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Manoel de Barros: Poesia completa

Manoel de Barros nasceu em Cuiabá, Mato Grosso, em 1916. «Autor de uma vasta obra, é um dos mais notáveis poetas brasileiros contemporâneos. Obteve os maiores prémios literários do seu país, como o Prémio Nacional de Poesia (1966), Prémio Jabuti (1989 e 2002) e o Prémio da Academia Brasileira de Letras (2000), entre outros.

 

Caderno de andarilho

(...)

Há nos santos grandes margens de antro.

*

Os girassóis têm dom de auroras.

*

Muito suspeito o andar das rolinhas: o traseiro delas entoa.

*

A água lírica dos córregos não se vende em farmácia.

*

Camaleões são pertencidos pelas cores; eles se aperfeiçoam das paisagens.

Mosca de estrume tem pestana alta (ou quase 32% delas).

*

Nódoas de muro seduzem caracóis.

*

Cupim trabalha o dia inteiro; de noite, enlama.

*

De noite há uma flor que corrige on insetos.

*

No inverno as anhumas verdejam de voz

(...)

 

 

Mundo pequeno

«Aromas de tomilhos
dementam cigarras» (Sombra-boa)

I

O mundo meu é pequeno, Senhor.
Tem um rio e um pouco de árvores.
Nossa casa foi feitas de costas para o rio.
Formigas recortam roseiras da avó.
Nos fundos do quintal há um menino e suas latas maravilhosas.
Seu olho exagera o azul.
Todas as coisas deste lugar já estão comprometidas com aves.
Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco, os besouros pensam que estão no incêndio.
Quando o rio está começando um peixe,
Ele me coisa
Ele me rã
Ele me árvore.
De tarde um velho tocará sua flauta para inverter os ocasos.
(...)

 

 

Desejar ser

«O maior apetite do homem é desejar ser. Se os olhos veem com amor o que não é, tem ser» (Padre António Vieira)

1.

Com pedaços de mim eu monto um ser atônito.

2.

Prefiro as linhas tortas, como Deus. Em menino eu sonhava de ter uma perna mais curta (Só para poder andar torto). Eu via o velho farmacêutico de tarde, a subir a ladeira do beco, torto e deserto... toc ploc toc ploc. Ele era um destaque.
Se eu tivesse uma perna mais curta, todo mundo haveria de olhar para mim: lá vai o menino torto subindo a ladeira do beco toc ploc toc ploc.
Eu seria um destaque. A própria sagração do Eu. (...)

 

 

Formigas

Não precisei de ler São Paulo, Santo Agostinho,
São Jerônimo, nem Tomás de Aquino, nem São
Francisco de Assis –
Para chegar a Deus.
Formigas me mostraram Ele.

(Eu tenho doutorado em formigas.)

 

 

O livro de Bernardo

1

Os meninos me letram de Bandarra.
(Bandarra é cavalo velho solto
no pasto, às moscas.)
Esse é meu estandarte.

2

Não tenho pensa.
Tenho só árvores ventos
passarinhos – issos.

3

Dentro de mim
eu me eremito
como os padres do ermo.

4

Meus caminhos
a garça
redime.

5

Sou aquele
que gastou a sua história
na beira de um rio.

6

Estes brejos amanhecem
amarrados
de conchas.

7

A voz dos sapos de tarde
é destroncada
por dentro.

8

O sol transborda
nas estradas
e no olhar das sariemas.

9

Ao lado de uma lara
de uma pedra
estou conforme.

10

Passarinhos do mato
gostam de mim
e de goiaba.

11

Cavalos entardecem
na beira do mato –
onde entardeço.

12

Uma rã me benzeu
com as mãos
na água.

13

Caramujos sempre chegam depois.
Representa que estão chegando
da eternidade.

14

Meu desagero
é de ser
fascinado por trastes.

15

O silêncio
está úmido
de aves.

16

Registros de lagartixas
nas ruínas:
elas têm sabimentos de pedras.

17

Vi o verão
no meio das pedras
e um lagarto.

18

A chuva
azula a voz
das andorinhas

19

Eternidade
é palavra
encostada em
Deus.

20

Águas que sabem
a pedras
sabem a rãs.

21

Sapos sabem divinamentos
mais do que as árvores
mais do que os homens.

22

O sangue do sol
nas águas
atrai mariposas.

23

Sou livre
para o silêncio das formas
e das cores.

24

Caracóis
não gosmam
em latas.

25

Ocupo função de exílio
quando anoitece
nas águas.

26

Passam formigas perdidas
no lado esquerdo
da casa.

27

No olho songo
do lagarto
nasce um pedaço de nuvem.

28

O corpo do rio prateia
quando a lua
se abre.

29

Na beira da mosca
o céu parou
o dia parou.

30

O dia estava
em condições de boca
para as borboletas.

31

O lírio
e as garças
são imaculantes.

32

Sou beato de águas
de pedras
e de aves.

33

De tarde
cigarras
arrebentavam o verão.

34

Dentro dos caramujos –
há silêncios
remontados.

35

Quem ornamenta o azul
das manhãs
são os sabiás.

36

Estou pousado em mim
igual que formiga
sem rumo.

37

Com fios de orvalho
aranhas tecem
a madrugada.

38

Eu vi que a noite dormia
escorada
nos arvoredos.

39

Andorinhas passeiam
na chuva
e no meu ocaso.

40

Quase vestida de sol
vi a chuva
em cima do morro.

41

Palavras
Gosto de brincar com elas
Tenho preguiça de ser sério.

42

Tenho candor
por bobagens
Quando eu crescer eu vou ficar criança.

43

Bom é
constar das paisagens
como um rio, uma pedra.

44

Meu requinte
é chegar às vilezas
com castidade.

45

Passarinho
faz árvore de tarde
nos andarilhos.

46

Poeta
é uma pessoa
que reverdece nele mesmo.

47

Reconhecer a eminência
dos insetos
leva à sabedoria.

48

Pelo corpo
das latas podres
relvam rosas.

49

As garças
quando alçam
se entardecem.

50

Já me dei ao desfrute
de ser ao mesmo tempo
pedra e sapo.

51

Preciso de alcançar
a indulgência
pedral.

52

Uma açucena
me convidou
para de noite.

 

Manoel de Barros
In Poesia completa, ed. Caminho
27.10.11

Capa

Poesia completa

Autor
Manoel de Barros

Editora
Caminho

Ano
2011

Páginas
496

Preço
28,90 €

ISBN
978-972-212-4171

 

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