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Cinema

Igreja Católica distingue filmes da Bienal de Veneza

A professora de cinema Inês Gil marcou a estreia de Portugal no júri Signis do Festival de Veneza, uma das mais importantes mostras internacionais da 7.ª arte, que decorreu entre 1 e 11 de Setembro.

A participação da docente universitária na 67.ª edição do certame, inserido na Bienal daquela cidade italiana, contou com o apoio dos secretariados nacionais das Comunicações Sociais e da Pastoral da Cultura.

A delegação da Signis (Associação Católica Mundial para a Comunicação), composta por sete jurados da Europa, Ásia e América Latina, atribuiu o prémio principal ao filme “Meek’s cutoff” (“O atalho de Meek”), da realizadora norte-americana Kelly Reichardt.

A Signis decidiu igualmente distinguir com uma menção honrosa o filme “Silent souls” (“Almas silenciosas”), do russo Alexei Fedorchenko, que também ganhou o prémio de melhor fotografia.

FotoMeek's cutoff (fotograma)

Em entrevista à Agência Ecclesia e ao Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, Inês Gil falou sobre as implicações religiosas dos filmes premiados e da relação entre a Igreja e o cinema.

Qual a importância da presença da Igreja Católica portuguesa no júri Signis do Festival de Veneza?
Foi uma oportunidade única para expressar a nossa vontade de mostrar trabalho e participar em festivais internacionais. O júri, que era composto por sete pessoas de idades e proveniências diversas – Hong Kong, Itália, Alemanha, México, Bélgica, além de Portugal – proporcionou uma experiência muito rica devido à troca de pontos de vista, por vezes muito distintos. Penso que esta presença foi uma forma de Portugal entrar no palco internacional da Signis.
Tive a sorte de encontrar a direcção do IndieLisboa [festival de cinema que este ano incluiu, pela primeira vez, um júri da Signis]. Foi muito importante porque valoriza a parceria entre aquela mostra e a Igreja Católica.

Falemos agora do filme a que o júri Signis atribuiu o prémio principal, “Meek’s cutoff” (“O atalho de Meek”), da realizadora norte-americana Kelly Reichardt. Quem é Meek?
É um guia contratado por três famílias que, no séc. XIX, queriam atravessar os Estados Unidos. Ele propôs um atalho mas a caravana acabou por perder-se ao seguir a sua sugestão. Entretanto conheceram um índio nativo, com quem estabeleceram uma relação que passou da desconfiança para a confiança, precisamente o contrário do que sucedeu entre os imigrantes e Meek.

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Além da confiança, o filme sugere outros temas, como o encontro entre culturas e a dificuldade de comunicação...
Uma grande dificuldade de comunicação que surge quando deixa de haver referências e quando se trata de uma questão de sobrevivência. Eles estão no deserto, perdidos, completamente à mercê de Meek, que assegura conhecer o atalho, ou do índio, que as famílias não percebem por não falar a sua língua. É uma personagem muito ambígua mas que, a pouco e pouco, parece ser extremamente honesta. A dificuldade na comunicação, que faz deste filme uma história muito contemporânea, coloca-se também entre os membros das famílias, verificando-se uma tensão entre homens e mulheres, sendo estas bastante solidárias entre elas.
Os obstáculos à comunicação traduzem-se também no desconhecimento da cultura e dos rituais que o nativo vai utilizar para invocar os espíritos, dado que os imigrantes nunca sabem se ele está a gozar ou a aplicar bruxarias, boas ou más. E nós, como espectadores, também não sabemos o que o índio diz e faz. Mas progressivamente vamos identificando-nos com ele porque a sua personalidade deixa transparecer a autenticidade.
Por outro lado, os personagens fazem uma viagem à procura de água, que é o símbolo da vida e da espiritualidade. Esse itinerário transfere-se para uma procura do transcendente, ligada ao imanente, que é a sobrevivência. É uma busca da confiança e da fé.

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Para os cristãos, esta viagem pelo deserto recorda a narrativa bíblica da caminhada do povo hebreu pelo deserto, fugindo do Egipto em busca da terra prometida por Deus...
Sem dúvida. Eu acho que o filme é profundamente religioso. E se é verdade que o fim é ambíguo, essa incerteza dá ao espectador a possibilidade de imaginar um caminho positivo.

O filme salienta também o problema da imigração e o papel das mulheres...
Acho que a questão das mulheres é muito interessante porque elas são as encarregadas do trabalho físico e do cuidado pelos filhos, enquanto que os homens têm a responsabilidade de guiar a caravana. Há de facto um desequilíbrio, além de a comunicação não passar bem entre eles. Mas é preciso não esquecer que a narrativa decorre no séc. XIX. É um filme extremamente rico, que toca muitas questões merecedoras de aprofundamento.

O que é que levou o júri a escolher “Meek’s cutoff”?
O filme é um “anti-western” que mostra a caminhada de pioneiros americanos na esperança de um futuro melhor. Esta esperança é fundamentada no encontro com o desconhecido: as pessoas – o índio e os próprios familiares, que por vezes aparentam ser estranhos uns para os outros – a cultura e o deserto.
O filme também trabalha a dimensão do tempo, o que é lindíssimo: qualquer coisa é difícil de fazer e leva tempo. É preciso tempo para fazer um pouco de comida. É preciso tempo para arranjar um sapato. E surgem sempre obstáculos que vão atrasar o que estava previsto. É preciso quase moldar o tempo. O tempo é o que nos vai permitir esperar, sentir e viver as coisas. É um aspecto que tem muito a ver com a fé e a espiritualidade.

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A lentidão do tempo pode ser exasperante para o espectador...
Alguns saíram da sala, infelizmente. É preciso deixar sentir o tempo, como nos filmes de Tarkowski. É preciso ter tempo para sentir o tempo, e hoje em dia isso não é muito comum. Queremos é esquecê-lo fazendo milhares de coisas.

O deserto poderia proporcionar grandes panorâmicas, mas a realizadora opta por um formato que o reduz...
Acho que ela quis quebrar o género do western. É outra coisa que se joga. Até porque os personagens são anti-heróis. Mas, ao mesmo tempo, a fotografia é belíssima e a paisagem também é protagonista: é dura, não tem água, faz-se difícil e, por isso, a sua relação com os personagens é um dos conflitos da narrativa.

“Meek’s cutoff” pode ser visto como uma metáfora da existência humana aberta ao transcendente?
Sim, perfeitamente. No entanto, na conferência de imprensa, Kelly Reichardt não realçou muito a questão religiosa. Tenho a impressão que ela continua a ser um bocadinho tabu no cinema. É difícil para os cineastas admitirem que estão a exprimir, de forma religiosa, uma série de coisas. É difícil hoje em dia reconhecer que, por exemplo, a religião cristã está baseada na liberdade, e não numa ideia de fechamento. Embora sem o dizerem explicitamente, estes filmes mostram que todos os valores católicos assentam na liberdade, não entendida de qualquer maneira, obviamente.

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O filme que recebeu a menção honrosa da Signis, “Silent souls” (“Almas silenciosas”), também fala de uma caminhada...
Foi muito difícil para alguns membros do júri – e eu fui um deles – escolher entre os dois. Ao princípio optei por “Silent souls” porque é um filme obviamente espiritual e extremamente poético, enquanto que “Meek’s cutoff” é um pouco mais ilustrativo. O trabalho do realizador russo Alexei Fedorchenko fala de imagens através de imagens, com muito simbolismo. Também tem a ver com questões culturais e rituais.
O erotismo, que não está presente no filme de Kelly Reichardt, apresenta-se de maneira muito forte em “Silent souls”. É um tema interessante porque está muito ligado à espiritualidade. Trata-se de uma questão que ainda não é suscitada com frequência, dado que, durante muitos anos, os dois conceitos opuseram-se, em vez de se interligarem. E nesse filme há uma reconciliação.
O júri considerou que “Silent souls” mostra como o amor pode ultrapassar a morte. O filme sublinha igualmente o papel das tradições e rituais quando enfrentam os desafios existenciais da vida.

FotoSilent souls

A história centra-se num homem que, acompanhado por um amigo, faz um longo trajecto para cremar a sua mulher recém-falecida, seguindo as antigas e quase extintas tradições religiosas da esposa...
O homem queria despedir-se da mulher a partir de um ritual que consiste em queimar o corpo e lançar as cinzas num lago. A narrativa revela que ela era amada pelos dois homens. E há também uma história de aves – o título original do filme, “Ovsyanki”, é o nome de uma espécie comum de pássaros – que são levadas pelo amigo no mesmo carro onde é transportado o corpo da mulher até ao local do ritual.
Aqui há também um trabalho sobre a relação entre homem e mulher. O viúvo não era certamente o mais delicado dos homens, chegando mesmo a falar de forma grosseira da esposa, enquanto que o amigo, que não teve nada com ela, mostra um grande respeito.
Do ponto de vista da forma fílmica, é mais interessante do que “Meek’s cutoff”, e por isso o júri esteve indeciso. E foi por pouco que o filme russo não ganhou o prémio principal da Signis.
Na conferência de imprensa com o realizador, os jornalistas começaram a falar da tradição do cinema russo em que Alexei Fedorchenko se inscreve. Ele preferiu desmistificar o filme e pediu para que não o intelectualizassem. Acho que a posição dele foi muito bonita porque optou pela simplicidade.

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É também um filme sobre a capacidade (ou incapacidade) de expressar o amor...
Exactamente. A narrativa, que é feita pelo amigo, acaba na questão do amor, que é o mais importante, que salva. O amor é o que torna a pessoa infinita. E o facto de o tema ser tão bem mostrado faz com que o filme seja muito forte.
A partir do momento em que a dimensão lírica e poética se manifesta, “Silent souls” sai do ilustrativo e toca mais o espectador. Tem muito a ver com emoções que fazem pensar, dão liberdade e abrem ao questionamento, enquanto que a identificação emocional tradicional projecta emoções no espectador e este não pensa – simplesmente sente o que lhe está a ser transmitido.
Mas em “Silent souls” há algumas coisas de que não gostei muito. Por exemplo, a grosseria com que o viúvo fala, um aspecto que também foi referido por outros membros do júri. Pode chegar a pensar-se que ele é ligeiramente misógino. Acho que não era preciso dizer certas coisas... Foi por isso que, no fim, dei o meu voto a “Meek’s cutoff”.

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“Meek’s cutoff” e “Silent souls” ‘correm o risco’ de não deixar o espectador confortável e passivo...
Sim, mas é bom que os filmes despertem novos universos emocionais e mentais. O júri Signis quer obras que fiquem, que possamos transportar connosco, que deixem sensações fortes, que questionem, toquem e transformem.
Nos 24 filmes que concorreram ao Leão de Ouro [prémio principal do Festival de Veneza] havia, infelizmente, muitos trabalhos baseados no entretenimento e na violência. Para nós essas obras não interessam porque assentam na artificialidade e na superficialidade, e por isso não fazem pensar. Podem tocar emocionalmente mas não questionam.
O que é interessante na religião, e em particular no cristianismo, é que ele questiona, renova, está sempre à procura de uma justificação. E quando não há resposta possível, tenta descobrir como podemos viver melhor.
Acho que uma das funções dos filmes é trazer à consciência do espectador aquilo que está inconsciente. E, de repente, a consciência abre novas portas.
Muitos dos filmes fora da competição para o galardão principal enquadravam-se muito melhor no âmbito do prémio da Signis. E no total dos 24, foi óbvio para o júri que não haveria mais do que cinco que poderiam obter essa distinção. É pouco...

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Entre os filmes da competição oficial, que outras escolhas recomendaria?
Havia um filme italiano de que gostei muito, “La pecora nera” [de Ascanio Celestini], sobre a doença mental: saber onde é que ela começa e acaba e se os doentes são os que estão dentro das instituições. Penso que a obra terá ficado em 3.º lugar na nossa escolha.
E recordo o filme surpresa da competição, “The ditch” [co-produção de Hong Kong, França e Bélgica realizada por Wang Bing], sobre os campos de reeducação na China maoista. Apesar de ser uma ficção, parece um documentário. É uma obra que questiona a experiência de Deus. Pertence àquele género de filmes que nos fazem duvidar para acreditarmos ainda mais.

Chegou a ver os filmes de Manoel de Oliveira e João Nicolau [realizadores portugueses que apresentaram obras em Veneza]?
O filme de João Nicolau [“A espada e a rosa”] foi exibido à mesma hora da projecção de uma obra que eu tinha mesmo de assistir. Mas espero vê-lo em Portugal. Quanto à curta-metragem de Manoel de Oliveira [“Painéis de São Vicente de Fora - Visão poética”], achei muito interessante. É uma forma muito original de apresentar os painéis.

Como classifica a relação actual entre a Igreja e o cinema?
A Igreja está pronta para um diálogo livre. Em Portugal há uma grande vontade de dialogar com as artes contemporâneas, incluindo o cinema.
No entanto penso que subsiste a ideia errada de que a Igreja está fechada e é dogmática. Há muitos preconceitos. Em França, por exemplo, a relação entre o cinema e a religião está completamente posta de parte. Todos os críticos e teóricos estão desinteressados dessa questão. Para eles, abordar a religião é quase como entrar num campo que não faz parte do cinema.
A relação entre Igreja e cinema nunca foi pacífica. Mas eu vejo que a Signis dá prémios a filmes que não são confessionais. São obras muito interessantes, que tocam assuntos como a sexualidade e a violência. Obviamente que há sempre uma crítica muito forte quando estes aspectos são enquadrados de forma negativa. Mas quando a aproximação é positiva, a Igreja reconhece-o.

FotoInês GIl (terceira a contar da esquerda) com o Júri SIgnis no Festival de Cinema de Veneza

A relação entre a Igreja e o cinema não passa apenas por filmes explicitamente religiosos, mas também por trabalhos que recorrem a imagens, cenas e palavras que alguns católicos podem considerar chocantes quando confrontadas com a mensagem evangélica...
Exactamente. Muitas vezes, para construir é preciso desconstruir. No caso da violência, por exemplo, um dos critérios da avaliação dos filmes que a Signis propõe é questionar o júri sobre se essa agressividade pode ser construtiva. O facto de um filme ser violento não implica que não tenha qualidade e que sejamos obrigados a rejeitá-lo logo à partida.
Estou a lembrar-me de Jesus, quando entrou no templo e derrubou as bancas onde os comerciantes faziam os seus negócios. É certo que se trata de violência, mas não é gratuita, isto é, procura revelar uma verdade essencial da identidade de Deus.

Para quando um festival de cinema religioso em Portugal?
É um projecto que temos, mas talvez não a curto termo. Penso que em Portugal essa iniciativa vai estar aliada ao aprofundamento teológico. Se é para mostrar filmes comerciais, como a “Paixão de Cristo”, de Mel Gibson, não acho muito interessante. Acredito mais na ideia de exibir e discutir obras que não sejam explicitamente religiosas.

 

rm
© SNPC | 14.09.10

Foto
Leão de Ouro, prémio principal
da Bienal de Veneza

 

 

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