Poesia
Dois poemas inéditos de Ruy Cinatti
Navios de vento
Fechei a minha janela
        ao vento que vem do largo
        que entra pela foz do rio
        e declina pela cidade
        silvando pelos telhados
        que lhe servem de desvio.
        No rio sobem navios
        que apitam de quando em quando.
        Oh mudo pranto fechado,
        que se ouve no meu quarto!
Mas o vento força a porta
        sublinha-se pelas frinchas
        com denodado desígnio
        que me fere de malícia.
        Abro a janela fecho-a
        e recebo-o em minha casa
        com honras de visitante,
        pé atrás, outro adiante,
        como se fosse esperado.
        Oh pranto desenganado!
Não converso, não me espanto
        com o que o vento sussurra
        quando entra de improviso.
        O que se ouve no meu quarto
        é um anjo apavorado
        que me pretende assustar
        com uma voz de além-túmulo
        ouvida algures, além mar.
        Oh lamento recordado
        de uma criança a chorar!
Eu vejo cavalos brancos
        galopando sobre as nuvens,
        as crinas ao ar soltando
        como um cardume assustado.
        O vento que me percorre
        rodopia sem cessar
        enche-me o quarto todo
        de furtivos sentimentos
        difíceis de controlar.
        Oh mudo pranto fechado
        a sete chaves pelo vento!
26/2/75


[Meu o testamento]
Meu o testamento
        o que possuo na memória de outros
        que me transcenderam
        e o que me custou a declarar
        a quem – cerrados  dentes – 
        tinha horizontes,
        ilhas por cartografar
        e sendo um dos poucos neste mundo
        digno do seu nome,
        não lamentarei,
        antes lhe calçarei sandálias de ouro,
        minhas calças por provar ainda.
        Um destino de nunca acabar
        dou-lhe por aumento
        de uma força que nos una a todos.
Sim – não desistamos!
        Sim – não nos magoemos!
        Antes lembremos o pronunciamento
        com Che Guevara e com mestre Heráclito!
        Tudo flui
        como num rio outro
        e todos os rios cessam no mar.
        Os inimigos poderão ser muitos.
        Com todos eles estaremos a par.
        É no mar de móveis horizontes
        que nos juntaremos
        a sós com os elementos
        água, céu e fogo.
Meu o testamento
        a quem o dito, a quem o testemunho,
        a quem o transmito,
        antes mesmo de iludir a forma
        de que me revisto.
        O estilo será outro, mas a forma
        é imortal
        e chama-se alma.
        Que ma tomem os que ainda pressinto
        terem o íntegro
        poder de audácia
        revolucionária
        por nunca se satisfazerem com o mínimo
        neles apenas surto
        de começos sempre no plural.
A quem transmito o meu testamento,
        cabe, piedoso,
        distribuí-lo entre os mais escolhidos,
        os que sonharam não serem vencidos,
        os que sonharam 
        voltar um dia ao país natal,
        bemaventurados
        de nobre escolha e firme propósito:
        Um dia livre
        de miseráveis concessões políticas;
        um dia ímpar
        que nos redima para toda a vida;
        um dia igual
        ao das minhas-nossas gerações futuras.
O meu desejo:
        Que o meu país se encontre de novo.
        Que se anuncie Portugal!
26/2/75


Ruy CInatti
        Poemas e fotografias recolhidas do espólio do autor, à guarda da Universidade Católica Portuguesa        
        Seleção: P. Peter Stilwell
        © SNPC |
        24.11.11
        
      

Ruy CInatti





    
  
