Paisagens
Paisagens
Pedras angulares A teologia visual da belezaQuem somosIgreja e CulturaPastoral da Cultura em movimentoImpressão digitalVemos, ouvimos e lemosPerspetivasConcílio Vaticano II - 50 anosPapa FranciscoBrevesAgenda VídeosLigaçõesArquivo

Amar a imperfeição

Ouvi aí umas duzentas vezes o poeta Tonino Guerra citar o verso de um monge medieval: «É preciso ir além da banal perfeição». É isso mesmo: a perfeição pode ainda ser um caminho que trilhamos pela superfície ou constituir uma ilusão que nos impede de aceder ao verdadeiro e paradoxal estado da vida. Levamos tanto tempo até perder a mania das coisas perfeitas, até nos curarmos do impulso que nos exila no aparente conforto das idealizações, ou finalmente vencermos o vício de sobrepor à realidade um cortejo de falsas imagens! «É preciso ir além da banal perfeição».

Lembro-me de um filme de Nanni Moretti, acho que é “O quarto do filho”, em que uma personagem, estando a viver um duro luto, se coloca a arrumar no armário as chávenas de chá. Percebe então que uma tem um lado partido. Tenta disfarçar o facto, colocando visível apenas o lado intacto. Mas ela sabe que àquela chávena falta alguma coisa. Aquela chávena é o símbolo da sua vida, da nossa vida, que ela e nós temos de aceitar e redescobrir continuamente. Acolher isso é uma condição necessária no amor e na amizade, no viver comum e na maturação pessoal que nos cabe fazer.

Há aquele mote de Samuel Beckett que, se o soubermos ouvir, derrama sobre os nossos embaraços grande luz. Diz assim: «Errar, errar de novo, errar melhor». O que é errar melhor? É saber que, no fundo, erramos sempre. Isto é: a perfeição encontrámo-la nos catálogos, mas não nos nossos gestos ou em nós próprios. O mais sensato é mesmo adotar a humilde sabedoria de quem procura conscientemente o melhor, mas sabe que o seu melhor ficará ainda aquém. O que podemos aprender é, pois, a semear, num trabalho de confiança, de desprendimento e simplicidade cada vez maiores. Jung escrevia: «o importante não é ser perfeito, mas sim inteiro». E para nós, o que é realmente importante?

Durante anos tive em casa um cartaz de uma peça de teatro infantil, de um grande autor italiano. Para saber falar às crianças como ele o faz, a gente percebe que se tem de apetrechar não apenas uma enorme habilidade, mas uma afetuosa esperança. Os miúdos sabem distinguir bem quem lhes fala para entreter ou quem realmente lhes quer comunicar uma verdade de coração. Este autor, chamado Gianni Rodari, é assim. Durante anos tive um cartaz seu com esta frase: «errando também se inventa». Olhar para aquela frase transmitia-me o ânimo e a leveza de que precisava.

A perfeição coloca-nos perante a realidade como se de um facto consumado se tratasse: se formos mexer, intervir, retocar ou alterar, sentimos isso como uma perturbação. Essa perfeição é estática. Existe só para ser admirada… à distância. A imperfeição, porém (e penso também naquelas que identificamos na nossa vida interior), é uma história ainda em aberto, que conta ativamente connosco. Na imperfeição é sempre possível começar e recomeçar. A imperfeição permite-nos compreender a singularidade, a diversidade, o real impacto da passagem do tempo, o traço dos seus vestígios. A imperfeição humaniza-nos.

 

Foto

 

José Tolentino Mendonça
In Diário de Notícias (Madeira)
21.05.11

Foto


















Citação

 

Ligações e contactos

 

Artigos relacionados

 

Página anteriorTopo da página

 


 

Receba por e-mail as novidades do site da Pastoral da Cultura


Siga-nos no Facebook

 


 

 


 

 

Secções do site


 

Procurar e encontrar


 

 

Página anteriorTopo da página