Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura - Logótipo
secretariado nacional da
pastoral da cultura
Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura - Logótipo
secretariado nacional da
pastoral da cultura

Prelúdio a um centenário: O Jardim de Sophia

1. Revelada nos alvores da década de ’40, em ligação à dinâmica dos Cadernos de Poesia, Sophia de Mello Breyner Andresen depressa se impôs num trajeto muito individualizado; e tornou-se, com seu ritual de vate «escutador» do poema imanente ao mundo, uma oficiante da restituição genuína de O Nome das Coisas (1977).

O seu discurso de profetismo lírico, inconfundível em concisão e eloquência, em distância e paixão, em autonomia estética e alcance ético-cívico, com intencionalidade testemunhal já desde No Tempo Dividido (1954), mas mais interventivo com Livro Sexto (1962), Grades (1970), Dual (1972), elevou-a aos lugares cimeiros da modernidade poética em Portugal.

Com linguagem e estilo tão crescentemente despojados quanto férteis em imagens de densa alusão, Sophia margina com a exemplaridade de extraordinárias narrativas breves uma poesia vocacionada desde as primícias (Poesia (1944), Dia do Mar (1947), Coral (1950)) para se cumprir como «casa do ser» (Ilhas (1989)). Num e noutro modo literário, sonda a manifestação concreta do inefável no universo sensível dos quatro elementos fundamentais e na dualidade transversal de «cidade alheia» e natureza refontalizante. Exercício de recognição e reencontro com «a primitiva manhã da criação», sintetizada em Navegações (1983), quando a lírica de Sophia se determina a retomar a energia mitopoética dos inícios, com Musa (1994) e com O Búzio de Cós (1997).



O «jardim» revela-se elemento fundamental da geografia eletiva na obra de Sophia, correlata da sua antropologia poética na «verdade antiga da natureza»; e, ao mesmo tempo, sobressai como figuração privilegiada do genius loci propiciatório do discernimento para o Eu profundo



Ora, tal como, no dealbar do século XXI, Maria Andresen de Sousa Tavares em boa hora organizou a coletânea Mar com meia centena dos melhores poemas de sua mãe, a partir das referências ao oceano, também se poderia conceber idêntico gesto antológico a partir da presença explícita ou alusiva, evocativa ou simbólica, do Jardim. De facto, o «jardim» revela-se elemento fundamental da geografia eletiva na obra de Sophia, correlata da sua antropologia poética na «verdade antiga da natureza»; e, ao mesmo tempo, sobressai como figuração privilegiada do genius loci propiciatório do discernimento para o Eu profundo, perante a relação biunívoca entre o sentido do deslumbramento do mundo e o sentido do sofrimento do mundo.

Por isso, na escrita de Sophia e na sua poética do espaço (a pedir uma leitura fenomenológica à maneira de Gaston Bachelard) «o jardim» - e a casa, e a quinta - migrará, com adequadas formas discursivas da «evidência do / lugar sagrado» e húmus da resiliência da Criação, para a narrativa breve, com ficção e dicção não menos líricas. No exercício nada trivializante da fantasia órfica, Contos Exemplares (1962) e Histórias da Terra e do Mar (1984) inseminam inquietações ético-religiosas no maravilhoso e no fantástico; e os contos para crianças, como O rapaz de bronze (1956), Noite de Natal (1960), A Floresta (1968), etc., não debilitam a intensidade alegórica, sem que a salvação exija que «Nós quebraremos o arco-íris da aliança com as flores». 

 

2. O jardim do Campo Alegre (e a casa e a quinta portuenses de que é indissociável) constitui para Sophia de Mello Breyner Andresen (1919 - 2004) um fecundo fator de «alvoroço e início» análogo ao que a grande pitonisa de Navegações lapidarmente atribuíu ao génio inacomodado do primo Ruben A., na «Carta» que, sob a forma de magnífico poema, lhe endereçou após a morte.

Alvoroço e início, primeiro, no plano existencial da escritora, na medida em que primeiro se torna inigualável espaço propiciatório de expansão convivial, lúdica e devaneante de Sophia, no decurso formativo de infância e adolescência, deixando marcas indeléveis na sua sensibilidade e no seu imaginário.

Alvoroço e início, depois, na medida em que essa experiência existencial no/com o jardim e seu termo suscitou na sua obra literária figurações recorrentes e renovadoras, as quais ganharam um valor simbólico que permanece fulcral para a reativação interpretativa dos seus textos.



Os primeiros livros de Sophia rescendem constantemente aos «lugares mágicos do jardim» que em 1988, falando na Sorbonne, a poetisa havia de evocar como nexo fundacional da sua doutrina da imanência poética



Alvoroço e início, finalmente, porque no discurso poético, narrativo e ensaístico de Sophia o jardim do Campo Alegre, tornado «o jardim» por antonomásia, subjaz no plano cognitivo e expressivo das práticas simbólicas, à perseguição arquetípica da matriz ontológica do humano em sua excecional singularização e em sua realização interpessoal.

Sophia exprimiu por outros termos e gestos o que Ruben A. confessou: «Um dia compreendi a importância que teve para mim o Campo Alegre, o sítio, o cheiro, a vista, as árvores. Foi a fragrância quem me recebeu primeiro, facilitando-me no vaivém da ondulação distinguir as plantas e a terra que as recolhe. […] A mata da quinta, o souto de castanheiros, os altos muros de camélias, os milheirais em vários andares, os campos […]». Em consonância, lembrará Sophia: «Vivemos e brincámos juntos nas mesmas casas, nos mesmos jardins. Sobretudo naquela casa da nossa avó [ao Campo Alegre]. Para uma criança, aquela casa e aquele enorme jardim com os altíssimos plátanos, as tílias, o carvalho, ao lado do ténis, as camélias, o roseiral, o pomar, as adegas, o pinhal, os morangos selvagens, eram um mundo, um reino que em nós permanece como uma inesgotável memória inspiradora. Nunca se consegue dizer tudo.»        

 

3. O encontro do sujeito poético com o desejo de esplendor do real começa, na obra de Sophia de Mello Breyner Andresen, pelo tropismo paradoxal de identificação com a noite e a sua mediação num processo iniciático sob a aura de mistério e o signo da energia espiritual. Requer seu tempo a transmutação do sujeito poético, num trajeto que, lá para os confins de Poesia (1944), o conduz ao encontro do «Dia perfeito inteiro e luminoso.»

Esse trajeto é indissociável da ligação ao «jardim» - forma originária de manifestação da beleza da paisagem, do mundo, das coisas, lugar cativo e sortílego da memória afetiva e da sua importância catalítica, mas também, e sobretudo, espaço imaginário da busca ontológica, figuração eudemónica (mesmo se perdida ou distante) do real como «pátria do ser».

Os primeiros livros de Sophia rescendem constantemente aos «lugares mágicos do jardim» que em 1988, falando na Sorbonne, a poetisa havia de evocar como nexo fundacional da sua doutrina da imanência poética.

Emergindo como elemento nuclear da geografia vivencial das origens, em conúbio com a «noite» e a «casa» da juvenil Poesia, como evidenciam os poemas «O jardim e a noite», «O jardim e a casa», «O jardim», «Em todos os jardins». Depois, torna-se elemento constante no Dia do Mar de 1947, em regime evocativo ou metafórico, sempre com idêntico potencial simbólico através dos poemas «Jardim do mar», «O jardim», «abril», Jardim verde», «Partida», «Há jardins», «Devagar no jardim», «A luz oblíqua».



Na alma tensa, comungante e ecuménica, da palavra de Sophia, permaneceria latente o «jardim», como garante da vocação de absoluto na perceção do carente e do belo no Mundo, bem como no horizonte de realização do eu poético e do justo na História



Ganha então valência icónica de aferição e cotação de realia ou como viabilização ainda da vidência pampsiquista oriunda de Pascoaes: «… / E tens o silêncio indizível dum jardim / Invadido de luar e de segredos.», «Cada instante / No seu secreto murmurar é semelhante / A um jardim que verdeja e que floresce.»

Depois, o «jardim» rareia e só volta como ferida ou falha – no limiar de Dual (1972) e na magoada ironia rimbaldiama de O Nome das Coisas: «A casa que eu amei foi destroçada / A morte caminha no sossego do jardim / A vida sussurrada na folhagem / Subitamente quebrou-se não é minha», «Onde o mar aberto / E o tempo lavado? / Perdi-me tão perto / Do jardim buscado».

 

4. Real não abolido, embora intangível, esse jardim! É então, aliás, que mais ressalta, enquanto projeção ontológica, o valor paradigmático do «jardim». Assim se vê, por exemplo, na lapidar anotação final de «Caderno I»: «E dói-me a luz como um jardim perdido.»

Afinal, essa dúplice indicação estava já presente dialecticamente na primicial Poesia, enquanto elo inquebrantável de virtualidade na abertura e no fecho do «Jardim perdido» - «Jardim em flor, jardim de impossessão, / …» que trazia em si «sempre suspenso / Outro jardim possível e perdido.» E assim latejava como ferida em momentos fulcrais de Dia do Mar (poemas «Jardim perdido», «Bebido o luar») e de Coral (poema «Passam os carros»).

Assim permaneceria, latente, Na alma tensa, comungante e ecuménica, da palavra de Sophia, permaneceria latente o «jardim», como garante da vocação de absoluto na perceção do carente e do belo no Mundo, bem como no horizonte de realização do eu poético e do justo na História.

Talvez nenhum outro texto de Sophia o diga de forma mais veemente e sugestiva do que certo poema de O Nome das Coisas que, sintomaticamente, remata no «Kaos» genésico que seu primo Ruben A. consagrará no título do seu derradeiro e desconcertante romance:

«Era um dos palácios do Minotauro
— O da minha infância para mim o primeiro —
Tinha sido construído no século passado (e pintado a vermelho)
Estátuas escadas veludo granito
Tílias o cercavam de música e murmúrio
Paixões e traições o inchavam de grito
Espelhos ante espelhos tudo aprofundavam
Seu pátio era interior era átrio
As suas varandas eram por dentro
Viradas para o centro
Em grandes vazios as vozes ecoavam
Era um dos palácios do Minotauro
O da minha infância — para mim o vermelho
Ali a magia como fogo ardia de março a fevereiro
A prata brilhava o vidro luzia
Tudo tilintava tudo estremecia
De noite e de dia
Era um dos palácios do Minotauro
— O da minha infância para mim o primeiro —
Ali o tumulto cego confundia
O escuro da noite e o brilho do dia
Ali era a fúria o clamor o não-dito
Ali o confuso onde tudo irrompia
Ali era o Kaos onde tudo nascia».


 

José Carlos Seabra Pereira
Diretor do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura
Publicado em 07.01.2019 | Atualizado em 08.10.2023

 

 
Relacionados
Destaque
Pastoral da Cultura
Vemos, ouvimos e lemos
Perspetivas
Papa Francisco
Impressão digital
Paisagens
Prémio Árvore da Vida
Vídeos