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"Ética"

Bonhoeffer e a Liberdade

A colecção “Teofanias” dirigida por José Tolentino Mendonça na Assírio & Alvim constitui um espaço de grande interesse no panorama editorial português. Partindo de uma perspectiva pluralista, procurando ir ao encontro de autores relevantes preocupados com os temas da espiritualidade, a colecção abre horizontes muitas vezes inesperados e sempre estimulantes. Soeren Kierkegaard, o Cardeal Newman, Simone Weil e Cristina Campo são alguns dos autores escolhidos, que apresentam leituras do mundo e da vida que ajudam à melhor compreensão dos sentidos que animam a realidade que nos cerca, a partir da dignidade humana e de uma busca intensa da autonomia e da liberdade.

A “Ética” de Dietrich Bonhoeffer (2007) constitui um exemplo significativo do valor dos textos publicados e do critério exigente que tem presidido à sua escolha. O autor é um dos mais importantes teólogos alemães do século XX e as suas reflexões constituem oportunidade de excepção para nos interrogarmos sobre o fenómeno religioso numa perspectiva aberta, através de um grande rigor intelectual. Se à primeira vista, o livro é difícil e denso, o certo é que, à medida que entramos nele, encontramos uma reflexão profundamente atraente e estimulante. O tradutor, Artur Mourão, responsável por um trabalho realizado com grande cuidado e escrúpulo, alerta-nos, aliás, para a natureza muito especial deste livro, composto por textos escritos sob a pressão dos acontecimentos e animados por uma resistência indómita, que o autor, profeticamente, adivinhava conduzir a um final trágico, com de facto aconteceu. E é essa natureza especial que leva à necessidade de explicar o porquê de determinadas opçºões na apresentação da obra, quando os textos estão incompletos ou quando são feitas alusões crípticas, que se devem ao facto de o teólogo escrever na clandestinidade e perante o risco (que se tornou certeza) de vir a ser preso e condenado pelas ideias que defendia – que apenas tinham a ver com a defesa da liberdade, da autonomia e de um espírito aberto e desperto. No entanto, como fica demonstrado neste belíssimo livro, as ideias justas podem tornar-se matéria altamente perigosa.

O que mais impressiona, aliás, como diz o tradutor, é “a unidade profunda da vida e do pensamento”, distinguindo-se “da maior parte das figuras públicas da sua época e da nossa a simbiose perfeita entre a reflexão e a existência, a atenção á irradiação e à encarnação necessárias da fé cristã nas estruturas concretas da comunidade humana histórica, que ser Igreja não consiste em pertencer a uma associação piedosa, mas em prestar ‘testemunho perante o mundo’”. Bonhoeffer não se limita a ver a relação com Deus como meramente religiosa, mas vai mais além e põe as coisas em termos de uma vida nova, em que a pedra de toque é o “ser-para-os-outros”, enquanto “comunhão na vida de Jesus”.

O teólogo procura uma posição de equilíbrio que parta da ideia de que a Igreja não tem o direito de se apropriar de um poder estatal, devendo, sim, recusar o ensimesmamento e o isolamento da política, sobretudo quandoo Estado “lesa e elimina os direitos humanos fundamentais”. É a mesma coerência entre pensamento e vida que encontramos em Paul-Ludwig Landsberg (amigo de Emmanuel Mounier) ou em Edith stein, ambos mortos em campos de contentração, e que é crucial na concepção e na leitura deste livro. Pode dizer-se que nada é compreensível nesta “Ética” se não a partir de um testemunho em que o “ser-para-os-outros” se liga a uma vivência efectiva de liberdade e responsabilidade. E de facto assim é. “A ética como configuração é, pois, a proeza (diz o teólogo) de não falar de forma abstracta ou casuística, de modo pragmático ou como pura consideração, da configuração a figura de Cristo no nosso mundo. Aqui, será imperioso arriscar decisões e juízos concretos” (p. 71).

Dietrich Bonhoeffer (1906-1945) nasceu em Breslau de uma família conceituada no seio da Igreja reformada luterana e viveu em Berlim desde os seis anos. Estudou Teologia em Tubinga e em Berlim, obtendo o doutoramento aos vinte e um anos com a tese sobre “A Comunhão dos Santos”, sob a oirentação de Reinhold Seeberg. Apesar de não ter estudado com Karl Barth, foi profundamente marcado pelo pensamento deste. Em 1928 desempenhou a função de pastor na comunidade evangélica de Barcelona. Em 1930 escreveu “Acto e Ser” e partiu para Nova Iorque, onde trabalhou como «Sloan Fellow» no Seminário da União Teológica. Aí falou de um único povo de Jesus Cristo, que poderia viver em todo o mundo em comunhão ecuménica e fraterna em busca da paz. No ano seguinte, tornou-se Professor de Teologia na Universidade de Berlim, sendo ordenado ministro da Igreja luterana. Em 1933, apenas dois dias depois da investidura de Hitler, viu interrompida uma emissão radiofónica em que falava dos perigos dos totalitarismos. A partir de então não deixou de ser perseguido. E, pouco depois, com o pastor Martin Niemoeller, dirigiu-se aos ministros luteranos alemães, alertando-os para os perigos morais de uma solução política fechada e totalitária.

Demarcando-se daqueles que se deixaram envolver pelo projecto de Hitler, ajudou a organizar a “Igreja Confessante”, que reunia um terço do clero luterano, e ensinou no seminário de Finkenwalde (1934-35). No entanto, logo em 1936, foi proibido de ebnsinar em Berlim e a Gestapo encerrou o seminário de Dinkenwalde, onde Dieter Bonhoeffer reflectia, designadamente, sobre a “questão judaica” e sobre a importância do povo de Israel para a fé cristã. Fruto de um trabalho intenso, publicou “O Preço da Graça: o seguimento” (1937), entrando em contacto com os movimentos de resistência e participando na redacção de “Vida em Comunidade”. Em 1939, visitou a Inglaterra e os Estados Unidos, mas negou-se a seguir o conselho de muitos no sentido de ficar no exílio, longe dos seus próximos e de quem dele necessitava. “Não terei direito de participar na reconstrução da vida cristã na Alemanha depois da guerra se não viver com o meu povo as provações do tempo presente”. Nesta linha de preocupações, acusa o silêncio dos crentes, culpados “das mortes dos irmãos mais fracos e indefesos de Jesus Cristo”. Em 1940 começa a escrever “Ética” e passa algum tempo numa abadia beneditina perto de Munique. Longe de uma moral abstracta, havia que confrontar o compromisso pessoal e a responsabilidade com os desafios concretos de uma sociedade cada vez mais fechada e concentracionária, onde funcionava progressivamente a banalização do mal… “Agir politicamente significa assumir responsabilidades – o que não é possível fazer sem poder. O poder põe-se ao serviço da responsabilidade” (p. 210). Mas para haver responsabilidade é indispensável a liberdade de escolha.

Em 1942, Bonhoeffer volta ao estrangeiro (Inglaterra, Noruega, Suécia e Suiça). Enamora-se e compromete-se formalmente com Maria von Wedemayer, mas é preso. Depois de passar pelas cadeias berlinenses de Tegel e da Gestapo, é transferido para o campo de concentração de Buchenwald e sucessivamente para os de Regensburg, Schönberg e Flossenburg, onde será condenado à morte e executado a 9 de Abril de 1945, um mês antes da queda de Hitler. A “Ética” é um itinerário espiritual, onde afirma a dado passo: “enquanto o ‘ético’ estabelece apenas os limites, define só o formal, o negativo e é, portanto, possível como tema só e sempre no limite, de modo formal e negativo, o mandamento de Deus ocupa-se do conteúdo positivo e da liberdade do homem de aprovar este conteúdo positivo. O mandamento de Deus como tema de uma ética cristã só é, pois, possível, se tiver ao mesmo tempo em vista o conteúdo positivo e a liberdade do homem” (p. 340). A ética cristã constitui, assim, um permanente desafio, centrado em Jesus Cristo e no amor reconciliador de Deus, na autoridade, na família, na cultura e na Igreja… Liberdade, amor, responsabilidade, autonomia, respeito e risco são as referência fundamentais e Bonhoeffer foi incansável no cuidar da viagem incerta que elas pressupunham…

 

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Extractos da obra "Ética", de Dietrich Bonhoeffer

Simone Weil - Amor à beleza do mundo

Cristina Campo - Introdução a "Relatos de um Peregrino Russo"

John Henry Newman: da razão implícita à razão explícita

Guilherme d'Oliveira Martins

in Jornal de Letras, 30.01.2008

Publicado em 01.02.2008

 

 

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