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Encontrar a fé perdida

A fé católica pode esconder-se atrás de perguntas difíceis, como a que um dia Clara Costa disparou à catequista: «Se Deus está em todo o lado, para que serve a confissão? Não posso simplesmente voltar-me para uma parede e dizer o que tenho a dizer?» Pode também surpreender os mais incrédulos, em momentos difíceis de desorientação e dor. Ou pode revelar-se simplesmente, quando alguém olha para dentro de si e percebe ter «a felicidade» - assim o dizem - de acreditar. Não é um caminho linear. Há quem se zangue, quem se afaste, quem resista, quem a deixe adormecer ou viva muitos anos sem dar por ela. Mas, se existe, um dia a fé revela-se.

Paulo Nunes, 44 anos, é católico. Nem sempre viveu próximo da prática religiosa, apesar de, em casa, a mãe e a irmã darem o exemplo.

Fez a primeira comunhão, como «uma coisa natural entre os miúdos» da sua idade, mas a adolescência desviou-o das missas. Não é fácil ser-se rapaz e destoar do grupo, preferir ir tomar a hóstia a sair com a 'malta', ou pensar em Cristo quando há tempo disponível para seduzir raparigas. «É a maturidade que nos coloca outras questões, mais existenciais», diz Paulo, apesar de considerar que, «lá no fundo», sempre foi crente. «Vejo o meu caso como o de um carro sem bateria, que para andar só precisou de um empurrãozinho.»

Na sua vida, essa 'ajuda' e a viragem deu-se na altura em que planeou casar: «Frequentava as reuniões do CPM - curso de preparação para o matrimónio - e algo me tocou. Nem sei se posso falar em chamamento... Então disse à minha namorada - católica e um membro ativo na Igreja -, que ia começar a acompanhá-la.» Como tocava guitarra, foi desafiado pelo padre a ingressar no coro da paróquia, onde se mantém há 16 anos. Acabou por fazer também o
crisma, integrou a equipa dos CPM e foi catequista durante uma década, tudo na igreja de Benavente, localidade onde reside.

Como católico, Paulo sente que «não chega dizer que se acredita, é preciso fazer alguma coisa pelos outros.» Porque, em sua opinião, é aí que reside a essência da sua religião. «Deus já não é castigo, nem uma entidade a quem temos de obedecer para merecer o bem. Deus é amor e quer que nós o pratiquemos também», conclui.

Este novo olhar tem reaproximado muitos católicos. O padre Filipe Martins chama-lhe «ver Deus desde dentro». Algo de que pode falar por experiência própria, recuando ao tempo em que, «por causa do trânsito», acabou por descobrir a vocação. Não é brincadeira. Engenheiro Eletrotécnico formado pelo Instituto Superior Técnico, Filipe Martins tinha de ir muito cedo para as aulas, para evitar o tráfego, já que morava fora de Lisboa e aproveitava a boleia do pai. Ficava então num café, a conversar com um colega, até ser hora de entrarem. «Entre carros e raparigas, também falávamos de Deus, que eu me interessei por conhecer melhor», recorda.

 

Dar catequese nos casamentos

Atualmente a concluir a sua formação, em Barcelona, este padre jesuíta de 41 anos faz o possível para quebrar «a imagem cristalizada» da Igreja, muitas vezes assente no «mau testemunho que dela é dado.» Pode não ser falsa, afirma, «mas é certamente uma imagem parcial.» «É preciso ter curiosidade e conhecer o outro lado», continua, sendo essa uma das razões porque cada vez mais tenta dar catequese nos casamentos e funerais, «aproveitando as presenças que só nestas cerimónias se conseguem.»

FotoPaulo Nunes

Dizer mal do que não se conhece é fácil, concorda Mónica Costa, 33 anos, professora de educação física numa escola em Santo António dos Cavaleiros. Ela própria era uma voz crítica em relação à religião católica: «A ignorância é atrevida e eu falava mal por desconhecimento, assim como continuo a ter amigos que me olham com estranheza e condenam a Igreja sem se darem ao trabalho de saberem do que falam. Mas eu compreendo e aceito. Não sou boa a debater, e não lhes respondo muito. Estou numa fase em que procuro ainda aprender, terei depois mais argumentos.»

O «reencontro com Cristo», como o define, aconteceu-lhe numa fase de «insatisfação pessoal que coincidiu com a crise dos 30.» Mónica aproximou-se da associação Leigos para o Desenvolvimento, numa tentativa de se reestruturar, e acabou por partir um ano em missão para São Tomé e Príncipe. A experiência mudou-lhe a vida. Ao regressar, em agosto de 2010, fez os chamados exercícios espirituais na vida corrente, «onde é proposto» que se reze «uma hora por dia». Pareceu-lhe inatingível, mas é certo que a rotina diária de oração comunitária a que vinha habituada já deixara marcas. «Hoje entro facilmente em oração e trato Deus por tu, num discurso informal. Muitas vezes são pensamentos. Faço fases diferentes. Neste momento agradeço muito: as pessoas com quem me cruzo, certos momentos, o facto de este ano as coisas na escola estarem a correr melhor...».

A família, residente na Guarda, estranha o seu percurso. Para quem aos 15 anos deliberou não voltar a acompanhar a mãe à missa, nada fazia prever a reviravolta. «Mas não falamos muito nisso, se calhar por existir um certo medo de vir à baila a questão da vocação», admite Mónica.

A verdade é que na sua vida «tudo está em aberto.» Quer ler muito, descobrir mais sobre «o Deus justo» que lhe trouxe sentido ao dia a dia, mas, para já, vai desfrutando do melhor que a fé lhe trouxe: «Sentir-me acolhida e verdadeiramente amada; olhar para as pessoas imbuídas em Cristo e perceber a sua felicidade e ter descoberto este Deus que gosta de mim como eu sou.»

 

No dia em que o Cristo Rei batesse palmas

Sentado na sala contígua à capela do hospital da CUF Descobertas, em Lisboa, num grupo que reúne outros católicos «reconciliados», Rodrigo Cerqueira vai mais longe: «A fé atirou-me ao chão. Vivi coisas tão intensas que as julgo feitas à medida da minha teimosia.» Sim, porque este diretor de arte era alguém muito racional, a quem a dimensão religiosa nada dizia. «Costumava dizer aos meus irmãos que só me casaria no dia em que o Cristo Rei batesse palmas.» As coisas começaram a mudar em 1999 quando fez pela primeira vez o Caminho de Santiago, «por curiosidade turística, arredado das missas e sem entrar na catedral.» Ainda assim, a experiência transformou-o. Acabou por se mudar para Barcelona, onde ficou três anos, até perceber que era no seu país que a vida «fazia sentido».

FotoAna Pinto

No regresso voltou o apelo. Fez de novo o Caminho, já mais próximo da dimensão católica, também por influência daquela que viria a ser sua mulher. «Uma peregrinação é como uma pequena vida. Começamos inexperientes, as bolhas são a juventude e, a cada passo, vamos atingindo a maturidade. Nunca voltamos iguais», garante, antes de confirmar a velha máxima de que não há duas sem três. Mas antes da terceira ida a Santiago de Compostela confessou-se, «pela primeira vez em décadas», e, à chegada ao destino, ajoelhou-se frente à catedral e pediu a namorada em casamento.

Perdeu-se o homem racional e frio. «Percebi que nem tudo se encaixa em métodos ou explicações lógicas. E, sobretudo, depois dessas viagens percebi que tinha chegado a hora de começar a dar de volta o muito que tinha recebido«, conta. Então Rodrigo fundou a Associação de Amigos dos Caminhos de Fátima, passando a organizar peregrinações, abertas a toda a gente e de todas as idades.

 

Católica praticante "por obrigação"

Há mais histórias para partilhar. Atualmente com 17 anos, Clara Costa sempre acreditou em Deus «como alguém perfeito, que nos ajuda», mas tinha dificuldade em aceitar o ideal católico. «Para mim a Igreja era apenas uma coisa desatualizada, o que afasta os jovens e só chega para manter os mais velhos porque eles não têm mais nada para fazer.» Clara foi educada na fé cristã, frequentou a catequese e os escuteiros, andou numa escola onde ir à missa era obrigatório, mas fez tudo um bocado «por obrigação».

Curiosamente, tendo Deus à sua «disposição» desde sempre, só o encontrou verdadeiramente quando a sua vida dele parecia afastar-se. «Os meus pais separaram-se e eu deixei Évora para vir para Lisboa com a minha mãe. Foi uma fase difícil, sentia-me sozinha, mas acho que a minha salvação foi ter passado a estudar numa escola pública.» Da redoma protegida, de uma escola onde «tudo eram valores e moral», aos 12 ou 13 anos caiu «na vida real», diz a estudante, onde até droga passava à sua frente. O choque foi violento, mas fê-la perceber que algo lhe faltava. No último ano, um colega desafiou-a a fazer o crisma. Pensou: «Ok, vou fazê-lo. Nem pela minha mãe, nem por ninguém. Vou fazê-lo por Deus, e depois logo se vê...»

FotoRodrigo Cerqueira

A surpresa foi que «a sensação de vazio foi-se preenchendo.» Mesmo a tal pergunta difícil sobre a confissão encontrou resposta. Confessamo-nos a um padre, explicaram-lhe, para reconhecer a nossa humildade. O princípio fez-lhe sentido. Compreendeu o valor da fé em comunidade, questão a que se referiu o Papa, em agosto, no encerramento das Jornadas Mundiais da Juventude, em Madrid. Ceder à tentação de «viver a fé segundo a mentalidade individualista que predomina na sociedade» acarreta o «risco de não encontrar Jesus Cristo ou de acabar seguindo uma imagem falsa dele», disse Bento XVI. O mesmo expressa Clara: «Não posso achar que Deus é meu ou está no meu quarto, nos meus livros, e pronto. Participar na vida da Igreja faz-me sentir mais completa.»

 

O padre que se zangou com Deus

Para este caminho, reconhece Clara Costa, muito contribuiu também o padre José Cruz, o capelão do hospital CUF Descobertas, também presente na sala, o mesmo que devolveu a fé a Margarida Franca Ribeiro num dos piores momentos da sua vida.

Foto Mónica Costa

«Tinha o meu marido internado, num doloroso processo oncológico, e um dia ele veio ter comigo. A chorar perguntei-lhe: 'Como é que o senhor me apareceu?' O padre José respondeu-me que 'Jesus está sempre presente', e esse foi o início de um caminho que ainda estou a aprofundar», partilha a professora do primeiro ciclo.

«Conheci-a na revolta», confirma o padre José Cruz, para quem o sentimento é familiar: «Em criança, por influência da minha avó paterna, todos os dias ia à missa. A minha mãe até ralhava por ir ao terço à chuva. Mas zanguei-me com Deus de tal forma, quando a minha avó morreu, que deixei de entrar na igreja.» José Cruz fala do «feliz tempo da rebelião», também necessário, e que no seu caso durou até ao dia em que se cruzou com o padre Veríssimo Teles. «Quando visitou a minha paróquia fui-me confessar. Tinha 14 anos e ele foi o primeiro padre que me acolheu e ouviu tudo o que eu era, sem me criticar. Foi decisivo para o caminho que tomei», conta.

Foto Clara Costa

A revolta de Margarida também foi apaziguada. «Aos poucos, veio a capacidade para dar mais valor ao que tenho e para perceber a importância de me agarrar ao que de bom tinha vivido com o meu marido», diz. Se antes ia às missas por hábito, passou a frequentá-las pela «força» que isso lhe dá. A fé é hoje «uma coisa completamente diferente», que lhe trouxe paz. O padre José Cruz tornou-se um amigo, que fez o funeral do marido, mas, depois disso, também o batizado do neto. A vida continua. Ainda chora, muitas vezes, mas agora reza todas as noites. E isso ajuda.

 

Não aceitar tudo e ter dúvidas

Não é uma questão de tudo aceitar, sem dúvidas. Miguel Gama, professor do ensino superior, assume que continua a questionar-se e a questionar a própria Igreja. «Faz parte da minha ideia do que é ser católico», afirma, para explicar que a sua aproximação à fé foi um tanto intermitente. As idas à missa em criança não o marcaram. «O meu foi um caminho pessoal», diz.

Foto P. José Cruz

Em adulto um período de doença da mãe fê-lo ficar mais próximo, para depois se afastar e regressar apenas, «há cerca de quatro anos», na sequência de uma altura pessoal mais complicada. Mas «o apelo à oração vem desde sempre», quando nem orar sabia, porque nunca o tinham ensinado. «A fé contribuiu para me fazer crescer», disso não duvida. Hoje canta num coro, tornou-se ministro da comunhão e é voluntário no Hospital dos Capuchos, em Lisboa. «É preciso ler a Igreja sob o prisma do amor. Tudo ganhou um sentido mais profundo», garante.

Sentada a seu lado, Ana Pinto - que se afastou da fé católica não por revolta contra Deus, mas por a certa altura «sentir que havia um desajuste entre o que acreditava e o que fazia», fazendo-a gostar menos de si e duvidar que Deus a pudesse aceitar - concorda: «Descobrir que Deus nos ama muda tudo.»

 

Mafalda Ganhão (texto), Nuno Fox (fotografias)
In Expresso (Única), 29.10.2011
02.11.11

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