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«Leitura»

O caso português

O impacto da modernidade em Portugal foi agravado com a extinção das congregações religiosas em 1834. Como o reconheceu o próprio Alexandre Herculano, ao dirigir-se em 1842 aos que tinham encerrado indiscriminadamente as casas religiosas masculinas: «Fizestes uma coisa absurda e impossível: deixastes na terra cadáveres vivos e assassinastes os espíritos [...] Pão para a velhice desgraçada! Pão para metade dos nossos sábios, dos nossos homens virtuosos, do nosso sacerdócio! Pão para os que foram vítimas das crenças, minhas, vossas, do século, e que morrem de fome e de frio!». Foi essa metade religiosa da sabedoria portuguesa que tardou - e tarda - em refazer-se ...

Com o triunfo do liberalismo, não encerraram apenas as casas religiosas. Os seminários diocesanos, por razões políticas e financeiras, tiveram de fechar na generalidade e só depois de 1850 foram restabelecidos de modo mais ou menos incipiente; a Faculdade de Teologia de Coimbra também não conseguiu responder aos desafios intelectuais e pastorais do oitocentismo. O clero secular português, quase reduzido a funcionalismo eclesiástico do Estado, sustentou como pôde a religiosidade comum, eventualmente interpelada por alguma missão de religiosos antigos ou regressados. A inadequação cultural do clero português já era apontada pelo próprio jornalismo católico de meados do século: «Aos srs. pregadores é forçoso dizer que não compreendem a época, em que vivem [...] Estudam os antigos sermonários, em vez de estudarem a Bíblia, os Doutores da Igreja, os grandes modelos, e sobretudo e depois de tudo o tempo, este tempo em que hoje estão [...] Os sermonários dirigiam-se principalmente ao coração, e isso bastava; pressupunham grandes convicções, buscavam enternecer, enterneciam, e a missão estava completa. Hoje é necessário maior trabalho; outros meios, outro caminho. É preciso falar à inteligência». E o autor prossegue com observações complementares, lamentando a indigência na tradução estética dum sentimento já especificamente religioso: «Não podemos aprovar a música de igreja nos teatros. Se a música é a tradução harmoniosa dos afetos, cumpre-lhe não os confundir e trocar, para ser uma arte verdadeira e útil. O coração do homem não se dirige a Deus do coro de um templo, com a mesma linguagem com que se dirige a outro homem, no tablado de um teatro».

Não se estaria muito melhor no princípio deste século [XX], no entender do militante católico Gomes dos Santos, que salienta o cariz geralmente convencional, ou restritamente familiar, ou intelectualmente fortuito do Catolicismo português do fim da monarquia: «Dos cinco milhões de católicos que se atribuem a Portugal, nem um décimo são católicos práticos. A vida religiosa está confinada em algumas famílias católicas [...] A pregação, dentro dos templos, não a ouvem [os céticos], porque os não frequentam; os nossos jornais, desde que católicos se designam, não lhes vão parar às mãos; as nossas obras sociais, tão limitadas aliás, são-lhes desconhecidas. Noventa por cento das conversões que se dão no nosso país são determinadas por motivos intelectuais: a leitura duma obra apologética, o conhecimento fortuitamente travado com quem pode revelar-nos coisas ignoradas, são suscetíveis de determinar uma brusca reviravolta de espírito [...] O que afasta muita gente da religião e dos seus dogmas é a ignorância profunda. Os nossos próprios católicos, como já foi dito, não têm, em geral, uma noção exata da religião que professam».

A política anticatólica da República desfez as frágeis estruturas formativas da Igreja, mas também despertou energias pouco previsíveis. Particularmente entre os jovens universitários de Coimbra, «uns centos de estudantes», geralmente provindos de famílias católicas convictas ou tocados pela formação dos religiosos. Retenha-se este depoimento do futuro cardeal Cerejeira: «No dia 1 de fevereiro de 1911, ao fim da tarde, a sede do Centro [C.A.D.C.] era assaltada, aos vivas à República, por uma malta vária, que assim defendia heroicamente a liberdade e os direitos do cidadão [...] Alguns dos meus companheiros procuraram o Comissário da Polícia, pedindo-lhe garantias contra esses boatos [de novos ataques] - e ele respondera que não podia garantir absolutamente qualquer manifestação mais viva da fraternidade felizmente estabelecida agora. Foi como revindicta contra esse estado de coisas que se acordou em abandonar Coimbra, lançando um manifesto ao País no qual se afirmava o propósito de não voltar, enquanto a segurança dos estudantes não fosse eficazmente garantida. Esta medida logrou o fim almejado. O estômago é uma víscera muito eloquente quando está vazio. A Coimbra liberal não agradava ver-se privada do valor económico de uns centos de estudantes, cujas ideias odiava, é certo, mas cujo dinheiro apetecia. O Comissário deitou logo bando a anunciar que a segurança académica estava garantida».

Alguns desses estudantes defenderam depois politicamente o Catolicismo nacional no Centro Católico Português (1917 ss). Juntando-se a outros, a partir de 1933, na Ação Católica Portuguesa, visando esta a «reconquista cristã» do país em termos exclusivamente apostólicos. Com o tempo, criou-se outra relação Igreja-Sociedade em Portugal, particularmente no aspeto cultural: «Às forças e correntes de ideias que têm, desde há dois séculos, dominado a sociedade portuguesa - o liberalismo maçónico e os materialismos e ateísmos do presente - pela primeira vez se contrapôs uma presença efetiva da Igreja na sociedade e no mundo das ideias, pela existência de um escol livre, autónomo, pluralista e diversificado de cristãos empenhados nas áreas política, social e cultural, bem como nas restantes tarefas de construção de um mundo à medida do homem».

A mentalidade recente trouxe outros desafios ao Catolicismo, talvez mais por distração do que por contraposição. O propósito e o sentimento tornaram-se mais imediatos e inconsistentes, reagindo negativamente a propostas alargadas e objetivas. Em carta pastoral de 8 de novembro de 1989, os bispos portugueses descreviam a situação em termos de aumento crescente do indiferentismo religioso, mudança no conceito de felicidade e de realização humana - agora mais material e hedonista -, relativização da dignidade do homem e da vida humana, corrupção do conceito de amor, perda da dimensão absoluta dos valores - trocando, por exemplo, a fidelidade pela efemeridade - perda do sentido da tradição nacional; para concluírem que «só é possível evangelizar-se Portugal agindo sobre a cultura, reevangelizando a cultura». A 27 de outubro de 1992, falando aos bispos das províncias de Lisboa e Évora, o Papa João Paulo II apontou caminhos para tal: «Sem nostalgia do passado nem vontade de conquista, mas com a motivada certeza de que Jesus Cristo é o único Redentor do Homem [...] parece possível e necessário provocar um confronto leal e cordial com a atual sociedade e cultura portuguesa, de modo que ela seja posta em condições de decidir novamente do seu futuro, no encontro com a pessoa e a mensagem de Jesus Cristo».

 

D. Manuel Clemente
Bispo do Porto, Presidente da Comissão Episcopal da Cultura, Bens Culturais e Comunicações Sociais
In 1810-1910-2010. Datas e desafios, Ed. Assírio & Alvim
26.05.09

Capa

1810-1910-2010
Datas e desafios

Autor
Manuel Clemente

Editora
Assírio & Alvim

Páginas
174

Ano
2009

ISBN
978-972-37-1407-4

























































































 

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