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Pintura

Caravaggio, 400 anos: balanço e perspetiva

2010 ficou marcado pela celebração do centenário da morte de um dos artistas que mais marcou a arte europeia. Depois da sua virtual redescoberta, nos anos de 1950, através da grande exposição organizada por Roberto Longhi em Milão, pode dizer-se que Caravaggio tem vindo a crescer em celebridade. A sua vida aventurosa acresce ao fascínio da sua arte. Envolta em mistérios, prestou-se a filmes de sucesso e a livros diversos, onde realidade e especulação se misturam. Talvez nenhuma outra figura artística do passado se tenha transformado tão decididamente num objeto de culto, transcendendo os limites do mundo erudito da arte barroca, para se firmar no turbilhão da cultura de massas, como, antes de si, os seus contemporâneos literários Shakespeare e Cervantes.

Em 1999, uma grande especialista da pintura seiscentista, Helen Langdon dedicou-lhe uma biografia, que se transformou num clássico. No ano anterior, Peter Robb publicou sobre o artista um romance fascinante, solidamente pesquisado e recheado de hipóteses explicativas sedutoras sobre a génese de algumas obras e os enigmas da sua vida. Mistura de erudição e livro de aventuras, rapidamente se transformou num “best-seller”.

Em 2003, um famoso romancista, hoje membro da Academia Francesa, Dominique Fernandez, deu à estampa uma “psicobiografia”do pintor, onde propõe uma inteligente leitura do significado profundo dos principais temas caravaggescos.

Também a historiografia tem vindo a dar resposta a algumas das questões ainda pendentes sobre uma vida cheia de peripécias, vislumbradas a partir de relatórios de polícia e atas de tribunais. Um académico maltês, Keith Sciberras, deslindou finalmente o motivo da queda em desgraça do artista, logo após o seu maior momento de triunfo: a admissão na prestigiosa Ordem de São João de Jerusalém (vulgarmente conhecida por Ordem de Malta). Uma altercação física envolvendo um superior hierárquico ("cavaliere nobilíssimo")levou ao seu encarceramento (e posterior fuga) num dos fortes da ilha de Malta. Numa sociedade rigidamente estratificada e de “ethos”aristocrático, o feitio impetuoso de um pintor plebeu, por muito cavaleiro de graça magistral que fosse, não podia ser tolerado. Resta ainda por confirmar a muito provável intervenção do próprio grão-mestre Alof de Wignacourt, no sentido de facilitar a fuga do artista que o retratara e que se viu forçado a mandar prender e irradiar.

A mais espetacular descoberta do ano ocorreu no verão, quando uma equipa interdisciplinar de uma instituição científica de Ravena, sob a orientação do Prof. Giorgio Gruppioni, pôde identificar os restos mortais do pintor de entre uma pilha de ossos exumados da cripta do cemitério de San Sebastiano de Porto Ercole. Mais exatamente, o crânio, as mandíbulas e o fémur. Aplicada a datação por carbono e outras técnicas forenses, apurou-se que os ossos pertenciam a um indivíduo de cerca de 38 anos e confirmou-se a data de 1610. Recolhido o DNA de membros atuais da família Merisi (longínquos parentes colaterais do pintor), ficou confirmada a identidade.

O grau de fiabilidade das conclusões foi estabelecido em 85%.

A análise dos ossos permitiu ainda lançar luz sobre a tão debatida razão da morte do artista. De facto, foi encontrada neles uma dose pouco usual de chumbo, justificada pelo contacto do artista com tintas e pigmentos, mas indiciando fortemente um grau de intoxicação plúmbea, conhecida como saturnismo. Ou seja, terá sido um Caravaggio já muito debilitado internamente que suportou a insolação e o esgotamento naquele julho tórrido de 1610, numa zona infestada de malária. Afastadas ficam, pois, as teorias conspirativas e de assassínio.

Neste mês de julho de 2010, os restos mortais identificados foram transportados para a sua cidade natal de Caravaggio, onde ficaram expostos no município. Regressaram, posteriormente, num veleiro, a Porto Ercole, onde foram levados para o Forte Stella, tendo sido celebrada uma missa, antes do sepultamento definitivo nessa localidade, onde morreu.

Um mês antes, em junho, a polícia alemã localizou em Berlim e apreendeu um dos quadros do mestre, anteriormente roubado do Museu de Odessa. Trata-se de uma das versões da “Captura de Cristo”, durante muito tempo considerada o original, até à descoberta, há duas décadas, da outra versão, hoje exposta em Dublin, na National Gallery of Ireland. A tela, escurecida, jazera largos anos em silêncio numa residência da comunidade jesuíta da capital irlandesa, à qual fora oferecida por uma benfeitora, sem qualquer noção do seu valor. A saga da redescoberta, limpeza e restauro do quadro é narrada por Jonathan Harr, no seu livro “A Obra Prima Desaparecida”, uma crónica que se lê como um verdadeiro romance de aventuras. Trata-se indiscutivelmente da versão original e é um dos quadros mais densos e dramáticos jamais criados por Michelangelo Merisi da Caravaggio, que nele se faz representar, como um criado que ergue uma lanterna para alumiar a cena noturna. Eu próprio tive ocasião de propor uma releitura da obra, à luz deste autorretrato nela inserido, que transforma a cena numa verdadeira alegoria da pintura, no sentido em que a arte “dá a luz”que permite ver a realidade.

Há anos, uma outra redescoberta veio lançar luz sobre a técnica do pintor nos seus anos finais. Foi identificado, numa coleção privada suíça, um “S. João”, como sendo a última tela de Caravaggio, transportada consigo na sua última viagem para Roma, que terminaria fatidicamente num albergue de Porto Ercole. O quadro, presente em algumas das principais exposições dedicadas ao artista nos últimos anos, foi objeto de reconhecimento unânime pela comunidade científica. (...)

A obra autografa de Caravaggio hoje existente não ultrapassa as cinco ou seis dezenas de quadros. Vários outros, citados pela documentação seiscentista, não chegaram até nós. E, já no século XX, há a lamentar a perda da primeira versão do “S. Mateus e o Anjo”, bem como do retrato de “Fillide”, ambos queimados em Berlim, nos dias derradeiros da II Grande Guerra. Em 1969, de um oratório de Palermo, foi roubada a “Natividade com S. Francisco e S. Lourenço”, que nunca mais apareceu. Os quadros de Berlim são-nos conhecidos por velhas fotografias a preto e branco; da tela siciliana, existem reproduções a cores.

O constante interesse do público pela obra de Caravaggio fez multiplicar, nos últimos anos, o número das exposições a ele consagradas (...).

Neste ano celebratório, centraram-se em Itália, como era de esperar, as principais manifestações em torno do centenário, com particular realce para a grande exposição, que decorreu em Roma, nas “Scuderie”do Quirinal, entre fevereiro e junho. As cavalariças do venerável palácio, que foi dos Papas, dos Reis de Itália e que hoje alberga a Presidência da República Italiana, transformaram-se naquele que é, talvez, o mais espetacular espaço expositivo da capital. Aqui se reuniram 24 obras-primas do artista, quase metade de toda a sua produção remanescente, todas indiscutíveis, em termos de atribuição. Aos tesouros dos museus romanos, milaneses e florentinos, juntaram-se telas vindas de Nova Iorque, S. Petersburgo, Londres, Nancy, Dublin, Messina, Berlim, Viena, Kansas City e Fort Worth. Comissariada por Rossella Vodret e Francesco Buranelli, a exposição completava-se com a proposta de visita dos extraordinários quadros de altar que ornam as igrejas de Sant’Agostino, Santa Maria dei Popolo e San Luigi dei Francesi, todos eles expoentes máximos da produção do artista.

De facto, entre museus e igrejas, concentra-se em Roma cerca de um terço de toda a obra de Caravaggio, inigualável pela qualidade. No último fim de semana da mostra (12/13 de junho), uns e outras mantiveram-se abertos ininterruptamente durante 36 horas, admitindo os últimos milhares de visitantes. Ainda em Roma, em dezembro, no PalazzoVenezia, foi reconstituído o estúdio do artista (“Caravaggio. La Bottega dei Génio”}. Prosseguindo as festividades, já este ano, abrirá na primavera, no mesmo museu, uma exposição dedicada ao mestre e aos seus seguidores, organizada em colaboração com o Hermitage de S. Petersburgo. (...

Um contributo bastante original para este ano de festejos foi a estreia, a 19 de novembro, no festival de cinema de Mar dei Plata, de um filme polémico, “I'm Caravaggio”, de Derek Stonebarger, onde algumas das peripécias da vida do artista são transpostas para a atualidade de um "ghetto" de Las Vegas. (...)

Como se explica este permanente fascínio que continua a prender tão grande número de pessoas? Já em 1986, o filme biográfico de Derek Jarman constituíra um sucesso. As biografias romanceadas de Peter Robb e Dominique Fernandez foram “best-sellers”. As grandes exposições arrastaram largos milhares de visitantes...

Em primeiro lugar, o impacto do realismo brutal das suas figuras, moldadas de luz e sombra, escapando a todas as formas de idealização clássica e saídas do mundo fascinante e violento das ruas e das tabernas, para encarnar santos e anjos, sem, contudo, deixar de dar testemunho da sua própria realidade corpórea. Essa espiritualidade incarnada no quotidiano continua a ser um dos aspetos mais extraordinários da sua arte. As suas figuras são espantosamente modernas e, ao sê-lo, tornam-se intemporais e capazes de dizer algo aos homens do nosso próprio tempo. A mistura de transcendente e quotidiano, patente em tantas das suas telas, tem significado também nesta época sincrética, em busca incessante de valores espirituais, filosóficos, mágicos ou esotéricos, que sejam capazes de transfigurar o mundo material imediato.

Em segundo lugar, a “vexata quaestio”da tão debatida sexualidade do artista. Na sua primeira fase, correspondente aos primeiros anos passados em Roma, e sob o alto patrocínio do refinado cardeal Francesco Maria dei Monte, produziu um conjunto de quadros, representando efebos de sexualidade ambígua. Do que sabemos da sua vida, resta a mesma ambi­guidade, que vai da forte relação com duas mulheres, Fillide Melandroni e a prostituta Lena, até ao apego e intimidade com o seu companheiro e discípulo Mário Minniti e outros homens.

Os mistérios da sua vida aventurosa, os anos passados em fuga e, contudo, tão espantosamente produtivos em termos artísticos, o constante papel dos apegos afetivos e da violência na sua vida acrescem ainda ao fascínio do artista.

Michelangelo Merisi é o exemplo acabado do romântico “avant la lettre”, que vive intensamente, produz uma obra artística de altíssimo impacto e valor, para morrer jovem e desamparado, com a liberdade ao alcance da mão, já tão perto e contudo inalcançada.

Na sua complexidade e ambivalência, Caravaggio surge-nos como perfeitamente contemporâneo. Violento e frágil, rebelde e insubmisso, amigo de banqueiros, cardeais, aristocratas, e também de vagabundos e rufias, portador de uma visão nova e única, revolucionário na técnica e na temática, inovador na expressão plástica do quotidiano mais banal e da mais alta espiritualidade, assim nos aparece hoje este homem, cuja arte ultrapassou as barreiras do tempo. Quatro séculos decorridos desde a sua morte, está mais vivo do que nunca na consciência contemporânea, como paradigma prometaico de quem se não resigna às limitações do quotidiano, antes molda o seu próprio destino. Pagou, por isso, um alto preço: fuga, clandestinidade, prisão, banimento, morte trágica às portas de Roma e da liberdade. Pelo caminho, deixou um legado artístico sem par, que hoje ainda continua a maravilhar e a arrastar multidões.

 

José Alberto Gomes Machado
Professor catedrático de História da Arte, diretor da Escola de Ciências Sociais da Universidade de Évora
In Brotéria 172 (n.º 1/2011)
22.02.11

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