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Silêncio

Silêncio é o mais importante romance de Shusaku Endo. É a história de um idealista jesuíta português, padre Sebastião Rodrigues, que em 1640 embarca rumo ao Japão determinado a ajudar os cristãos japoneses, brutalmente oprimidos, e a descobrir a verdade sobre o que aconteceu ao seu antigo mentor, de quem correm rumores de ter rejeitado um glorioso martírio e apostatado.

Antes de chegar ao Japão, a sua viagem leva-o a Goa, depois a Macau e, finalmente, a Nagasáqui e Edo, em etapas que pouco a pouco o transportam a esse Oriente hostil, onde no entanto já se contam alguns milhares de convertidos à fé católica.

Face à realidade da perseguição religiosa, Rodrigues é ele próprio obrigado a fazer uma escolha impossível: abandonar o seu rebanho ou o seu Deus.

Apontado como um dos mais refinados escritores do século XX, Shusaku Endo (1923-1996) escreveu a partir da perspectiva fora do comum de ser japonês e católico. Nascido em Tóquio, Endo foi baptizado aos 12 anos, numa altura em que os cristãos representavam menos de 1% da população japonesa.

Formou-se em Literura Francesa, pela Universidade de Keio, e estudou durante algum tempo em Lyon como Bolseiro do Governo japonês.

O seu estilo de escrita tem sido sucessivamente comparado ao de Graham Greene, que aliás o considerava um dos maiores escritores do século XX.

De entre as suas obras mais representativas, além de Silêncio, destacam-se também O Samurai e Rio Profundo. Shusaku Endo foi galardoado com os mais importantes prémios literários do seu país, e por diversas vezes nomeado para o Prémio Nobel de Literatura.

Silêncio está a ser adaptado ao cinema por Martin Scorsese. em parceria com o argumetista Jay Cocks (Gangs de Nova Iorque), um projecto que há mais de uma década procura concretizar.

 

Prefácio

I

De Shusaku Endo se tem dito que é o Graham Greene japonês. Se com tal se pretende significar que Endo é um novelista católico, que os seus livros são problemáticos e controversos, que a sua escrita é intensamente psicológica, que o tormento da fé e a misericórdia de Deus são nele uma constante, então a asserção é certamente verdadeira. Endo, de facto, surgiu recentemente na ribalta do mundo literário japonês agitando problemas que até aí se diriam estranhos ao seu país: problemas respeitantes à fé e a Deus, ao pecado e à traição, ao martírio e à apostasia.

Contudo, o problema central que tem preocupado Endo já desde os seus verdes anos é o conflito entre o Oriente e o Ocidente, sobretudo no tocante ao cristianismo. Problema que decerto não é novo, já que foi herdado de uma longa sucessão de escritores e intelectuais japoneses que remontam ao período Meiji (reinado do imperador Mutsuhito, 1868-1912); mas foi Endo o primeiro católico a dar-lhe ênfase e a chegar à conclusão óbvia de que o cristianismo, para lançar raízes no «pântano japonês», carece de uma adaptação radical. Visando o Silêncio o agitado período da história japonesa conhecido pelo «século cristão», não será descabida uma palavra introdutória.

O cristianismo foi levado para o Japão pelo basco Francisco Xavier, desembarcado em Kagoshima no ano de 1549 com dois confrades e um intérprete japonês. Poucos meses depois de ter chegado, já Xavier se sentia enamorado dos japoneses, a quem chamava «a alegria do meu coração». «O povo que tão longe viemos encontrar», escrevia entusiasmado aos confrades de Goa, «é o melhor que até hoje foi descoberto, e parece-me que jamais encontraremos outra raça comparável à japonesa.» Não obstante as dificuldades da língua («somos como estátuas no meio deles», queixava-se) converteu ao cristianismo algumas centenas de nativos antes de partir para a China, e nessa conversão viu ele o prelúdio da conversão de todo o Japão. Mesmo longe, nunca Xavier perdeu o seu amor aos japoneses. Numa época em que quase se relegava ao inferno quem ficasse fora do cristianismo, chega a ser tocante ouvi-lo exaltar os japoneses por qualidades que faltavam aos cristãos europeus.

No entanto, o verdadeiro artífice da missionação no Japão não foi Xavier mas o italiano Alexandre Valignano, que aliava ao entusiasmo do santo uma notável perspicácia e tenacidade de propósitos. Aquando da sua primeira visita ao Japão, em 1579, já Valignano podia encontrar uma florescente comunidade de cento e cinquenta mil cristãos, cujas lídimas qualidades e fé profunda lhe suscitaram a visão de uma ilha completamente cristã a norte da Ásia. Porém, como era óbvio, essa ilha carecia de ser primeiro expurgada de excessivas influências alógenas, e Valignano, ansioso de poder entregar a Igreja nascente ao clero local, abriu seminários e escolas, fundou um noviciado e despachou para Roma, sem contemplações, Francisco Cabral, decidido opositor do projecto de uma Igreja indígena japonesa. Os resultados viram-se em pouco tempo: dáimios (senhores feudais japoneses), em Kyushu, abraçaram a fé cristã, arrastando consigo uma grande parte dos súbditos, e surgiu um clero japonês singularmente promissor. Era evidente que Valignano não andava a construir castelos no ar: o seu sonho era o de um realista lúcido.

Importa salientar que o esforço missionário teve início no período Sengoku, quando o Japão, dilacerado pelas lutas entre dáimios belicosos, não dispunha de um governo central forte. Aliás, a calamitosa situação do país só trouxe vantagens aos missionários, já que, perseguidos num feudo, sacudiam lestos o pó das sandálias e passavam-se a outro. Mas a unificação já vinha a caminho e não tardaria a consolidar-se no compacto monólito que iria rolar por toda a Ásia em 1940. Os grandes arquitectos da unidade (Nobunaga, Hideyoshi e Ieyasu) mantinham relações estreitas com os jesuítas portugueses, relações motivadas, em parte, pelo desejo de comerciar com os «barcos negros» vindos de Macau e, em parte, como no caso de Nobunaga e Hideyoshi, por uma profunda aversão ao budismo e pelo fascínio desses estrangeiros cultos com quem podiam praticar sem o risco da traição e da perda de prestígio. Fosse como fosse, desde 1570 até 1614 os missionários mantiveram na corte de Bakufu uma posição de tal prestígio que as suas cartas e relatórios constituem hoje a principal fonte de informação de um período histórico relativamente ao qual as fontes japonesas pouco nos adiantam. Em suma, o optimismo de Valignano parecia amplamente justificado.

Dir-se-ia que o Japão é um país de mutações esquizofrénicas. É que nunca foram devidamente explicadas as razões da explosão xenófoba de Hideyoshi. Subitamente, a 24 de julho, encontrando-se embriagado, Hideyoshi é acometido de cólera violenta e ordena aos missionários que deixem o país. «Decidi», ditava a sentença, «que os padres não mais permaneçam em território japonês. Ordeno, portanto, que, fechados os seus negócios no prazo de vinte dias, regressem aos países de origem.» Mas a fúria depressa lhe passou. A maior parte dos missionários não abandonou o país e o decreto de expulsão tornou-se letra morta, a ponto de Boxer poder observar que, decorridos quatro anos apenas, já existia «uma comunidade de mais de duzentos mil convertidos que não cessava de aumentar. Até Hideyoshi reptava a sua própria proibição ao passear-se pelas salas douradas do palácio Juraku exibindo um rosário e trajando à portuguesa».

A ordem, porém, existia e, dez anos volvidos, a cólera de Hideyoshi explodiu de novo. Desta feita serviram-lhe de pretexto as fanfarronadas do piloto de um galeão espanhol encalhado, o qual, para impressionar os japoneses, ousou dizer que a grandeza do império espanhol se devia em parte aos missionários, pois eram sempre eles que abriam o caminho às armadas do rei de Espanha. Ele a dizê-lo e logo a bravata a chegar aos ouvidos de Hideyoshi, que, enfurecido, imediatamente ordenou a execução de um grupo de missionários cristãos. Em Fevereiro de 1597, numa fria manhã de Inverno, eram crucificados vinte e seis de entre eles, japoneses e europeus. Não longe da estação de Nagasáqui, um monumento recorda hoje o local onde foram supliciados.

No entanto, a acção evangelizadora prosseguiu dentro do possível, com os jesuítas apreensivos, embora desfrutando dos favores da corte real. Só quando Ieyasu, o primeiro dos Tokugawa, sucedeu a Hideyoshi, é que a sentença que liquidava a missão se tornou irrevogável. Nunca, desde o princípio, Ieyasu viu com bons olhos os cristãos, embora tolerasse os missionários na mira do comércio da seda com Macau. Mas as coisas começaram a mudar com a chegada dos ingleses e holandeses. De facto, não tardou que o papel de intérprete e confidente passasse dos jesuítas portugueses para o inglês Will Adams. Este, por seu turno, também não precisou de grande tempo para convencer o xógun de que muitos soberanos europeus, desconfiando de tais padres, os estavam escorraçando de seus reinos, por intrusos e implicativos. Ieyasu revelou-se interessadíssimo no conflito religioso que dilacerava a Europa de então e pediu pormenores a ingleses e holandeses. Ao mesmo tempo, foi crescendo nele a inquietação e o temor, ao ver a obediência cega dos seus súbditos cristãos às directivas dos respectivos pastores.

Por fim, em 1614, é proclamado o édito de expulsão em que se declara que o «bando dos kirishtan viera para o Japão no propósito de difundir urna lei perversa, de subverter a verdadeira doutrina, de mudar o governo do país e tomar posse da terra. É o gérmen de uma grande tragédia e tem de ser esmagado». E esmagado foi, de facto, com o vento de destruição que tudo varreu. Chegou no momento em que o Japão (com uma população a rondar os vinte milhões) contava já com trezentos mil cristãos, com os seus seminários, escolas, hospitais e um clero local em franca expansão. «Seria difícil, se não mesmo impossível», escreve Boxer, «encontrar um outro país pagão altamente civilizado onde o cristianismo tivesse deixado marcas tão relevantes, não apenas em termos numéricos como de influência.»

Mesmo assim, foi mantido um desesperado esforço clandestino por parte dos missionários, até que, sob os sucessores de Ieyasu, a caça aos cristãos e aos seus padres se tornou tão sistematicamente desapiedada que não tardaria em varrer por completo qualquer rasto visível de cristianismo. Sobremaneira feroz foi o terceiro tokugawa, o neurótico Iematsu. «Nem a brutalidade horrenda dos métodos por ele usados para exterminar os cristãos, nem a constância heróica das vítimas foram alguma vez superadas, na longa e dolorosa história dos mártires.»

Ao princípio, a forma mais comummente usada nas execuções era a fogueira; e o inglês Richard Cocks refere ter visto «cinquenta e cinco pessoas de todas as idades e de ambos os sexos serem queimadas vivas no leito enxuto do rio Kamo, em Kyoto (Outubro de 1619), entre elas crianças pequenas, de cinco ou seis anos, que gritavam nos braços das mães: «Jesus, recebe as nossas almas!». Com efeito, as execuções começavam a assumir o cariz de um autêntico espectáculo religioso, e é de um deles que Boxer faz a seguinte descrição:

«A estes autos assistiram, segundo alguns cronistas, 150 mil pessoas, sendo embora mais provável que fossem apenas umas 30 mil, conforme outro relato mais fidedigno. Vendo atear fogo à lenha, os supliciados despediram-se de todos os presentes com um sayonara (adeus, até à vista), ao que estes responderam entoando o cântico do Magnificai, logo seguido dos salmos Lau-date pueri Dominum e Laudate Dominum omnes gentes, enquanto os juízes japoneses permaneciam sentados a um lado, "com estudada majestade, segundo o seu porte favorito". Como tivesse chovido abundantemente na noite anterior, a lenha, molhada, ardia devagar; mas enquanto durou o martírio os presentes continuaram a entoar cânticos e hinos. Quando a morte pôs termo ao sofrimento das vítimas, a multidão entoou o Te Deum laudamus.»

Bakufu não tardou a dar-se conta de que tão «gloriosos mártires» não serviam o fim em vista e, assim, pouco a pouco, num esforço tremendo para levar os supliciados à apostasia, fez preceder a morte pelas brutalidades da tortura. Do rol dos suplícios sobressaía o ana-tsurushi, ou suspensão na fossa, que prontamente se tornaria o método mais eficaz para o efeito. «Depois de firmemente amarradas até ao peito (só uma das mãos ficava livre para o sinal da abjuração), as vítimas eram suspensas de uma forca, de cabeça para baixo, sobre uma fossa cheia de excrementos e imundícies de toda a espécie, de modo a que os joelhos ficassem ao nível do rebordo da mesma. Para dar algum escoamento ao sangue, era praticada uma incisão nas fontes com uma faca. Um que outro mártir, de excepcional resistência, lograva manter-se nessa posição durante mais de uma semana. A maior parte, porém, sucumbia ao fim de um ou dois dias.»

Um holandês residente no Japão afirmou: «Alguns dos que ficaram pendurados dois ou três dias disseram-me que os tormentos padecidos eram absolutamente insuportáveis. Nenhum abrasamento, nenhuma tortura se lhes podia comparar na agonia e na violência.» Uma jovem, porém, resistiu durante catorze dias, antes de expirar.

Desde o começo da missão até ao ano de 1632, nenhum missionário tinha ainda apostatado, não obstante as crucificações, as fogueiras, a tortura da água e outras semelhantes. Mas não iria a Igreja ufanar-se disso por muito mais tempo. A tragédia estava iminente. Ao fim de seis horas de agonia na fossa, Cristóvão Ferreira, o padre provincial português, daria o sinal da apostasia. Por excepcional, uma só defecção teria tido escassa ressonância, mas o facto de ser Ferreira o responsável máximo e oficialmente acreditado da missão tomou o golpe muito mais cruel, sobretudo a partir do momento em que se soube estar ele a colaborar com os antigos perseguidores.

Mas um outro revés se lhe havia de seguir, com não menor amargura para a cristandade: a revolta de Shimabara. Com origem nos impostos pesadíssimos e nos vexames infligidos pelo magistrado de Nagasáqui, redundou numa autêntica manifestação de fé cristã quando os revoltosos, empunhando estandartes com a inscrição «Louvado seja o Santíssimo Sacramento», gritaram os nomes de Jesus e de Maria. A revolta foi jugulada com incrível dureza. Convencido Tokugawa Bakufu de que uma tal revolta só do estrangeiro podia ter sido insuflada, decidiu, uma vez por todas, cortar relações com Portugal e isolar o país do resto do mundo.

Apesar disso, alguns missionários tentaram entrar. Um deles foi Marcelo Mastrilli, num gesto de reparação pela traição de Ferreira. Inoue, senhor de Chikugo, referindo-se ao renegado, propalava ter ele sucumbido a «uma morte lancinante, gemendo e gritando na fossa». Por fim, em 1643, chegou um grupo de dez missionários europeus, chineses e japoneses, entre os quais se contava Giuseppe Chiara, o Sebastião Rodrigues de Shusaku Endo. Logo capturados, todos abjuraram ao cabo de longos e indizíveis sofrimentos, embora muitos deles, se não todos, se tivessem retractado em seguida. Até as testemunhas presenciais holandesas se moveram à compaixão perante as horríveis condições dos seus rivais papistas, pois os acharam «sobremodo lastimáveis, com os olhos e o rosto desfigurados, as mãos entumecidas e todo o corpo macerado e empastado pela tortura. Embora tivessem abjurado, declararam publicamente aos intérpretes que o não faziam livremente, antes a isso os constrangiam os intoleráveis tormentos padecidos». Giuseppe Chiara morreu cerca de quarenta anos depois de ter renegado, protestando que se mantinha cristão. Quanto a Cristóvão Ferreira, pouco se sabe do resto da sua vida e como foi a sua morte. Pode ainda ver-se num templo de Nagasáqui o túmulo onde repousa, mas o registo da inumação desapareceu na voragem do holocausto de 1945. Segundo o testemunho de marinheiros chineses de Macau, Ferreira ter-se-ia retractado algum tempo antes de expirar, morrendo como mártir na mesma fossa que antes o vencera. Mas disto não disseram palavra os holandeses residentes no Japão, pelo que a sua morte, como boa parte da sua vida, permanecerão um mistério para todo o sempre.

Mesmo assim, as raízes do cristianismo tinham penetrado demasiado fundo para serem erradicadas. Além dos supliciados (calculados em cinco ou seis mil só no período de 1614 a 1640), milhares de criptocristãos mantiveram firme a sua fé. Organizados secretamente, como descreve Endo, a fé foi sendo transmitida, o baptismo administrado e ensinado o catecismo. Tinham, é claro, os nomes registados nos templos budistas, obedeciam à ordem de pisar as imagens sagradas, e ainda hoje se podem ver osfumie já quase delidos e lustrados pelas centenas de pés «que sofriam» (para me servir de uma expressão de Endo) sempre que pisavam o rosto d' Aquele a quem amavam entranhadamente. Como herança, foi igualmente transmitida a certeza de que os seus padres voltariam um dia; e quando, em 1865, o Japão reabriu as portas, os criptocristãos saíram dos seus esconderijos reivindicando as imagens da Virgem, falando do Natal e da Quaresma e recordando o celibato dos seus padres.

Ainda hoje por aí se vêem aos milhares, em Nagasáqui e nas ilhas ao largo, tenazmente aferrados a uma fé que séculos de obstinada vigilância não haviam conseguido apagar. Alguns, nem todos, mantêm-se unidos à Igreja universal. Nas suas orações persistem ainda vestígios do português antigo e do latim. Conservam pedaços de batinas, de rosários e cilícios que pertenceram aos padres que eles amaram, e mantêm a devoção à Virgem Maria. Foi no meio dessa gente que Shusaku Endo escreveu o Silêncio.

 

II

Deixei esboçado o fundo histórico sem o qual poderia ser difícil compreender o Silêncio. Importa agora acrescentar que o interesse suscitado no Japão por este romance esteve menos relacionado com o passado histórico do que propriamente com o momento presente. E que os dois apóstatas estrangeiros foram logo assumidos como símbolo de um cristianismo que falhou no Japão por ser tão obstinadamente ocidental. «Padre, o senhor não foi derrotado por mim», diz o vitorioso Inoue, «foi derrotado por este pântano que é o Japão.» Um pântano chamado Japão, incapaz de absorver o cristianismo pregado nestas ilhas...

Graham Greene chamou oportunamente a atenção para os perigosos erros a que pode conduzir o interpretar romances deste modo; e o próprio Endo, no decurso do debate suscitado pelo seu livro, insistiu em dizer que apenas fizera literatura e não teologia. Todavia, muitas das suas observações evidenciaram que ele próprio não era de todo indiferente às implicações teológicas do que havia escrito, deixando mesmo entender que o romance é, em certa medida, o reflexo de um conflito entre a sensibilidade japonesa e o cristianismo helenístico que lhe foi transmitido. Em entrevista publicada na revista Rumo, declarou entre outras coisas:

«Fui baptizado em criança; por outras palavras, o catolicismo foi para mim uma espécie de pronto-a-vestir... Cabia-me decidir se o havia de adaptar à minha pessoa, ou livrar-me dele para buscar um outro que me assentasse melhor. Momentos houve em que tive o desejo de me libertar do meu catolicismo, mas era incapaz de o fazer. A razão era certamente porque, depois de tudo, ele se tinha tornado uma parte de mim mesmo. O facto de me ter penetrado tão profundamente na juventude era, pensava eu, um sinal de que, em parte pelo menos, ele se tornara intrínseco a mim próprio. Todavia, no meu íntimo, perdurava a sensação de se tratar de algo emprestado e comecei a interrogar-me sobre qual seria a minha verdadeira identidade. Este é, creio eu, o «pântano de lama» japonês dentro de mim. Desde que comecei a escrever até hoje, este confronto entre a minha identidade católica e o estrato que lhe subjaz ecoa e continuará a ecoar como a melopeia obsessiva de um louco. Senti que devia encontrar maneira de reconciliar os dois.»

«O pântano de lama japonês que há em mim...» E um pântano, o Japão, porque absorve e transforma toda a espécie de ideologias, mercê de um laborioso processo íntimo. É a teia da aranha que destrói a borboleta deixando-lhe apenas o feio invólucro. Noutras ocasiões, Endo referiu-se ao facto de muitos dos chamados intelectuais cristãos, a partir da época Meiji, terem sido, no fundo, budistas ou niilistas latentes que acabaram por se desembaraçar do cristianismo em momentos de crise. E isto porque o pantanal japonês não lhes consentia acolherem no mais fundo de si mesmos o cristianismo proposto. Se esse cristianismo tivesse sido menos irredutivelmente ocidental, talvez as coisas fossem diferentes. Em termos impressionantes, Endo descreve esta autêntica luta travada no seu coração, apodando-a de cruz peculiar dada por Deus aos japoneses: «Durante muito tempo senti-me atraído por um niilismo total, e quando, por fim, dei conta do vazio apavorante que nele havia, fui vencido mais uma vez pela grandeza da fé católica. O problema da reconciliação do catolicismo com o meu sangue japonês... ensinou-me uma coisa: que o homem japonês tem de absorver o cristianismo sem o suporte de uma tradição, de uma história, de um legado, ou de uma sensibilidade cristãs. Que resistências, que angústias e sofrimentos tem custado este esforço! Todavia, é impossível resistir-lhe fechando os olhos às dificuldades. Não há dúvida: esta é a cruz peculiar reservada por Deus aos japoneses.»

Resumindo: não é possível, sem mais nem menos, deslocar da Europa a frágil planta do cristianismo helenizado e transplantá-la para o tremedal de um Japão com uma tradição cul­tural totalmente diferente. Se isso se fizer, a planta, pequena e viçosa, acabará por murchar e morrer.

Não significa isto, todavia, que a causa do cristianismo esteja condenada de antemão ao fracasso. O cristianismo tem uma capacidade de adaptação infinita, e, de resto, entre os vários motivos da grande sinfonia do catolicismo, um existirá que possa adaptar-se à tradição dos japoneses e tocar-lhes o coração - por certo, um motivo diferente daquele que foi inspirado pela cultura da Grécia e de Roma, um motivo tão intimamente mesclado no todo que as suas notas ainda não foram percebidas até hoje pelo ouvido cristão. Mas ele existe e urge evidenciá-lo. «De resto, tenho para mim que o catolicismo não é um solo, mas uma sinfonia... Se tenho fé no catolicismo é por nele encontrar, mais do que em qualquer outra religião, possibilidades maiores de alcançar a sinfonia completa da humanidade. As outras religiões quase não têm plenitude; há nelas apenas trechos a solo. Só o catolicismo se apresenta como uma sinfonia completa. Porém, a menos que nessa sinfonia exista uma consonância com o pântano japonês, jamais o catolicismo se poderá considerar uma verdadeira religião. Que consonância seja essa é o que desejo descobrir.»

Quem estiver familiarizado com a moderna teologia do Ocidente logo perceberá que a tese de Endo é mais universal do que possam imaginar muitos dos seus leitores japoneses. Porque se o cristianismo helenístico não se adapta ao Japão, também não se adapta (na opinião de muitos) ao Ocidente moderno. Se o conceito de Deus tem de ser reformulado para o Japão (conforme este romance continuamente põe em relevo), também o tem de ser para o Ocidente de hoje. Se os ouvidos do Japão estão ansiosos por surpreender um novo motivo no novo concerto, não menos atentos estão os do Ocidente, em busca de novos acordes consonantes com as sensibilidades nascentes. Tudo considerado, as ideias de Endo são acutilantemente actuais e universais.

 

III

Com honesta imparcialidade, cumpre-me agora acrescentar, face ao cristianismo japonês dos nossos dias, que o livro e a tese de Endo foram extremamente contestados no seu país, e que a sua voz dificilmente pode ser tomada como a do Japão cristão. Pouco depois da publicação de o Silêncio, estando eu em Nagasáqui, pude observar uma certa indignação entre os velhos cristãos, pois entendiam que Endo se mostrara mais do que injusto para com a indómita coragem dos seus heróicos antepassados. Até da Universidade Protestante de Doshisha se levantaram críticas pela voz do professor Yanaibara, que vigorosamente afirmava não terem os dois padres, protagonistas do romance, fé alguma desde o princípio. Não foi o pântano japonês que os venceu: foi tão somente a sua fé sociológica, alimentada num Portugal cristão que se dissolvia sob o impacto de uma cultura pagã. «Os mártires ouviram a voz de Cristo», escrevia o professor no Asahi Journal, «mas, para Ferreira e Rodrigues, essa voz não se fizera ouvir. Não significará isto que esses padres já não tinham fé desde o princípio? Por isso, talvez, é que a luta de Rodrigues com Deus não aparece descrita.» Quanto ao fracasso do cristianismo, o professor Yanabaira não está dele convencido: «Evidentemente, tanto a convicção de Ferreira, como a de Inoue - a de ser o Japão um pântano incapaz de absorver o cristianismo - não era motivo para apostatar. Foi por ter perdido a fé que Ferreira começou a pensar daquele modo... Nessa era cristã eram muitos os japoneses que acreditavam sinceramente em Cristo, e muitos há actualmente. Nenhum cristão acreditará que o cristianismo não pode lançar raízes no Japão. Se os japoneses não podem compreender o cristianismo, como foi possível a Endo escrever um romance deste género?»

Até o sucesso do romance de Endo parece afirmar a existência de um Japão de nenhum modo alheio ao cristianismo japonês, um Japão em busca de uma forma de cristianismo adaptável ao seu carácter nacional.

Muito se poderia dizer da natureza de um cristianismo japonês, mas ocupei já um espaço maior que o habitualmente consentido a um simples tradutor; por isso, com uma palavra de agradecimento ao professor M. Himuro, da Universidade Waseda, que me ajudou relativamente ao dialecto de Nagasáqui e me traduziu os dois documentos em apêndice, deixo o leitor entregue a Shusaku Endo.

 

Prefácio: William Johnston
Universidade Sophia, Tóquio
In Silêncio, ed. D. Quixote
06.10.10

Capa

Silêncio

Autor
Shusaku Endo

Editora
D. Quixote

Ano
2010

Páginas
272

Preço
18,00 €

ISBN
978-972-20-4135-5
















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