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Deus e o bem

Deus criou a realidade a que chamamos «mundo» a partir da sua infinita abundância de ser, realizando o que é o acto paradigmático de amor: o acto que atribui todo o bem real e possível a algo que, sem isso, seria nada. Este acto define para sempre o que é o amor, a caridade: o acto absolutamente gratuito que, através da relação que estabelece, cria isso com que se relaciona. Neste primeiríssimo acto, Deus age com absoluta perfeição, ou não seria sequer merecedor do nome de Deus. Tudo o que sai de suas mãos – há que recorrer a metáforas – é singular e universalmente perfeito. O texto do Génesis é claro: por sete vezes, Deus contempla o absoluto da novidade acabada de criar e proclama a sua bondade (a versão grega dos Setenta fala de «beleza», que é precisamente o esplendor da bondade).

Tudo é perfeito, mas nada é estático. A perfeição que Deus cria é uma perfeição de possibilidade e de possibilidade de movimento autónomo, mantido na relação providencial com o Criador por meio da acção criadora, mas feito para que, depois de posto, possa seguir o absoluto de potencialidade que a possibilidade criada encerra. Deus cria para a independência: mesmo aquilo a que se chama de «natureza bruta» é absolutamente perfeito como possibilidade própria de desenvolvimento independente. Deus é pai que contempla a vida de seus filhos, não um tirano que os escraviza. A prova é dada na mesma Sagrada Escritura, na figura de Job, em quem Deus não toca no que tem de fundamental, mesmo mandando pôr tudo o mais em terrível crise agónica. A criação é, assim que acabada de pôr em seu acto, absolutamente livre.

Job é o Adão tardio, mas cumpridor: nele, a glória da bondade criadora de Deus manifesta-se através do absoluto cumprimento da possibilidade de indefectível bem que Deus pôs na criatura humana, momento apical do drama da criação, drama que, com Adão e Eva, assume carácter trágico, mas, que, com Job, readquire carácter, ainda que possivelmente agónico, de possibilidade de salvação. Ora, esta salvação não é fruto de um qualquer capricho de um qualquer deus-tiranete, feito à imagem do ser humano, mas da fidelidade da criatura, criada boa como possibilidade de bem absoluto, ao seu Criador, em tal manifestando a bondade absoluta do mesmo acto Criador.

Esta tradição, a que brevemente aludimos, sempre se esforçou não apenas por dizer, mas por mostrar, por levar a perceber que o ser, que o mundo que dele surge é bom. Esta bondade mede-se pelo absoluto da distância ontológica entre o que o mundo é e o nada de si mesmo. Este absoluto de distância ontológica é o absoluto do bem. Nada mais real. Mas esta mesma tradição afirma também que o melhor deste bem absoluto é a possibilidade que tal bem carrega: na sua realidade, o mundo é um infinito potencial de bem a fazer. No entanto, e porque é uma possibilidade de bem a fazer, é também a possibilidade de que nenhum desse bem possível de ser feito seja feito.

E é aqui que a possibilidade propriamente humana entra: se todo o restante mundo segue a sua potencialidade de forma mecânica, de modo tão complexo que surge como casual a uma mente finita, o ser humano não tem de obedecer a qualquer forma de mecanicidade necessitante: pode dizer que sim ou que não, desde que o queira, como o fez Job, em narrativa literária, mas também como o fizeram Maria e Cristo, já na forma nossa de carne.

É esta nossa carne, que é espírito com dimensão física, que pode seguir o exemplo do amor infinito de Deus e criar, criando o bem, como Deus o criou, analogamente: o amor infinito de Deus cria infinitamente; o nosso amor, chamado a ser infinito, pois chamado a ser como Deus, não pode criar infinitamente em acto, mas pode criar, por via do acto de amor continuado, uma infinidade de bens, que são, na nossa carne pessoal, na carne de todos e mesmo na «carne» do mundo, Deus presente na continuada criação, caridade, Sua e nossa.

Se, como diz o Papa Francisco, «Há cristãos que parecem ter escolhido viver uma Quaresma sem Páscoa.» (Evangelium Gaudium, 6), não será este o tempo de perceber que a vida pode ser uma vida de plena alegria – mesmo sofrida – se for, pelo menos tendencialmente, uma vida de contínuo Domingo da Ressurreição?

 

Américo Pereira
Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa
© SNPC | 31.03.14

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ImagemMiguel Ângelo (det.)

 

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