Liturgia, arquitectura e fé
O Silêncio
Quando a Santa Missa é devidamente celebrada, a Palavra pronunciada em voz alta pelo padre ou pelos fiéis dá, por vezes, lugar ao silêncio. O que significam estes tempos de silêncio? O que podemos fazer? De forma mais radical, o que é o silêncio?
Em primeiro lugar, o silêncio é, evidentemente, um silêncio material, um silêncio efectivo. É preciso que não se fale. Mas não se exagere: uma atmosfera artificialmente tensa não será melhor do que a falta de silêncio. Mas o silêncio é o silêncio e, para o ter, é preciso querê-lo realmente. Ele depende do valor que se lhe dá e esse valor faz com que ele seja mais fácil ou não. Uma pessoa diz: «Não posso evitar tossir»; outra diz: «Não posso estar quieto a não ser que esteja ajoelhado». Imaginem essas duas pessoas numa conferência ou num concerto: se elas estão concentradas, esquecem-se de tossir e de se mexer. Esse é o momento em que a sala se enche dessa espécie particular de silêncio que está entre as coisas mais belas do mundo: o espaço de suprema atenção onde as coisas belas e verdadeiramente importantes acabam por aparecer…
Na verdade, é preciso querer para se ter um bom silêncio, é preciso querê-lo e dar-lhe valor. Nesse caso, consegue-se sempre. E se uma vez ele é saboreado, fica-se sem se perceber como se podia viver sem ele. É preciso que o silêncio não seja apenas uma coisa exterior, como no caso em que ninguém fala nem se mexe. O silêncio verdadeiro implica que os pensamentos, os sentimentos e o coração estejam igualmente em repouso. O lugar essencial do silêncio é um lugar interior, um reino onde o silêncio se enche de vantagem e onde não há fronteiras, pois os horizontes do mundo interior não têm fim.
Até agora, só se disse o que o silêncio não deve ser: nem palavras nem barulho. Mas o silêncio não significa apenas que falta qualquer coisa - que é um vazio entre as palavras e os barulhos - o silêncio é por si próprio uma coisa positiva.
O silêncio é a calma da vida interior. Ele é a profundeza do desconhecido. Ele é presença recolhida, abertura e disponibilidade. Deste modo, ele não pode significar algo mudo, inerte, ele não é um fardo improdutivo. O silêncio autêntico é um despertar pleno de atenção e de disponibilidade.
Passemos ao tipo particular de silêncio que nos traz aqui: o silêncio quando se está em frente de Deus. Então, o que é uma igreja? Para começar, é um edifício com paredes, abóbada, colunas e espaço. Mas isso forma apenas uma parte do que o termo “Igreja” significa realmente: corpo. Quando nós dizemos que a Santa Missa decorre “numa Igreja”, no termo “Igreja” incluímos a comunidade. E dizemos a comunidade e não apenas a assistência. Não basta que as pessoas entrem na igreja e se sentem ou ajoelhem nos bancos para que haja comunidade; teremos apenas um espaço ocupado por pessoas mais ou menos piedosas. A comunidade nasce quando as pessoas ficam interiormente presentes, quando elas entram em contacto umas com as outras, quando se juntam num espaço espiritual, diria mesmo: quando as pessoas empreendem abrir-se e formar esse espaço. Então, a comunidade forma - com o edifício exterior que o representa - a “Igreja” onde a acção sagrada pode ocorrer. Tudo isso não se pode fazer sem o silêncio. É a partir do silêncio que se constrói um verdadeiro santuário. Tudo depende então da capacidade dos crentes de formar uma comunidade, de fazer crescer a sua Igreja no sítio onde se encontram, qualquer que seja o estado de abandono ou de miséria dos lugares exteriores. É de uma abóbada exterior que se fala, de uma abóbada totalmente espiritual e o que é preciso é descobrir as forças capazes de suportar essa abóbada e depois mantê-las constantemente acordadas. Nós queremos levar o silêncio a sério. Não faltam razões para começar este pequeno livro pelo silêncio. A matéria deste livro é a liturgia. Se alguém me perguntasse onde começa a vida litúrgica, eu responderia: com a aprendizagem do silêncio. Sem ele, tudo fica pouco sério e vão.
Romano Guardini
In La Messe
© SNPC |
10.04.10
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