Este é um tempo de crise. A pandemia que estamos a viver tem sido um acelerador dessa crise, que é global, poliédrica, das sociedades, e é também uma crise da Igreja. O papa Francisco não tem medo da crise, e isso é muito significativo. Ele faz uma espécie de teologia da crise.
Por exemplo, no último discurso à Cúria Romana, ele fez um verdadeiro elogio da crise ao dizer que, se olharmos bem, todo o itinerário bíblico é protagonizado por homens e mulheres que vivem em crise. A começar por Abraão, que vive o chamamento de Deus como desafio crítico: ele enfrenta uma descontextualização - «sai da tua terra, sai da tua zona de conforto» -, e quando tudo estava relativamente organizado e ele tinha recebido a maior promessa de Deus, e já tinha um sinal da sua concretização, Deus coloca-o à prova. Neste sentido, a crise é também provação.
A própria palavra “crise” vem de um termo grego que quer dizer “joeirar”, “peneirar”, fazer o trabalho necessário para colher o resultado da boa semente. A crise é o coador, o filtro na debulha incessante da vida.
O papa Francisco lembra que quem viveu a maior crise foi o próprio Jesus. Temos de olhar para o Evangelho como um texto de crise. Assistimos à crise de Jesus em direto – pensemos no relato das tentações e no que significa de resumo de todas as tentações pelas quais Jesus terá passado.
O papa Francisco diz muitas vezes que nós estamos assustados com as crises só porque nos esquecemos de avaliar a crise como o Evangelho nos convida a fazer. E também porque esquecemos que o Evangelho é o primeiro a colocar-nos em crise. Cada vez que abrimos o Evangelho, entramos em crise.
Mas aquele que nos coloca em crise também nos ajuda a reencontrar a humildade, a sabedoria e a oportunidade de dizer que o tempo de crise é um tempo do Espírito. E no momento da fragilidade, das contradições, da confusão, a fé é mais necessária que nunca, porque nos ajuda a entrar na lógica paradoxal, de que Paulo nos fala na segunda carta aos Coríntios: quando sou fraco, então é que sou forte.
Vivemos tempos de crise. Mas são os tempos que Deus nos dá para viver. E temos de os viver como oportunidade de ler melhor, de ouvir melhor, de aprofundar a nossa fidelidade, de viver mais radicalmente na escuta do Evangelho.
Penso que o papa Francisco nos anima muito: quando faz uma teologia da crise, não está a tentar escapar da realidade, a dizer que o mal é bom ou que o bom pode ser de qualquer maneira; mas ao mesmo tempo, com a sua teologia “de pé no chão”, ajuda-nos a ver que a crise pode ser também o nosso mestre, é uma oportunidade, como esta pandemia pode ser uma oportunidade para repensar os nossos modelos, os nossos paradigmas, para perceber, como disse o papa na praça de S. Pedro vazia, em março de 2020, que não esqueceremos, que já estávamos doentes; não foi a pandemia que nos adoeceu; ela é uma consequência do caminho, e todas as outras pandemias são também uma consequência.
Por isso, este tempo da Igreja, mesmo no que tem de sofrido, é o tempo para olharmos os lírios do campo, é um tempo para perceber o que é que o Espírito nos está a dizer, como nos ensina o livro do Apocalipse. Porque o Espírito está a falar, o Espírito está a manifestar-se, e nós temos de agarrar esta oportunidade.