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Tradição

A herança judaica de Belmonte

Enquanto a maioria das cidades do centro do país passa por tempos difíceis, a pequena Belmonte vive uma espécie de renascimento. Na última década, viu surgir um hotel de luxo e um museu, e o turismo floresce. A causa? Os judeus. Cristãos-novos [marranos], para ser exacta. Belmonte, cidade de 3600 habitantes, alberga cerca de 300 descendentes de judeus que sobreviveram à Inquisição, praticando a religião em segredo, na única comunidade com alguma dimensão que sobreviveu na Península Ibérica.

Até á década de 1990, os judeus conversos de Belmonte mantiveram a história para si. Desde que emergiram do segredo, porém, geraram uma pequena economia local, numa das regiões economicamente mais deprimidas da Europa Ocidental. Beneficiando judeus e não-judeus. “Estamos muito contentes por termos trabalho”, diz Ana Maria Monteirinho, que, com a amiga católica Maria da Conceição Mendes, encontrou emprego numa cooperativa de bordados que abriu em 2004. Uma das tarefas colectivas é bordar “shalom” em saquinhos de alfazema, para vender no Museu Judaico. “[Os turistas] vêm á procura do museu. Vêm ver dos judeus”, acrescenta Ana Monteirinho.

As empresas que se especializaram em turismo judaico confirmam que Belmonte é fácil de vender. O interesse no Portugal judaico tem crescido. As sinagogas activas de Lisboa e Porto, que servem muitos imigrantes do Leste, recebnem cada vez mais visitantes. No ano passado, um padre católico do Porto, ao deitar abaixo uma parede, quando remodelava a sua residência, pôs a nu vestígios de uma sinagoga anterior à Inquisição. Mas Belmonte é especial. parece ter mais para oferecer do que Lisboa e Toledo, cheias d ehistória judaica, mas sem judeus reais. E é pouco provável que sejam descobertas mais comunidades de criptojudeus.

Belmonte conseguiu fundos internacionais, incluindo uma grande doação de um francês, para construir uma pequena mas magnificente sinagoga, em 1997. E há o grande Museu Judaico, que teve mais de 14 mil visitantes desde que abriu, em 2005. O livro de visitas mostra que os turistas mais comuns são portugueses, israelitas e americanos, mas tem havido outros de lugares tão distantes como Moçambique, Montenegro e Japão.

Abílio Henriques, 68 anos, presidente eleito da comunidade judaica, passa as tardes de domingo a cobrar bilhetes e a guiar os visitantes pela sinagoga, em madeira e veludo. “«Kipah» para os homens, nada para as senhoras”, explica. A sua tia Ana Marão, 72 anos, ganha a vida a bordar estrelas de David em naperões para «challah» [regueifa] e toalhas de mesa em croché. “Agora não há problema com o símbolo. Mas antes?”, diz Ana Marão, passando a mão na garganta. O receio impediu os seus antepassados de praticarem [livremente] o judaísmo.

Capa do Courrier Internacional
Revista Courrier Internacional, onde este artigo foi publicado

Pensa-se que os sefarditas tenham vivido em Portugal desde o ano 10 a.C. A mais antiga marca da sua presença em Belmonte é um relicário de granito com inscrições, de 1297, pertencente à primeira sinagoga. Em 1497, D. Manuel I ordenou a conversão dos judeus ao catolicismo ou a sua saída do país. Muitos optaram por manter a religião em segredo, escondendo os objectos rituais, como os castiçais para o «Sabbat», em potes de barro, segundo o historiador David Canelo. Mesmo depois de a Inquisição ter acabado oficialmente, em 1821, os judeus de Belmonte mantiveram os ritos em segredo. “Era uma questão de tradição”, defende Eduardo Mayone Dias, professor da Universidade da Califórnia. 2foi a sua forma de sobreviver. O medo da Inquisição e da influência exterior era muito real”, explica.

A situação começou a mudar em 1994, quando um representante da comunidade cristã-nova convidou um rabino de Israel para a conversão oficial de um grupo em Belmonte. Emergiram do segredo, em parte devido à abertura de Portugal, após a chegada da democracia, em 1974, em parte porque queriam contactar com outras comunidades judaicas. As imagens dos cristãos-novos de Belmonte no documentário francês de 1990 “Os últimos marranos” geraram a primeira leva de turistas. Enquanto outras cidades do Portugal rural sofrem de falta de empregos, Belmonte está envolta por um anel de casas novas e a construção prossegue. As ruas são limpas e o parque da cidade, ladeado de pequenas laranjeiras, está bem conservado.

“As pessoas querem lá ir, porque é a única parte de Portugal verdadeiramente judia”, diz Cristina Brito, directora da empresa Mourisca Tours, uma de várias que surgiram para responder á procura de visitas organizadas a Belmonte. Uma brochura convida os visitantes a experimentarem o 2enchido de enganar a Inquisição” [alheira], receita local em que a galinha substitui o porco.

Após 500 anos de clandestinidade, nem todos os judeus locais gostam de atenções. Os visitantes que tentam entrar na sinagoga durante os serviços são desviados para o museu. Muitas famílias judias continuam afastadas quer da sinagoga quer da actividade turística, mantendo a prática dos antepassados, com as mulheres a oficiarem cerimónias em casa.

Belmonte teve rabinos de Israel e do Brasil, nenhum dos quais permaneceu mais do que alguns ano. Há quem atribua o facto à dificuldade de conciliar as práticas hebraicas modernas com as de Belmonte, desenvolvidas no isolamento durante séculos. “Sou um dos raros judeus que convida estranhos para casa. Continuam a ter medo. Não sei de quê”, diz Ana Marão, cuja família foi das primeiras a converter-se.

 

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Rachel Nolan

in Courrier Internacional (edição portuguesa), Fevereiro de 2008
Originalmente publicado no jornal Ha'aretz, Telavive, em 07.01.2008

Publicado em 08.02.2008

 

 

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Sinagoga de Belmonte
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