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O Segredo da Cartuxa

Da obra de Nacho Doce e Paulo Moura, recentemente publicada pela Editora Pedra da Lua, retiramos dois textos e 12 fotografias que partilham a experiência que os autores viveram com os monges cartuxos do Mosteiro Santa Maria Scala Coeli (Escada do Céu), em Évora.

 

Um

“Como era no princípio, agora e sempre”.

Meia-noite e um quarto. Um a um, vão chegando, em silêncio.

“Christum Regem adoremus, dominatem gentibus qui se manducantibus dat”.

Uma lâmpada em cada lugar, onde o monge chega, se senta e abre o livro. Página 107.

“In solemnitate Corporis Christi”.

O Prior bate uma vez com os nós dos dedos na madeira e apagam-se as luzes. Uns minutos de silêncio e escuto. Só uma pequena vela, no altar, ilumina a capela. O Prior bate duas vezes com os nós dos dedos. Acendem-se os candeeiros. Cantam.

“Como era no princípio, agora e sempre. Amén”.

Em latim e monofonia gregoriana.

“Spiritus pinguedinem. Venite. Fructum salutiferum gustandum dedit Dominus mortis suae tempore”.

Numa prateleira estão os vários livros, que os monges vão abrindo, fechando, trocando, num complicado ritual.

“Corpo de Deus. Primeiro nocturno. Salmo 1. Feliz o homem que não segue o conselho dos ímpios”.

Sentam-se. Suspiros. O ranger dos bancos, de madeira velha.

“Compadecei-vos de mim e ouvi a minha súplica. Até quando, ó homens, sereis duros de coração? Porque amais a vaidade e procurais a mentira? Sabei que o Senhor faz maravilhas pelos seus amigos. O Senhor me atende quando O invoco. Tremei e não pequeis, no silêncio dos vossos leitos falai ao vosso coração.

Oferecei sacrifícios de justiça e confiai no Senhor”.

Diria que um dos monges está a dormir. Está mesmo a dormir.

“Senhor, porção da minha herança e do meu cálice, está nas vossas mãos o meu destino”.

Parecem uma seita esotérica esquisita.

“Do Santuário Ele te socorra e de Sião te defenda”.

Estamos noutro mundo, noutra época. Noutra lógica. Noutra vida.

“O Senhor é o meu pastor, nada me falta. Leva-me a descansar em verdes prados. Conduz-me às águas refrescantes e reconforta a minha alma. Ele me guia por sendas direitas, por amor do seu nome. Ainda que tenha de andar por vales tenebrosos, não temerei nenhum mal, porque Vós estais comigo, o Vosso cajado e o Vosso báculo me enchem de confiança.”

Uma traça zumbe em volta das lâmpadas.

“Para mim preparais a cabeça à vista dos meus adversários. Com óleo me perfumais a cabeça e o meu cálice transborda. A bondade e a graça hão-de acompanhar-me todos os dias da minha vida, e habitarei na casa do Senhor para todo o sempre”.

Todas as noites fazem isto, durante uma vida inteira.

“Eu amo, Senhor, a casa em que habitais e o lugar onde reside a Vossa glória”.

As luzes apagam-se. Um dos monges avança para o leitório. O Prior vai ligar-lhe o microfone. O monge começa a recitar um excerto da Bíblia, em português.

Todos em silêncio, num recolhimento cheio de dramatismo. Partem para outro mundo. Toca o sino.

Escuridão.

Luzes.

As vozes.

“Como suspira o veado pelas correntes das águas, assim minha alma suspira por Vós, Senhor. Minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo. Quando irei contemplar a face de Deus?”

É 1h15. Toca o sino. Cantam agora com júbilo, como se entrassem na eternidade.

“Com os vossos prodígios, atemorizais os povos distantes e, do Oriente ao Ocidente, fazeis brotar a alegria. Visitastes a Terra e a regastes”.

De repente, um monge ajoelha-se e beija o livro, no que parece um ímpeto de paixão. Mas é apenas em reparação de um erro cometido. Quando se enganam, os monges beijam o livro (ou a estante, “ para não estragarem os livros com beijos”). Os outros continuam a cantar. Abrem mais um livro, volumoso e cinzento.

“Isaías, 25 e 26. Sobre este monte o Senhor tirará o véu a todos os povos, a cortina que cobre as nações. Ele destruirá a morte para sempre. O Senhor Deus enxugará as lágrimas de todas as faces. Ele tirará da terra o opróbrio que pesa sobre o Seu povo. Porque o Senhor falou”.

Escuro. Um padre sobe ao leitório para ler a escritura. Silêncio. O Prior bate duas vezes com os nós dos dedos. Será que estes pequenos gestos lhes dão prazer? Os pequenos prazeres humanos. Ficam 15 minutos em silêncio, no escuro, voltados para o altar.

Um monge toca o sino. São quase três da manhã.

Saem em fila, metade para cada lado do claustro, em silêncio, tal como entraram.

Sigo atrás do Prior, que se desvia do seu caminho, para me guiar até aos meus aposentos. Continua a andar, sem abrir a boca. Pára à porta da minha “cela”. Como despedida, diz apenas, com um sorriso pueril: “Não sentiste arrepios?”

 

Doze

Chegou a hora da despedida. O padre Prior, como de costume, vinha connosco até à saída, que só abandona quando vê o carro sair os portões de Santa Maria Scala Coeli. Era preciso encontrar o irmão António Maria. Mas era também uma luta contra o tempo, porque faltavam poucos minutos para as 7h00, a hora do Grande Silêncio, após o que todos os monges teriam de recolher-se. Tentámos prolongar o momento, multiplicando os agradecimentos ao padre Isidoro [o Prior], mas, em desespero, acabámos por suplicar: “Gostaríamos ainda de falar um minuto com o irmão porteiro…”

“Impossível! É o Grande Silêncio”.

Quando já tudo parecia perdido, eis que vislumbramos o sorriso beatífico de António Maria, junto dos muros do convento. “Olá, como está?”, acenamos, Isidoro literalmente a empurrar-nos para o carro. A última oportunidade. Para danação do Prior, avançamos para o porteiro. “Pois então conte lá a sua história… veio há 35 anos, não foi?”

“Sim… não…”, vai articulando o porteiro, e contorce-se em mil gestos embiocados que querem dizer: “Preciso de falar, mas não com o Prior por perto!” O fotógrafo a tentar em vão empurrar Isidoro para um último retrato no outro extremo do pátio…

Até que o milagre acontece. Soam as 7h00, e o padre Prior, com uma cara de mortificação indizível, corre, acenando adeusinhos fugazes, para o convento, para o seu Grande Silêncio. Ficamos a sós com António Maria, num paroxismo de excitação. “Diga lá então qual é o segredo”.

Depois de se certificar de que o Prior tinha mesmo entrado no convento, e mesmo assim a tremer de medo, o irmão porteiro faz a sua revelação. “É verdade, eu tenho um segredo que preciso de contar a alguém..:”

“Sim… Diga lá depressa, qual é o segredo?”

(…)

"É maravilhoso. Digam isto a toda a gente." (…)

No fim, a cabeça enfiada na janela do carro, já com o motor a trabalhar, ainda nos fez repetir com ele uma oração da sua autoria. Depois ficou a ver-nos desaparecer rumo ao pôr-do-sol alentejano, quais arautos da Boa Nova, feliz, cheio de fé de que levaríamos ao mundo o segredo da Cartuxa.

 

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Saiba mais:

Monges e Monjas Cartuxos, o Caminho Cartusiano, História e imagens da Cartuxa Santa Maria Scala Coeli.

Texto: Paulo Moura | Fotos: Nacho Doce

Publicado em 04.01.2008

 

 

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Capa do livro

O Segredo da Cartuxa

Autor
Nacho Doce; Paulo Moura

Editora
Pedra da Lua

Páginas
98

Data
2007

Preço
€ 31,50

ISBN
978-989-951-979-4

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