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Fé e cultura

Egas Moniz: «Que existe para além da morte?»

No dia 29 de novembro de 1874, nasceu na vila de Avanca, na “Casa do Marinheiro”, o prof. doutor António Caetano de Abreu Freire Egas Moniz, médico, cientista, escritor, orador, professor catedrático, político e estadista de renome mundial. Faleceu em 13 de dezembro de 1955, na cidade de Lisboa, e os restos mortais, trasladados para a terra natal, foram sepultados no cemitério local.

Lembro uma curiosidade interessante sobre os seus cognomes “Egas Moniz”, que não herdou de seus pais. O tio paterno e padrinho, padre Caetano de Pina Resende Abreu Sá Freire, sendo pároco de Pardilhó, levou-o para a sua companhia e cuidou dos primórdios da sua educação. Como o mencionado sacerdote se interessava pelas genealogias, convenceu-se de que os Resendes descenderiam diretamente de D. Egas Moniz, aio de D. Afonso Henriques, nosso primeiro rei; por isso, tomou a iniciativa de substituir no nome do sobrinho o patronímico “Resende” pelos apelidos “Egas Moniz”, com os quais ficaria a ser conhecido.

Seguidamente, estudou com os padres jesuítas no Colégio de S. Fiel, na freguesia do Louriçal do Campo (Castelo Branco), cursou medicina na Universidade de Coimbra e frequentou as clínicas neurológicas de Paris e de Bordéus. Exerceu também o magistério universitário, tanto em Coimbra como em Lisboa.

Pode afirmar-se, sem sombra de qualquer dúvida, que o prof. doutor Egas Moniz foi pioneiro de descobertas em ramos específicos da medicina. Em junho de 1927, depois de cuidadosos e prolongados estudos experimentais, realizou a primeira angiografia cerebral no homem. Através de uma injeção na carótida de uma substância opaca aos raios X, conseguiu a visualização dos vasos sanguíneos do cérebro. Tal processo permitiu-lhe obter em películas radiográficas a imagem dos vasos sanguíneos intracranianos; isto significou um extraordinário passo no progresso da cirurgia cerebral. Por esse método, passaram a localizar-se tumores e hematomas, facilitando as intervenções médicas. Escreveu ele, mais tarde: «Quando consegui ver pela primeira vez ao raio X as artérias do cérebro, através dos ossos espessos do crânio, tive um dos maiores deslumbramentos da minha vida».

Em 1935, baseado em conceitos fisiológicos, concebeu uma nova forma de operação cirúrgica no cérebro, com o fim de interromper as conexões do lobo frontal com outras regiões encefálicas: a leucotomia pré-frontal. Para ele, o impossível não significava aquilo que não era possível, mas aquilo que ainda não era possível; por isso, entre as duas perspetivas, com vontade persistente de vencer, trabalhou com inteligência no caminho da investigação e da ciência.

A bibliografia médica do prof. doutor Egas Moniz  é vastíssima. Além de cerca de quatrocentas separatas, memórias, discursos e trabalhos científicos, publicados em diversas revistas nacionais e estrangeiras, destaco os seguintes títulos: “Alterações Anátomo-Patológicas da Difteria”, 1900; “A Vida Sexual (Phisiologia)”, 1901; “A Vida Sexual (Patologia)”, 1901; “Curso de Neurologia”, 1912; “A Neurologia na Guerra”, 1917; “Clínica Neurológica”, 1925; “O Padre Faria na Historia do Hipnotismo”, 1925; “Diagnostic des tumeurs cérébrales et épreuve de l’encéphalographie artérielle”, 1931; “L’angiographie cérébrale - Ses aplications et résults en anatomie, physiologie et clinique”, 1934; “Tentatives opératoires dans le traitement de certaines psycoses”, 1936; “Clinica della angiographie cerebral”, 1938; “Die cerebrale arteriographie und phlebographie”, 1940; “Trombosis y otras obstrucciones de las carotidas”, 1941; “How I came to perform prefrontal leucotomy”, 1948; “Conferências Médicas”, 1945-1950 (quatro volumes); “Confidências de um Investigador Científico”, 1949.

Por tudo isto, o prof. doutor Egas Moniz foi agraciado com a grã-cruz da Ordem Militar de Santiago da Espada (1945) e com o Prémio Oslo. Por seu lado, o Colégio Médico de Estocolmo, em 27 de outubro de 1949, por seus excelsos méritos, distinguiu-o – a ele e ao notável fisiologista suíço Walter Rudolf Hess, “ex-aequo” – com o Prémio Nobel da Medicina e da Fisiologia. Não podendo deslocar-se à Suécia, o ministro dr. Gustaf Weldel veio a Lisboa, no dia 10 de dezembro seguinte, para lhe entregar pessoalmente a medalha de ouro e o diploma, que o consagravam. Este prémio internacional também significou e significa uma honra ímpar para o nosso País, não só pelo galardão em si mesmo, mas também por ter sido o primeiro português a recebê-lo.

Como era de prever, sucederam-se as homenagens, provenientes de diversos quadrantes nacionais, apesar da modéstia do laureado, de que sempre deu provas. Entre elas não esqueço a de Avanca e de Pardilhó. Em 24 de setembro de 1950, as duas freguesias ergueram um monumento no centro da dita vila de Avanca, assim prestando homenagem “ao homem e ao sábio” – como se lê no verso do plinto; sob a escultura em bronze, saída do génio do dr. David Cristo, foi gravada a seguinte frase: «Aqui viu luz nova luz da humanidade».

Logo após a sua morte, a Academia das Ciências de Lisboa projetou uma sessão à memória do emérito professor, que seria em 1956. Embora fosse um homem da oposição ao Regime do “Estado Novo”, o presidente do Conselho de Ministros, prof. doutor António de Oliveira Salazar, aprovou a iniciativa, explicando-a ao presidente da República, marechal Francisco Higino Craveiro Lopes: «Trata-se de honrar um homem de ciência, através de pequenos discursos dos reitores das Universidades, de dois ilustres cientistas – um norte-americano e outro espanhol – e ainda das palavras que se espera o ministro da Educação proferirá, para associar o Governo à homenagem devida ao sábio.»

E o doutor Salazar sugeriu mesmo que o chefe do Estado deveria presidir à sessão, destinada a pôr em relevo o valor das descobertas científicas daquele professor. (1)

Mais tarde, em 14 de julho de 1968, a sua terra novamente o preiteou com uma sessão solene, aquando da inauguração da “Casa-Museu Egas Moniz”. Efetivamente, a sua “Casa do Marinheiro”, legada pelo proprietário à Câmara Municipal de Estarreja, a partir daquele ano, alberga um riquíssimo espólio de móveis, de livros, de documentos, de moedas e de selos.

Aveiro, como capital do Distrito, também não o esqueceu na ocorrência centenária do nascimento, com a colocação do seu nome numa artéria urbana, com uma mostra filatélica e numismática, com uma exposição bibliográfica, com uma sessão pública e com a inauguração de um monumento em sua memória, oferecido pelo Ministério da Educação e Cultura e erguido na avenida das Tílias, no Parque Municipal, o qual, mais tarde, foi deslocado para junto ao Hospital do Infante D. Pedro. O cientista é retratado num medalhão, em bronze, ao lado da estátua alegórica da Medicina, em pedra - tudo esculpido pelo talentoso ilhavense Euclides Vaz.

Embora em relance rápido, recordo a ação desenvolvida pelo prof. doutor Egas Moniz em ordem ao reatamento das relações diplomáticas entre Portugal e a Santa Sé, abruptamente interrompidas em 1911, após a instauração do Regime Republicano. Aliás, ele próprio escreveu: «A separação do Estado da Igreja era uma aspiração de muitos liberais portugueses; mas não o era menos de uma grande parte dos católicos; todavia, a Lei da Separação, que foi publicada, vinha cheia de pequenas agressões contra o clero, classe que merece ser respeitada como qualquer outra». (2)

Em dezembro de 1917, o dr. Sidónio Bernardino Cardoso da Silva Pais, após uma revolução triunfante, tornara-se presidente da República Portuguesa; da orientação do seu Governo fez parte, desde logo, a abolição das principais disposições antirreligiosas de exceção e a discussão séria da assinatura de uma “Concordata de Separação” com a Santa Sé, para pacificação dos espíritos. É nesta ocasião, a partir de março de 1918, que nos aparece o prof. doutor Egas Moniz na órbita dos políticos governamentais, na qualidade de embaixador de Portugal junto da Corte Espanhola. Sobre o assunto, que agora aqui me ocupa, recordou ele em livro de memórias: «Logo que cheguei a Madrid, e feita a tournée das visitas ao Corpo Diplomático, pedi ao Sr. Arenas de Lima, conselheiro da Legação em Madrid, para procurar o Sr. Núncio [mons. Ragonesi] e lhe dizer, em ar de conversação, que o novo ministro de Portugal tinha inscrito no programa do seu Partido a necessidade do reatamento das relações diplomáticas com a Santa Sé. A diligência foi feita num dos primeiros domingos de março, antes mesmo de apresentar as minhas credenciais ao monarca espanhol. Passou-se bastante tempo. Em 15 de maio, o Sr. Núncio pediu ao Sr. Arenas de Lima que me solicitasse uma audiência. Como se tratasse do decano do Corpo Diplomático, imediatamente me ofereci para ir à Nunciatura, para o que foi pedida a indicação do dia e hora. A entrevista realizou-se no dia 16, pela tarde.» (3)

Os encontros seguintes tiveram como feliz desfecho o restabelecimento das relações diplomáticas entre Portugal e o Vaticano, em julho de 1918; concretizada esta aspiração, o prof. doutor Egas Moniz regressou a Lisboa, com a alegria de ter cumprido uma importante tarefa a favor da Nação e da República.

Decorridos cerca de vinte anos, quando a Santa Sé pensou em transferir os serviços da Nunciatura de Lisboa para um edifício mais acomodado, foi ainda o mesmo prof. doutor Egas Moniz que, não escondendo o seu aprazimento por continuar a ser útil à Igreja Católica, lhe vendeu o seu palacete, na avenida de Luís Bivar, por um preço simbólico. O antigo aluno dos jesuítas, no Colégio de S. Fiel, continuava coerente com a sua consciência, formado como fora na preocupação de viver os problemas dos homens e de ajudar a dar-lhes soluções justas.

Antes de terminar esta nota, sou tentado em não deixar em claro um encontro, na sua casa de Avanca, onde se refugiava de quando em vez. Era aí que generosamente recebia os amigos conterrâneos e os que vinham de longe para gozarem uns momentos de sã convivência e para captarem algo do muito que o mestre transmitia.

Aconteceu no verão de 1954. Numa tarde quente de sol, o dr. David Cristo convidou-me para o acompanhar numa visita ao emérito laureado. Comoveu-me o honroso convite, que tive oportunidade de aceitar. Logo na primeira impressão, ao cumprimentá-lo, descobri alguém dotado de singulares qualidades humanas, enriquecido de tenacidade para a vitória e disponível para fazer bem e perdoar.

Durante a conversa, que decorreu no seu escritório, o prof. doutor Egas Moniz deixou transparecer muito da sua experiência e da sua vida, indo mesmo ao ponto de confidenciar alguns pormenores de consciência, num misto de satisfação e de inquietação. Em certa altura, muito naturalmente desabafou: «Efetivamente, eu estudei, sei e descobri muita coisa sobre o cérebro humano e a sua atividade; e tanto assim é que reconheceram o meu valor com o Prémio Nobel. Porém, há um enigma que eu não sou capaz de descortinar: - Que existe para além da morte? Não me posso convencer de que a minha vida venha a findar no pó da sepultura. Vocês, os cristãos, vivem tranquilos porque têm a resposta na fé. Fundamentam-se na palavra de Cristo e na sua morte e ressurreição. Mas eu não sou crente... e tenho pena de não ter fé, porque viveria intimamente sossegado.»

O dr. David Cristo, com um ar de recolhimento, atreveu-se a sugerir:«Sr. professor, desculpe a minha modesta opinião. Julgo que sentir-se pesaroso por não ter fé já é um princípio de fé...»

O nosso interlocutor baixou os olhos sobre os papéis na secretária e, concentrando-se, disse em surdina: «Talvez!... Talvez!...»

O silêncio, que nos venceu durante largos segundos, não se ouvindo qualquer palavra naquela sala, serviu por uma reflexão continuada. Decerto que, na sua consciência, o prof. doutor Egas Moniz continuaria a caminhar ou mesmo a olhar para Alguém que o sossegasse... esse Alguém cujo amor perenemente O leva a encontrar-se com o homem para lhe comunicar a sua vida. A fé não é uma rendição perante a evidência, mas uma resposta livre a uma chamada, porque Deus jamais se impõe, mas propõe-se à nossa liberdade.

Por minha parte, ouso imaginar que toda e qualquer pessoa humana, bem intencionada, andará à procura de Deus, às apalpadelas, no escuro... enquanto o teólogo jactancioso não O busca, porque pensa tê-l’O na sua construção intelectual, ou o estudante de teologia não O procura, porque calcula possuí-l’O circunscrito nos seus manuais, ou o profissional da religião não O espera, porque supõe-n’O confinado numa estrutura ou numa instituição, ou o crente individualista não O aguarda, porque se lisonjeia em desfrutá-l’O dentro dos limites estreitos do seu coração.

Só Deus é que conhece o interior do homem e a sua história. E, se a nossa razão nos conduz a Deus, é Ele que antes ilumina a nossa razão.

 

(1) Vd. Franco Nogueira, Salazar, Vol. IV - O Ataque (1945-1958), Coimbra, 1980, pg. 434.
(2) Um Ano de Política, Lisboa, 1919, pgs. 110-111.
(3) Id., pg. 115.

 

Mons. João Gonçalves Gaspar
Presidente da Comissão de Bens Culturais da diocese de Aveiro
© SNPC | 29.03.11

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