curado um jovem em vez deles próprios. Trata-se de uma escolha de quem está disposto a permitir a um outro viver em seu lugar: gesto ditado por grande caridade e fortaleza de espírito, gesto que só pode ser inspirado por um amor pela comunidade humana e pela disposição ao sacrifício de si pelos outros.

Mas também é verdade que este discurso torna a entrar na lógica da eugenética, pela qual este critério é aplicado também em relação às pessoas com deficiência ou com doenças graves; como se tivessem menos direito a viver do que outros… Mas quem de nós sabe, na verdade, o que significa a sua vida para os outros, quer se seja jovem ou velho, deficiente ou não? Sim, muitas pessoas frágeis estão amedrontadas e, no caso de viverem sós, tornam-se presas de fantasmas e pesadelos difíceis de dominar. Só a proximidade e o afeto a elas mostrado com muita ternura podem ser um bálsamo para a sua fragilidade. E os idosos são as nossas raízes, são a experiência convertida em sabedoria, são também – como recita um provérbio africano - «as nossas verdadeiras bibliotecas».

Mais do que nunca é preciso ser-se inteligente e humano, afirmando que o sentido da vida vem primeiro do que o sentido dos negócios, que o sentido da vida não diz respeito a alguns, mas a todos, e que nunca pode ser medido e calculado: com efeito, viver é o sentido mais profundo para cada homem e cada mulher que veio ao mundo.


 

Enzo Bianchi
In Monastero di Bose
Trad.: Rui Jorge Martins
Imagem: Rido81/Bigstock.com
Publicado em 08.10.2023

 

 
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