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Arquitetura

Árvore da Vida: Capela do Seminário Conciliar de Braga

Do desconforto ao desafio

Tal como as plantas, a Árvore da Vida germinou lentamente numa sensibilidade que se desenvolveu ao longo dos últimos cinco anos. Como professor de Liturgia e Sacramentos, no Seminário e na Faculdade de Teologia, na unidade curricular de Pastoral Litúrgica, sensibilizava os alunos para, entre outras matérias, cuidar os espaços litúrgicos. Consciente do grande significado da arquitetura religiosa contemporânea, quer para a expressão da fé que se professa e testemunha, quer para o diálogo com os artistas e a cultura, apresentava-lhes uma série de capelas e igrejas de grandes arquitetos estrangeiros e também portugueses: Gaudi, Rudolf Schwartz, Corbusier, Henry Matisse, Maurice Novarina, Alvaar Aalto, Rothko, Mario Botta, Constantino Ruggeri, Giovanni Michelucci, Décio Tozzi, Jonh Pawson, Tadao Ando, Steven Holl, Peter Zunthor, Richard Meyer, Massimiliano Fuksas, Paolo Zermani, Renzo Piano, Rafael Moneo, Nuno Teotónio Pereira, Álvaro Siza, José Fernando Gonçalves, Paulo Providência, Bernardo Pizarro Miranda, entre outros. Várias obras, sobretudo em Portugal e Itália, foram objeto das nossas visitas de estudo.

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A determinada altura, apercebemo-nos que o maior conhecimento destes edifícios aumentava o nosso desconforto em relação à qualidade das capelas do Seminário construídas nos anos 90’ do século passado. Decidimos então aprofundar a coerência entre aquilo que se ensinava e a expressão litúrgica praticada, com a reorganização espacial da capela de S. Pedro e S. Paulo, para toda a comunidade, e a construção de uma nova, no lugar de duas, para o Biénio e o Triénio, a usar de forma rotativa.

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Objetivos da comunidade Seminário

Em termos de objetivos, a nova capela, assim pensávamos, haveria de promover uma sempre mais renovada espiritualidade, a partir da ação litúrgica propriamente dita, trabalhada na expressão da ars celebrandi e vivida como a primeira expressão teológica dos mistérios da Fé. Além disso, tendo em conta que o Seminário é escola de sucessivas gerações de pastores, estamos persuadidos de que os novos presbíteros, nas comunidades para onde forem enviados, tudo farão por implementar, salvaguardadas as circunstâncias específicas, a reforma litúrgica conciliar nos aspetos referidos. E, bem assim, hão de valorizar os bens culturais do inestimável património da Igreja e, eventualmente, patrocinar a produção de outros, num registo pautado pela qualidade e pelo diálogo com os artistas. Tudo isto em sintonia com o veemente apelo de Bento XVI, que se coloca na esteira dos esforços do Beato João Paulo II e de Paulo VI.

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Assumido o desafio, entrámos em contacto com os arquitetos e passámos aos estudos. Durante um ano e meio, multiplicaram-se as leituras sobre o tema. Era importante ter em conta os principais debates sobre arquitetura religiosa no século XX, desenvolvidos sobretudo nas áreas germânica, francófona e italiana, e alargar os conhecimentos em relação à primeira década do século XXI. Foi o que fizemos em constante partilha.

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Ideia matricial do fundamento teológico

Reunida tão grande quantidade de informação, tornou-se indispensável adotar uma ideia que servisse de base ao projeto da nova capela. Foi uma tarefa difícil, pois fazer opções comporta sempre riscos.

A teologia litúrgica desenvolvida na Constituição Sacrosanctum Concilium, do Concílio do Vaticano II, forneceu-nos o fundamento teológico para o programa da capela: a história da salvação, centrada no mistério pascal de Jesus. Assim lemos no n. 5:

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«Deus, que ‘quer que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade’ (I Tim 2,4), ‘tendo falado outrora muitas vezes e de muitos modos aos nossos pais pelos profetas’ (Hebr 1,1), quando chegou a plenitude dos tempos, enviou o Seu Filho, Verbo feito carne, ungido pelo Espírito Santo, a evangelizar os pobres, curar os contritos de coração, como médico da carne e do espírito, mediador entre Deus e os homens. A sua humanidade foi, na unidade da pessoa do Verbo, o instrumento da nossa salvação. Por isso, em Cristo ‘se realizou plenamente a nossa reconciliação e se nos deu a plenitude do culto divino’. Esta obra da redenção dos homens e da glorificação perfeita de Deus, prefigurada pelas suas grandes obras no povo da Antiga Aliança, realizou-a Cristo Senhor, principalmente pelo mistério pascal da sua bem-aventurada Paixão, Ressurreição dos mortos e gloriosa Ascensão, em que ‘morrendo destruiu a nossa morte e ressurgindo restaurou a nossa vida’. Foi do lado de Cristo adormecido na cruz que nasceu o sacramento admirável de toda a Igreja» (SC 5).

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Para traduzir esta ideia matricial, explorámos o relato da criação, do Livro do Génesis: a capela corresponde ao sétimo dia, consagrado ao repouso doxológico. Na caixa envolvente, em matéria cimentícia de tons e relevos caóticos, o programa icónico explora, num políptico da pintora Ilda David’, motivos dos primeiros seis dias. Na recapitulação simbólica de todo o tempo, nós encontramo-nos no espaço dedicado à nossa santificação e à glorificação de Deus, isto é, no jardim terrestre que, pela tipologia icónica do ambão, se transforma no jardim do tempo pascal. Somos desta forma convocados para fazer a trajetória do caos ao cosmos, colocando-nos no mundo na prossecução da obra criadora de Deus.

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Enunciação dos elementos mais relevantes

A liturgista Cettina Militello escreve, no seu livro La casa del popolo di Dio. Modelli ecclesiologici, modelli architettonici, que «dificilmente um artista, um arquiteto nos dá, além da obra de arte que produz, uma detalhada interpretação daquilo que o induziu, passo após passo, a fazer a sua escolha» (p.245). Sem pretender entrar em detalhes hermenêuticos, gostaria de enunciar alguns dos elementos mais significativos da capela, quer da arquitetura quer do programa icónico.

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Simbólica arquitetónica

- A biblioteca espiritual, que se encontra sob a capela, no banco do nártex e no lado nascente, é alicerce duma cultura sapiencial que cresce na leitura.

- O eixo oblíquo, de porta a porta nos ângulos, de forma a explorar o caminho mais longo no interior. Como nos labirintos nas catedrais da Idade Média ou nos pavimentos cosmatescos nas basílicas e capelas romanas, o mistério procura-se, mesmo se a passo de dança na aproximação ao altar.

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- As paredes, com espessura variável entre os 5 e 200 cm, construídas com luz e matéria, duma transparência e dinamismo pascal.

- A clareira, nas alturas, que assinala o itinerário entre as árvores do jardim.

- A porta de entrada sem portadas, porque aberta pelo Crucificado, como se lê na carta do Espírito à Igreja de Filadélfia, no livro do Apocalipse: «Eis que coloquei diante de ti uma porta aberta que ninguém pode fechar» (Ap 3,8).

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- A pequena câmara num dos ângulos interiores, destinada à Reserva Eucarística, com um banco só, proporciona o diálogo íntimo e personalizado com Jesus.

- O altíssimo canal de luz que ilumina, numa perspetiva zenital, o nártex.

- A caixa de luz do andar superior que, desde os corredores suspensos, garante o necessário diálogo com a cidade.

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- As pedras adotadas nos degraus, na pia de água benta, no ambão e no altar, são pedras rejeitadas. Em matéria negra com cristais brancos, são nódulos que aparecem nas cavas de granito da região de Amares.

- Na iluminação vinca-se a apostolicidade da assembleia, com doze lâmpadas; e a dimensão trinitária do mistério eucarístico, com três lâmpadas sobre o altar. 

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Programa icónico

- A inspiração bíblica e patrística das pinturas de Ilda David’: além do já referido político da criação, as miniaturas, que ladeiam os aros da porta de entrada, com os querubins da espada flamejante, que Deus colocou na porta do jardim terrestre após a expulsão de Adão e Eva, para, como se lê em Gn 3,24, «guardar o caminho da árvore da vida»; e, em grande destaque, o tríptico da árvore da vida, que acompanhou o Breve Sumário da História de Deus, peça de teatro de Gil Vicente, levada a palco nos teatros nacionais S. João no Porto e D. Maria II em Lisboa; tríptico com a árvore da vida a abrir-se tipologicamente na árvore da Cruz, com três motivos do mistério pascal, um em cada pintura.

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- O perfil metálico de S. João Maria Vianney, padroeiro dos párocos, recortado pelo escultor Manuel Rosa, a partir duma escultura, em mármore branco, que se encontra em Ars.

- Os grafitos, escavados pelo escultor Asbjörn Andresen, na matéria cimentícia, com o versículo primeiro do Génesis, na coluna, e uma seta apontada a Este, na parede do lado da porta estreita, para indicar que o caminho, por longo que seja, está sempre escatologicamente orientado para o Sol Nascente, Jesus Cristo.

- A sombra de uma mão, na coluna do nártex, decalcada pela humidade da mesma após a conclusão dos grafitos, fixada a lápis de carvão, como sinal para a humanidade de que alguém se esforçou para alcançar a beleza deste lugar.

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Peças litúrgicas

- O ambão, colocado a Sul, inspirado num arquétipo iconográfico antigo: o túmulo aberto da manhã de Páscoa, cuja grande pedra, com mais de trezentos quilos, é escabelo dos pés daquele que lê ou proclama a Palavra da Vida. Como o túmulo de Jesus foi colocado também num jardim, o espaço recebe um significado novo: faz com que o jardim pascal se sobreponha ao jardim terrestre. E, assim, melhor se compreende a ligação entre a antiga e a Nova Aliança. Hoje, como a Igreja que vive da escuta, sabemos que «quando é lida a divina Escritura, Deus torna a passear no jardim terrestre» (S. Ambrósio). Acolhemo-Lo, agora, sem que o rumor dos seus passos desperte a nossa vergonha. Porque Ele nos anuncia que Cristo vive, nos pacifica e acompanha.

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- O altar configura-se como um verdadeiro monumento à teologia eucarística: na vertical, trabalha-se a dimensão sacrificial, com uma pedra dramática que ostenta uma esquina partida (lado aberto de Cristo); na horizontal, explora-se a dimensão convivial, a partir do arquétipo da mesa maceira, em carvalho nacional, com tampo em duas tábuas e um nó numa delas. Um laço, que entra tanto na pedra quanto na madeira, sublinha a unidade intrínseca destas duas dimensões do sacramento da Eucaristia.

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- O sacrário é feito de madeira de freixo, com forma cúbica. Inspira-se no capítulo X da Didaché, onde, numa belíssima oração de ação de graças, se pede que o Espírito reúna a Igreja «dos quatro ventos da terra». A sua abertura faz-se de forma ritualizada, com a possibilidade de abrir quatro das seis faces. Um rolo de madeira de oliveira, com aros e copa de prata dourada, conserva dentro do cubo o Pão Eucarístico.

- As galhetas e o jarro para o lavabo resultam da obra conjunta da barrista barcelense, Júlia Ramalho, e do escultor norueguês Asbjörn Andresen.

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- O cálice, a patena, a custódia e o turíbulo serão de prata, obra de uma oficina de Braga, a partir de desenhos já entregues pelo escultor Asbjörn Andresen.

- O órgão é um positivo com apenas um registo e meio, com tubos em metal e madeira. O organeiro Pedro Guimarães, de Esmoriz, encontra-se a construi-lo. A caixa estrutural, sem decoração, é em carvalho francês. As teclas são forradas a buxo e as escuras em ébano. Mais árvores para o jardim frondoso.

- O candelabro pascal e as vestes litúrgicas estão ainda em estudo.

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Síntese final

Se pretendesse apresentar a capela num simples esboço hermenêutico, teria de recorrer ao último parágrafo dum capítulo intitulado Di Kaos e di Kosmos. Ad amica teosofa, do livro Scritti di Estetica e di Poietica. Su l'arte di qualità liturgica e i beni culturali di qualità eclesiale, de Crispino Valenziano, meu professor no Pontifício Instituto Litúrgico Santo Anselmo, em Roma, com quem fui dialogando ao longo da realização da capela. Para que se entenda, é suficiente dizer que as palavras são de um Bispo que responde a uma amiga, sobre a fecundidade do caos: «Interrogaste-me sobre o caos e a sua virtualidade, e eu te respondi sobre o cosmos e as suas realizações. Penso que a inter-relação é esta (a que lhe revelou ao longo do capítulo) e faz a hermenêutica que tu desejas. Por isso, auguro que este meu conceito te ajude a mostrar a glória divina que neste intricado bosque estetiza a nossa procura e poietiza a nossa espera.»

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A seta grafitada por Asbjörn Andresen faz-me lembrar um outro parágrafo de Manuel Zimbro, que destaco do texto intitulado A Sombra da Flecha, que se encontra no catálogo da Exposição «Além da Sombra», de Lourdes Castro, realizada no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian. O texto diz o seguinte: «Num Caminho, seja vereda, ponte ou destino, o que importa, em primeiro lugar, vem do que por lá passa. Depois, porque permite ao que passa, passar de um lugar para um outro. Caminhar, ir mais longe, só é possível graças ao fogo que anima as mais íntimas disposições».

Sim, o fogo do Espírito Santo anima as nossas mais íntimas disposições para, como peregrinos sobre a terra, fazermos o caminho mais longo no interior, através do jardim pascal, entre o ambão e o altar. Ambas as portas abertas também nos convocam para a saída: a mais larga, para anunciarmos, com ardor missionário, a mais bela notícia aos irmãos no exercício da caridade; a mais estreita, para prosseguirmos o caminho em direção à cidade do Alto, a Jerusalém celeste, na esperança da criação dos novos céus e da nova terra.

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Para não me alongar mais, gostaria de dizer apenas que esta capela é, nas palavras do arquiteto Vittorio Gregotti, «uma metáfora de eternidade». Para contemplá-la bem, não podemos cometer duas outras renúncias, denunciadas por Gregotti a propósito das falhas da arquitetura contemporânea, a saber: a primeira, «a renúncia ao desenho de modificação do presente como projeto de confronto crítico com o contexto»; a segunda, «a renúncia à capacidade de ver pequeno, com precisão entre as coisas e portanto a necessidade da regra que funda a exceção não ostentada».

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Texto: Joaquim Félix de Carvalho
Fotografias: Asbjörn Andresen, Sérgio Conde
Desenho e implantação da capela: António Jorge e André Cerejeira Fontes
7.ª Jornada da Pastoral da Cultura, Fátima, 17.6.2011
© SNPC | 22.07.11

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