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"A infância de Jesus" segundo Bento XVI

As narrativas da infância de Jesus contidas nos primeiros capítulos dos evangelhos de Mateus e Lucas não são lendas nem reconstruções fantasiosas. Nem são um "midrash", isto é, uma interpretação da Escritura através de um estilo típico da literatura hebraica. São «história, história real, acontecida, certamente história interpretada» com base na Palavra de Deus.

É este o entendimento de Bento XVI no livro "A infância de Jesus" (ed. Princípia, 112 pp.), o terceiro volume de Joseph Ratzinger dedicado ao Nazareno. É o regresso do teólogo e exegeta que com esta parte dedicada à vinda de Cristo ao mundo conclui a obra que há muitos anos queria redigir, e que acabou mesmo por escrever, não obstante ter sido eleito pelo conclave reunido após a morte de João Paulo II.

 

As fontes de Lucas e Mateus

De onde «conhecem Mateus e Lucas a história por eles contada?», questiona Ratzinger. O papa recorda que «em Lucas parece estar na base um texto hebraico». E à pergunta, responde: trata-se evidentemente de tradições familiares. Lucas «por vezes acena o facto que a própria Maria era uma das suas fontes» quando escreve: «A sua mãe guardava todas estas coisas no seu coração». «Só ela - observa Ratzinger - podia referir o acontecimento da Anunciação».

A aparição tardia «sobretudo das tradições marianas encontra a sua explicação na discrição» da Virgem: enquanto ela fosse viva «não podiam tornar-se tradições públicas».

 

Maria, «mulher corajosa»

A propósito da reação de Maria face ao inaudito anúncio do anjo - da perturbação ao confronto interior com a Palavra recebida - o papa escreve: «Maria mostra-se uma mulher corajosa, que mesmo diante do inaudito mantém o autocontrolo. Ao mesmo tempo é apresentada como mulher de grande interioridade, que junta o coração e a razão e procura compreender o contexto, o conjunto da mensagem de Deus.

ImagemAnunciação (El Greco)

 

José, o justo

Descrevendo a decisão de José, esposo prometido de Maria, que depois de ter sabido que estava grávida decide repudiá-la em segredo, Bento XVI assinala: «Após a descoberta que José fez, trata-se de interpretar e aplicar a lei de maneira justa. É o que ele faz com amor: não quer expor Maria publicamente à ignomínia. Quer-lhe bem, mesmo no momento da grande desilusão. Não incarna aquela forma de legalidade exteriorizada... Vive a lei como evangelho, procura a via da unidade entre direito e amor. E assim é interiormente preparado para a mensagem nova, inesperada e humanamente inacreditável, que lhe chegará de Deus».

ImagemS. José (William Dice)

 

O parto virginal: mito ou verdade

Bento XVI mostra que não acredita de todo no paralelismo proposto pela História das Religiões entre «o nascimento virginal de Jesus» e as narrativas mitológicas das uniões entre divindades e homem.

«Não se pode falar de verdadeiros paralelos. Nas narrativas dos Evangelhos permanecem plenamente conservadas a unicidade do único Deus e a infinita diferença entre Deus e a criatura. Não existe qualquer confusão, não há nenhum semideus... As narrações em Mateus e Lucas não são mitos posteriormente desenvolvidos» e quanto ao seu «conteúdo concreto provêm da tradição familiar, são uma tradição transmitida que conserva o acontecido».

Assim, conclui Ratzinger, à pergunta se é verdadeiro «o que dizemos no Credo», sobre o nascimento do Filho concebido do Espírito Santo e nascido da Virgem Maria, «a resposta sem reservas é sim».

Na história de Jesus há dois elementos nos quais o operar de Deus intervém imediatamente no mundo material: «o nascimento da Virgem e a ressurreição». Dois elementos que «são um escândalo para o espírito moderno».

ImagemNatividade (Konrad von Soest)

 

O discutido recenseamento

O papa fecha em poucos parágrafos a questão do recenseamento de que fala Lucas no seu evangelho e a controvérsia sobre se ocorreu, dado que na vigência do governador Quirínio (citado pelo evangelista) não é documentado, mas no ano 6 depois de Cristo, demasiado tarde para que se trate do mesmo censo em concomitância com o nascimento de Jesus.

Ratzinger explica que o recenseamento se realizava em duas etapas, começando «no registo de toda a propriedade fundiária e imobiliária e depois - num segundo momento - na determinação dos impostos a pagar de facto. A primeira etapa acontece ao tempo do nascimento de Jesus, a segunda nos anos seguintes.

«Os conteúdos essenciais dos factos referidos por Lucas - escreve o papa - permanecem, apesar de tudo, historicamente credíveis: ele decidiu - como diz na introdução do seu Evangelho - "tudo ter investigado cuidadosamente desde a origem". Isto obviamente com os meios à sua disposição. Ele estava (...) mais próximo das fontes e dos acontecimentos de quanto nós, apesar de toda a erudição histórica, possamos pretender».

Por isso, observa: «Jesus pertence a um tempo precisamente datável e a um ambiente geográfico precisamente indicado». E «se nos ativermos às fontes, fica claro que Jesus nasceu em Belém e cresceu em Nazaré».

ImagemRecenseamento em Belém (Pieter Bruegel)

 

A historicidade da gruta de Belém

O papa defende que a transformação, por parte dos romanos, da gruta de Belém num local de culto a Tammuz-Adone, «pretendendo evidentemente suprimir a memória cultual dos cristãos, confirma a antiguidade de tal lugar de culto... Muitas vezes as tradições locais são uma fonte mais credível que os registos escritos».

 

Jesus sinal de contradição

Comentando o episódio da apresentação de Jesus no templo, Bento XVI afirma: «Todos nós sabemos quanto Cristo é hoje sinal de uma contradição que, em última instância, é dirigida ao próprio Deus. Sempre de novo o próprio Deus é visto como limite da nossa liberdade, um limite a eliminar para que o homem possa ser totalmente ele próprio. Deus, com a sua verdade, opõe-se às múltiplas mentiras do homem, ao seu egoísmo e à sua arrogância. Deus é amor. Mas o amor pode também ser odiado, quando exige que se saia de si próprio para caminhar para além de si mesmo»

ImagemApresentação de Jesus no templo (Vittore Carpaccio)

 

Os magos e a sua inquietação

Descrevendo a figura do «mago» e das várias gamas de significado que a palavra tinha, Bento XVI sublinha a ambivalência: «A religiosidade pode tornar-se um caminho para o verdadeiro conhecimento, um caminho para Jesus Cristo. Quando, porém, diante da presença de Cristo não se abre a Ele e se põe contra o único Deus e Salvador, torna-se demoníaca e destrutiva».

Os «magos» de que fala Mateus «não eram apenas astrónomos», eram «sábios», representavam a dinâmica «do andar para além de si, intrínseca às religiões - uma dinâmica que é procura da verdade».

ImagemAdoração dos magos (Gaspare Diziani)

 

Nasce Jesus, acaba a astrologia

Quanto à estrela que guiou os magos na narrativa de Mateus, o papa recorda que «na passagem entre o ano 7 e 6 antes de Cristo - que hoje é considerado o ano verosímil do nascimento de Jesus - verificou-se uma conjunção dos planetas Júpiter, Saturno e Marte».

A este fenómeno, segundo o grande astrónomo alemão Johannes Kepler (1571-1630), juntou-se uma supernova, da qual parece haver vestígios «em tabelas cronológicas chinesas» relativas ao ano IV a.C.

Citando Gregório Nazianzeno (séc. IV). o papa escreve que «no mesmo momento em que os Magos se prostraram diante de Jesus, teria chegado o fim da astrologia, porque a partir daquele momento as estrelas voltaram-se para a órbita» de Cristo. «O homem assumido por Deus - como aqui se mostra no Filho unigénito - é maior do que todas as forças do mundo material e vale mais do que todo o universo».

ImagemO aparecimento da estrela (Giovanni da Modena)

 

O massacre dos inocentes

É verdade, observa Bento XVI, que «das fontes não bíblicas nada sabemos sobre este acontecimento, mas considerando toda a crueldade de que Herodes se tornou culpado, isso não demonstra que tal crime não aconteceu».

Mesmo que a narrativa dos magos e do massacre das crianças inocentes «possa ser uma criação de Mateus», como defendem alguns exegetas contemporâneos, Ratzinger diz-se convencido de que se «tratam de acontecimentos históricos, cujo significado foi teologicamente interpretado pela comunidade judeo-cristã e por Mateus. E «contestar por pura suspeita a historicidade desta narrativa vai para além de qualquer concebível competência dos historiadores».

ImagemMassacre dos inocentes (Fra Angelico)

 

Liberdade na família

Por fim o papa centra-se no episódio, contado apenas por Lucas, de Jesus que aos 12 anos é reencontrado no templo de Jerusalém por Maria e José, que o tinham perdido de vista durante a viagem de regresso da peregrinação da Páscoa. Só ao fim de um dia de caminho é que dão pela ausência de Jesus.

Bento XVI admite que este excerto possa ser surpreendente para quem não conhece devidamente a realidade da Sagrada Família. A narrativa «mostra-nos, porém, de maneira muito bonita, que na Sagrada Família liberdade e obediência eram bem conciliáveis uma com a outra. O jovem foi deixado livre para decidir ficar junto dos  colegas e amigos e permanecer na sua companhia durante o caminho».

Aos pais preocupados, a Maria que o repreendeu, Jesus encontrado a ensinar os doutores do templo responde: «Encontro-me precisamente onde é o meu lugar - junto do Pai, na sua casa... Não é José o meu pai, mas um Outro - o próprio Deus. A Ele pertenço, junto dEle me encontro. Poderá ser expressa mais claramente a filiação divina de Jesus?».

ImagemJesus entre os doutores (Pinturicchio)

Ratzinger recorda que «sempre de novo [as palavras de Jesus] superam a nossa inteligência. A tentação é de reduzi-las, manipulá-las para as fazer entrar na nossa medida, é compreensível. Faz parte da exegese justa a humildade de respeitar esta grandeza que, com as suas exigências, muitas vezes nos supera».

 

Notas:
- As passagens do livro "A infância de Jesus" foram traduzidas da edição italiana, conforme apresentada na fonte deste artigo. A tradução poderá ser corrigida depois de comparada com a edição em português.
- As imagens aqui apresentadas não estão incluídas no livro.

 

In Vatican Insider
Trad. / adapt.: rjm
21.11.12

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Capa

A infância de Jesus

Autor
Joseph Ratzinger - Bento XVI

Editora
Princípia

Ano
2012

Páginas
112

Preço
9,52 €

ISBN
978-989-716-090-5

 

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