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A escrava

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A escrava

O século XIX foi profícuo no surgimento de congregações religiosas, principalmente femininas, chamadas de "vida ativa", cujos fundadores e fundadoras, confrontadas com as pobreza(s) da época que afetavam os mais diferentes setores da sociedade, decidiram servir a Deus na entrega da vida aos irmãos mais necessitados.

Daí o florescimento do imenso leque de carismas fundacionais, plenos de vigor, audácia e frescura profética, caminhando decididamente para as periferias da humanidade, no ensino, na saúde, na marginalidade, entre outros.

Como às vezes se diz em tom jocoso, «nem o Espírito Santo sabe quantas congregações Religiosas haverá» - dada a enorme variedade de estilos de vida, hábitos, atividades.

As fundadoras de algumas congregações religiosas (também a que eu pertenço), desejando exprimir veementemente o espírito de que estavam imbuídas e a mais genuína doação das suas vidas, quiseram apelidar-se de «Escravas». 

E aí as temos ainda hoje, utilizando este nome (após a abolição da escravatura): escravas do Sagrado Coração de Jesus, escravas da Santíssima Eucaristia, escravas do Santíssimo Sacramento e da Caridade, entre muitas outras.

Algumas congregações até já pensaram abolir o nome de «escravas», substituindo-o pelo de «servas»… mas tal não foi possível devido ao desagrado da maioria dos seus membros, os quais se reveem no significado e no simbolismo, o que lhes faz todo o sentido para continuar a mantê-lo.

Aqui chegados, é caso para dizer «escravas há muitas». Na minha congregação diz-se que «nós o somos por opção», facto que nos coloca determinantemente ao serviço da libertação daquelas que o são «à força»... pois com certeza.

Santa Maria Micaela dizia que «somos escravas do amor», e que este «não é um nome vazio, é real e verdadeiro».Para especificar melhor o seu pensamento, acrescentava: «Estamos presas ao sacrário como que por uma corrente, igual à que os escravos o estão aos seus donos».

E assim, todos os dias, nos acontecimentos extraordinários e nos mais banais; sempre aprendendo na Eucaristia a «tomai e comei… aqui está o meu Corpo, o meu Sangue, a minha vida, entregue por vós».

Também Maria, mãe de Jesus, não encontrou melhor fórmula para se descrever a si própria: «Eis aqui a escrava do Senhor. Faça-se em mim…». E acrescentaria que «Ele enaltece os humildes».

Uma outra Maria (como tantas outras) voou para Portugal nas asas do sonho, entre nuvens escuras que ela acreditava se tornariam brancas como a neve ao aterrar no país à beira mar plantado. Mas não! As nuvens que a esperavam no destino, eram terríficas. As promessas converteram-se em pesadelos infernais. Presa (sequestrada) dentro de uma casa isolada, com o portão, as portas e as janelas fechadas a cadeado, era-lhe dito e redito centenas de vezes: «Tu nasceste escrava, e é assim que eu te trato». As violências de toda a ordem (sexual, física, psicológica), com o constante relembrar da sua condição: «Escrava não fala», repetia-lhe o dono de cada vez que abusava dela.

Para dar o salto da pobreza para a fantasiada riqueza de recursos e de oportunidades, Maria teve de submeter-se à força a um casamento de conveniência. Tudo legal e tudo ilícito; tudo promissor e tudo falso; tudo luxuoso e tudo sombrio no meio da pacatez rural, apenas suavizada com a contemplação das verdejantes margens do rio Zêzere e o sereno passeio das suas águas a caminho da foz.

A escravatura continua, afinal, nos dias de hoje, com histórias trágicas, no Sul e no Norte do planeta.

O tráfico de seres humanos é hoje, talvez mais do que outrora, uma realidade transversal ao mundo inteiro, levado a cabo por pessoas e em lugares mais insuspeitos.

A exploração convive perfeitamente ao nosso lado, sem nos apercebermos disso.

Segundo narra a Maria, no lugar do seu cativeiro e durante o longo tempo que nele permaneceu, jamais ninguém se apercebeu que ela estava ali...

Será isto possível? É. Mas como provar, a quem de direito, a situação de escravatura dentro das quatro paredes da casa?

Um estudo recente, conclui que foram detetadas dezenas de «pequenas redes» organizadas, cuja finalidade será facilitar a entrada e saída de pessoas no país.

É precisamente esta complexidade e, ao mesmo tempo, normalidade, que dificulta detectar e ajudar as Marias a saírem da sua reclusão e encetar uma senda nova, fazendo caminho com elas, apostando em escolhas certas e livres, integradas e integradoras.

 

Ir. Maria Júlia Bacelar, adoradora
Publicado em 01.10.2014 | Atualizado em 30.04.2023

 

 
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Uma outra Maria (como tantas outras) voou para Portugal nas asas do sonho, entre nuvens escuras que ela acreditava se tornariam brancas como a neve ao aterrar no país à beira mar plantado. Mas não!
Para dar o salto da pobreza para a fantasiada riqueza de recursos e de oportunidades, Maria teve de submeter-se à força a um casamento de conveniência. Tudo legal e tudo ilícito; tudo promissor e tudo falso; tudo luxuoso e tudo sombrio no meio da pacatez rural, apenas suavizada com a contemplação das verdejantes margens do rio Zêzere e o sereno passeio das suas águas a caminho da foz
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