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Teatro

"Alma", de Gil Vicente: os tempos mudam, os dramas são os de sempre

A encenação de Nuno Carinhas para o Auto da Alma (1518), de Gil Vicente, estreou esta sexta-feira no Teatro Nacional São João, no Porto, num texto que para D. Manuel Clemente, bispo diocesano, mantém a atualidade.

«O “código” era o da época; a Alma – nós – é a de sempre, entre o parar e o andar, para não se perder num aqui que é apenas “mais do mesmo”, ou “nomes novos para pecados», escreveu o vice-presidente da Conferência Episcopal Portuguesa no manual de leitura de “Alma”, que sobe ao palco até 28 de abril.

A par do «progresso científico e as suas não menos utilíssimas aplicações técnicas» sucedeu «a deriva tecnológica da ciência e a ética resumida ao poder fazer», enquanto que a «multiplicação das artes e a sondagem de humanidades mais recônditas» ampliaram «os perigos da redução de uns e outros».

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No texto intitulado «A Alma em auto, ou seja, a caminho», D. Manuel Clemente sublinha que «é de louvar e muito louvar a coragem de retomar» a obra de «Mestre Gil», a que o argumento de Nuno Carinhas e Pedro Sobrado aplica cortes, redistribuição de falas e inclusão de poemas de Vitorino Nemésio, Guerra Junqueiro e Teixeira de Pascoaes.

As alterações ao original incluem a introdução de uma nova personagem, «Um Peregrino», interpretado por Miguel Loureiro, que o Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura entrevistou a propósito de “A vida de Maria”, de Rilke, que dirigiu em dezembro no Teatro Municipal de São Luiz, em Lisboa.

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Pedro Sobrado recorda que a peça «integrava originalmente sete hinos litúrgicos, alguns dos quais estão perdidos ou não foram ainda identificados», pelo que «a reconstituição arqueológica do auto é uma opção manifestamente inviável».

«Quando Gil Vicente escreve, a ideia de que todos temos uma alma é um dado adquirido que não se questiona – ao ponto de ser possível inventar toda a dramaturgia do trajeto que ela faz até chegar ao Céu», aponta Clara Ferreira Alves no manual de leitura.

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«Acompanhemos a Alma na sua complexa viagem, sem passar pela experiência da morte mas tão-somente pela experiência da conversão. Depois da pousada da Igreja, esta peregrina terá de continuar a sua viagem sozinha. Vai fazer como os passarinhos: abrir as asas e começar a voar», observa.

«O auto – prossegue – é uma narrativa aberta, que acaba onde a viagem iniciática se cumpre e todas as possibilidades estão agora em aberto. Vamos. Por quantas viagens iniciáticas terão já passado todas as nossas almas, na sua maravilhosa e flagrante individualidade?»

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O frei Bento Domingues refere a viagem, «cheia de tentações hedonistas, apresenta todos os recursos oferecidos pelos sofrimentos do Filho de Deus, que se encontram na “santa estalajadeira Igreja Madre”, com mesa posta com tudo o que há de melhor, para todas as estações da vida, protegida pelos anjos e ajudada pelo ensino de Santos Doutores, sobretudo de Santo Agostinho».

«O mundo sai de Deus pela Criação e a Deus retorna, através da viagem do agir humano, do homo viator, consciente e livre, solicitado para o bem e para o mal, pelas suas respetivas figurações. A Alma caminha no Caminho que é a Paixão de Cristo, com seus frutos prontos a servir na mesa da Igreja, cheia dessas santas iguarias para todas as circunstâncias», acrescenta.

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O programa da obra vicentina associa dois colóquios intitulados “Estados d’alma”, com a presença de personalidades da sociedade e catolicismo portugueses.

A primeira conferência, que decorre a 17 de março, conta com a participação de D. Manuel Clemente, bem como de Alberto Pimenta, José A. Cardoso Bernardes e Nuno Carinhas, com moderação de Isabel Morujão.

O ciclo, que decorre às 16h00 e tem entrada gratuita, conclui-se a 24 de março com Clara Pinto Correia, Fátima Sarsfield Cabral e Frei Bento Domingues, moderados por Daniel Jonas.

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A Alma em auto, ou seja, a caminho
D. Manuel Clemente

Porque não podia ser doutra maneira, desenrolando-se como passadeira que é preciso pisar, forte ou ao de leve, e sempre em frente.

Em 1518, quando Gil Vicente apresentou o seu Auto da Alma, o país andava já em quatro continentes. Viagens permanentes, de mar e terra, terra e mar, com tanto estonteamento e pressa que podíamos ficar por aí.

Isso mesmo, por aí… Na aceção corrente de andar por andar, mas parados onde estamos. Acontece sempre, quando a matéria é muita e a forma curta. A que houvera não chegava e a futura ainda faltava. Éramos assim, portugueses e outros, entre medievais e modernos. Mas o preenchimento material do presente punha efetivamente em risco o fio condutor do futuro.

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Foi – e continuou a ser – precisamente este, o repto das mudanças de fora, tomadas como fins de dentro. Perigo de que não mais saímos, como quem se deixa ir na roda sem saltar do mesmo sítio. Rodando, rodopiando, sempre ali. Podendo afundar-nos em mar ou terra.

Já assim em 1518, num Portugal com ambições quantificadas pelo mundo e cautelas caseiras redobradas. Como se a geografia alargada nos tornasse a alma exígua. Dum modo ou doutro, distraídos ou parados. Portugal e a Europa, já assim. E reparamos como tudo durou, demasiadamente durou.

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Progredimos, certamente, de avanços para recuos e de recuos para avanços, mais ou menos conseguidos. Mas também é verdade que, vezes demais, cada novidade foi uma paragem, como se quiséssemos agarrar a água ou a areia, escorrendo-nos elas entre os dedos. O magnífico progresso científico e as suas não menos utilíssimas aplicações técnicas; mas a deriva tecnológica da ciência e a ética resumida ao poder fazer… A espantosa multiplicação das artes e a sondagem de humanidades mais recônditas, nas paisagens do mundo, do coração ou da mente; mas os perigos da redução de uns e outros, pela maquilhagem das modas ou por mil devaneios virtuais…

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Os mundos de que Gil Vicente ouvia falar em cada embarcação regressada tardaram muito, muitíssimo, em ser realmente desvendados como tais, diversos e consistentes. Para nós – europeus em geral –, tanto desiludiram como um Prestes João inexistente, como deram palco às ambições que levávamos, as mesmas, sempre as mesmas, sem verdadeiramente os respeitarmos, ou nos respeitarmos neles. Por ter havido exceções, boas exceções, houve e há futuro; por termos demorado, demorado muito, perdemos tempo e “alma”, nós e eles.

A atualidade de tudo isto é por demais flagrante. Como é de louvar e muito louvar a coragem de retomar estas antigas falas de Mestre Gil agora. O “código” era o da época; a Alma – nós – é a de sempre, entre o parar e o andar, para não se perder num aqui que é apenas “mais do mesmo”, ou “nomes novos para pecados velhos”, como alguém já disse.

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E reparareis no refrão, diálogo a diálogo. Como do Anjo para a Alma: “Planta sois e caminheira… Andai prestes”. Ou: “Andemos a estrada nossa:/ olhai, nam torneis atrás”. Ou: “Caminhemos, caminhemos;/ esforçai ora”. Em contraste com o Diabo, paragem sempre, e por isso mesmo “divisão” entre o momento e o sentido: “Pera que é essa pressa tanta?/ Tende vida!” Ou: “Passeai-vos mui pomposa,/ daqui pera ali e de lá pera cá,/ e fantasiai”. E a Alma, naturalmente: “Nam sei pera onde vou./ Sou salvagem…” Ou: “E sou já de mi tam fora/ que agora/ nam sei se avante se atrás/ nem como vou”.

A história tem um final feliz. Jesus é para Gil o exemplo acabado dum caminho (con)seguido até ao fim. É aos seus sinais que finalmente se rende a Alma, despojada de outros, apenas enleios. E Agostinho – esse mesmo que dera à Europa medieval o sentido da história – pode rematar: “Ó Alma bem aconselhada,/ que dais o seu a cujo é,/ o da terra à terra:/ agora ireis despejada/ pola estrada…”

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E nestas últimas reticências iremos nós.

Boa viagem!

 

Rui Jorge Martins
Texto e fotografias: Teatro Nacional São João
© SNPC | 09.03.12

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